A minha mãe ficou novamente muito preocupada por causa do Alberto e foi falar com a Maria José ao restaurante Frederico para ver se eu podia voltar para a Dona Carolina, mas eles já tinham arranjado outro moço, que estavam muito contentes com ele, que o melhor seria irmos ao Café Estrela, ali mesmo ao lado, pois que eles precisavam de um miúdo para trabalhar na copa e também para fazer alguns recados.
Fomos ao Café Estrela. A minha mãe pediu para falar com o patrão. Uma senhora alta, um tanto curvada, cabelos grisalhos, muito acolhedora, vem ter connosco ao balcão e apresentou-se como sendo a Dona Laura, a cunhada do patrão que, segundo ela, estava ausente. Ela escutou atentamente a solicitação da minha mãe, depois olhou-me longamente e asseverou que um ensaio podia ser feito.
Fiquei logo a gostar muito da Dona Laura. Ela tinha o nome da minha mãe e uns olhos muito azuis que me penetravam até ao mais profundo do meu ser.
Minha mãe explicou à Dona Laura o problema do Alberto, se ela podia dar-me lá cama. Ela, sem hesitar, disse que isso não era nenhum quebra-cabeças, que habitavam por cima do Café, que tinham o quarto do empregado de mesas, o Carretas, que tinha duas camas, que não era problema de espécie alguma. Minha mãe perguntou quando é que eu podia começar e a Dona Laura, consciente da situação acerca do contágio, diz-lhe que eu podia começar no dia seguinte.
No dia seguinte, depois de mais uma noitada no chão da sala de entrada do senhor Leonardo, a ouvir o Marinho na pouca-vergonha com algum soldado, minha mãe leva-me ao Café Estrela com os meus trapos. A Dona Laura pediu ao Carretas que ele me levasse lá acima ao quarto dele, me mostrasse a cama, onde pôr as minhas coisas e onde se encontrava a casa de banho. Subi com o Carretas até ao segundo andar e fiquei muito contente porque o Carretas parecia ter simpatizado comigo. O quarto era bastante grande, com um varandim para as traseiras, com uma vista muito vasta sobre os telhados dos vizinhos. Nesse mesmo quarto havia uma terceira cama de casal onde o Carretas tinha as suas coisas todas abandalhadas, e disse-me para me pôr à vontade e usar essa cama para despejar o meu saco. Depois o Carretas levou-me de novo para baixo e a Dona Laura apresentou-me às suas duas sobrinhas, a Barau e a Lhé. Foram elas que me explicaram como lavar os copos e as chávenas, os enxugar, e onde os arrumar.
O Café era bastante grande, tinha uma grande montra que dava para a rua, através da qual se via o Convento ali especado na sua impressionante imponência. No Café havia um grande bilhar muito verde com duas bolas brancas e uma encarnada, muitos gizes azuis e tacos encostados à parede. Haviam muitas mesas e muitas cadeiras, uma balança para as pessoas se pesarem - bastava introduzir uma moeda de cinco tostões - e muito perto dessa balança havia uma pequena porta que dava para um saguão onde se guardavam as caixas de cervejas, pirolitos, gasosas, laranginas, e outras bebidas que nos vinham da Malveira para servir a freguesia. Mais ao fundo, à esquerda, havia a porta que dava para as retretes e, ao lado dessa porta, uma outra grande passagem que dava para duas outras grandes dependências suplementares onde armazenavam muita cangalhada. Havia também o balcão com a vitrina a abarrotar de bolos e uma grande telefonia de madeira castanha com uma janelinha redonda e três botões, em cima duma prateleira na parede, que estava a dar o programa da manhã da Emissora Nacional, com a Maria Leonor. Por detrás do balcão havia uma grande porta que dava para a copa e em frente dessa porta um grande frigorífico carregadinho de bebidas para matar a sede à clientela. Por detrás desse frigorífico havia um cantinho com uma pia e um cadeirão onde a Dona Laura, de vez em quando, gostava de se repousar um pouco à tarde, cobrindo-se com uma pequena manta. Esse cantinho seria um dia, para mim, o sítio mais aprazível da casa toda! Foi lá que aprendi a conhecer as manas! Era lá que trocávamos os nossos inacessíveis sonhos por possíveis realidades...
Na cozinha havia uma grande mesa contra a parede e uma chaminé com um enorme fogão a lenha com um grande forno, onde a Dona Laura fazia cozer os seus queques. Era sentada junto dessa mesa que ela passava os dias, com um xaile acastanhado pelas costas e a velha manta à volta dos joelhos.
A Barau e a Lhé eram raparigas da minha idade e