dimanche 5 juillet 2009

A Casa do Cartaxo











Certamente que as primeiríssimas imagens que me entraram pelas retinas e que me ficaram para sempre alojadas no meu cérebro ainda virgem, foram as da Casa do Cartaxo, ali no largo do Sobreiro, mesmo em frente da igrejinha muito branca, com barras muito azuis, onde o sol dava manhã cedo, ao acordar.


Nessa casa viviam eu e os meus pais e o meu irmão Fernando, dois anos mais velho do que eu, pois que fui o último botão em flor dessas duas plantas muito férteis que foram a Laura Guedes e o Alberto Ilídio...


O Fernando era um catraio muito rabino e remexido que enchia a casa toda com o seu reboliço e que, mais tarde, me viria a fazer muitas maldades.


Tínhamos também um gato, o Farrusco, que dormia connosco no divã da casa de fora.


A Casa do Cartaxo só tinha a cozinha, o quarto dos meus pais e a casa de fora e um grande quintal nas traseiras, onde o Farrusco gostava muito de brincar e fazer as suas necessidades.


Uma imagem muito forte que me ficou dessa casa foram as réstias de alhos, cebolas, choriços e farinheiras, penduradas nos barrotes da cozinha. E também ver a minha mãe a passar a ferro na mesa da cozinha e a espevitar as brasas com um sopro no buraco atrás, assim como ela a fazer os seus cozinhados num grande tacho de barro em cima do fogareiro de carvão, sempre a andar com a colher de pau à roda, e a blasfemear sempre que a coisa se pegava.


Por detrás da nossa casa havia a casa dos nossos vizinhos - a Conceição Branca e o Pedro da Relva - onde nós passávamos muito tempo a brincar com as duas filhas deles, pouco mais velhas do que nós.
Na casa deles havia fartura! A Conceição andava sempre a fazer manteiga e uvada e a enfornar merendeiros de torresmos no forno a escaldar. Todas aquelas suas actividades eram para mim novas descobertas que me fascinavam e me faziam ir para a cama já pela noite fora!


Eles também tinham - em frente da porta deles - uma corte onde vivia um porquinho lindo, muito cor de rosa, que andava sempre a abanar o rabito e a quem eu ia muitas vezes dar na sua boquinha pedaços de abóbora que eu roubava da cozinha da minha mãe.


Tinham também uma casota com muitos coelhinhos e muitas galinhas que andavam à solta e que depenicavam desalmadamente no esterco que o Pedro da Relva acumulava na casa das vacas para estrumar as terras que eles tinham lá no vale, por detrás da Casa da Brasileira.

Eu gostava muito de lá estar porque a Conceição me dava muito mimo e cantinhos de pão de milho e azeitonas.

Também gostava de ir com a Conceição, a cavalo no burro que eles tinham. O burro deles chamava-se o Cabrito porque era muito brincalhão. Nós íamos a cavalo nele até às tais terras no vale, levar a merenda ao Pedro da Relva. A Conceição Branca ia sempre sentada na albarda com ambas as pernas só dum lado d albarda, enquanto que o Pedro da Relva ia sempre escarranchado. Eu não percebia porquê a Conceição Branca não podia ir escarranchada como o seu homem!

O Cabrito saltitava todo o caminho até chegarmos à fazenda e eu ia ao colo da Conceição, muito agarrado ao meu cabaz com o farnel. Chegados lá, sentávamo-nos todos à sombra de uma árvore e enchíamos a pança, enquanto o Cabrito pastava à nossa volta. De vez em quando ele atirava com uma bosta.

Algumas vezes, depois de uma bela sesta, ficávamos até mais tarde para ajudar o Pedro a amanhar a terra. Foram eles que me ensinaram a mondar e a amar o cheiro da terra revolvida!

Em todas as fases das nossas vidas temos períodos muito felizes e outros muito dolorosos. Como naquele dia em que eu andava a jogar à bola com o Fernando em frente da igreja com uma bola de trapos que a nossa mãe nos tinha feito com uma meia dela cheia de rodilhas quando, de repente, ouvimos uns guinchos horrorosos que nos vinham dos lados da Conceição Branca. Curiosos, fomos a correr ver o que se passava e, santo Deus, o Pedro da Relva estava a enfiar uma faca enorme no pescoço do porquinho que eu tanto amava! Aqueles guinchos pavorosos, e o sangue dele a escorrer para dentro de um alguidar de barro foram um grande golpe na minha inocência e amor à bicharada! Esta foi a primeira descoberta das coisas terriveis com que a vida de vez em quando tão bem nos sabe sacudir! Essa imagem degradante e sanguinolenta e aqueles guinchos do meu adorado porquinho ficaram gravados na minha memória para todo o sempre! Eu não compreendia porquê nos comíamos todos uns aos outros. Porque não, vivermos simplesmente só do ar, daquele ar puro e limpo que nos vinha de para lá das serras?

Recordo igualmente as minhas idas à olaria do Franco, ali mesmo à porta, onde o meu irmão Alberto fazia loiça de barro. Foi ele quem me ensinou a fazer bonecos sobre os pratos antes de eles irem ao forno. Ensinou-me a manipular os pincéis e a misturar as cores, e eu fazia muitas rosetas de todas as cores e formas, nas bordas dos pratos. Depois, mais tarde, eu ia a correr ver as minhas obras a saírem a escaldar do forno! Depois ali ficava, muito orgulhoso, a contemplar as minhas rosetas, as minhas primeiras obras de arte!

O Alberto dormia lá na olaria e já tinha namorada, a Maria José, de quem eu muito gostava. Ela era da Vila Velha, em Mafra, e o Alberto, à tardinha, depois do trabalho, punha-se a cavalo na sua bicicleta e pedalava até à Vila Velha.

Às vezes, passava lá a noite.

Também recordo o meu pai - que andava sempre na tasca a tomar copos com os amigos - de manhã muito cedo, enfiar as suas botas e pôr os pés a caminho de Mafra. Ele ia e voltava todos os dias a pé - cinco quilómetros cada jornada - pois que havia dinheiro para os copos mas não para as camionetas do Sardinha, nem para o meu mealheiro!

Outra lembrança desses tempos foram as idas com a minha mãe à loja da Dona Perpétua - era ali mesmo à beira da estrada - para fazermos as compras. A Dona Perpétua sempre me dava um rebuçadinho e uma coisa muito esquisita que eu adorava e que mais tarde viria a saber que se chamava alfarroba.

Em frente dessa loja havia a paragem das camionetas do Sardinha que eu gostava muito de ver chegar e depois partirem, não sabia lá muito bem para onde.

Com essas camionetas do Sardinha começaram os meus primeiros sonhos de viagens e o desejo intenso de conhecer o que havia para além dessa estrada que se fundia lá tão longe no horizonte...

3 commentaires:

  1. O texto é muito cativante, bem humorado, muito apropriado para ilustrar essa época tão feliz que é a primeira infância. A leitura permite respirar o ar desse cenário bucólico, embora a narração seja tão rápida quanto a cabeça de uma criança. Aliás, o aspecto visual da vila (a segunda imagem) é igual ao de uma vila colonial brasileira; acho engraçado que tenha sido olhando para a imagem de uma pequena vila portuguesa (e não Lisboa, por exemplo, cuja influência sobre nós é mais "óbvia") que eu tive mais clara a percepção de que nós, brasileiros, somos herdeiros imediatos de Portugal. Mas foi a narração que contribuiu ainda mais decisivamente para essa associação. Pois eu vi muito da população rural do Brasil nas personagens deste capítulo, seja por sua inteligência e criatividade, seja por sua disposição para o trabalho duro diante da carência de recursos, seja por sua cordialidade. Há um artista daqui, o Tom Zé, que disse que os brasileiros da região Nordeste, tamanha a sua vivacidade, dão todos os sinais de que são descendentes diretos de um certo povo muito intuitivo, inteligente e curioso, os portugueses, que por sua vez são herdeiros do conhecimento dos árabes que estiveram na Península (que, segundo ele, são o povo mais inteligente do mundo). Sempre achei interessante isso, e lembrei dessa ideia ao ler este capítulo. No Brasil nós lamentamos muito por não conhecer devidamente nossa mãe África, que tanto contribuiu para a constituição de nosso povo e de nossa cultura. Mas eu pasmo ainda mais diante da conclusão de que, de fato, não conhecemos Portugal (pelo menos esse lado menos urbano de Portugal). Gostaria de fazer duas questões: 1) Quem são os caras na fotografia?; 2) De que parte de Portugal o capítulo trata? Um grande abraço!

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  2. O Sobreiro fica na Estremadura. A 48 quilómetros de Lisboa. Fica a 5 quilómetros de Mafra, onde existe o maravilhoso Mosteiro, Convento de Mafra, à sombra do qual cresci, amei e sofri a minha adolescência.

    Os Àrabes estiveram na Panínsula Ibérica penso que 500 anos e deixaram atrás a sua cultura, arquitectura, cozinha, e música: Fado!

    Na foto, frente à casa onde cresci até aos três anos, a Casa do Cartaxo, estou eu, mais três irmãos, e um sobrinho. A aguarela da igreja do Sobreiro foi feita por uma amiga minha do Sobreiro. Essa igreja já não existe! Infelizmente, para a minha saudade da minha infância. Agora temos lá um monstro mascarado de igreja!

    Obrigado por te interessares à minha história. Espero que não fiques depois desiludido com a minha adolescência e juventude...

    Abraço para o Mateus,

    do Rogério

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  3. O porco morto e as tuas interpelações inocentes. Causas-me uma sensação parecida com o que me fica no fim de ler Óscar Wilde, o "gigante egoísta e outras histórias para crianças" e que nos fazem fazer perguntas sobre o mundo, sobre as pessoas e sobre o que o mundo tem e o que as pessoas fazem.
    Depois vai o espanta-pardais da Matilde Rosa Araújo que conversava com o vento e com os pássaros, que lhe traziam notícias do mundo que havia para além da ESTRADA LARGA. Assim estás tu com os teus sonhos aprendidos e sonhados com as camionetas do Sardinha.

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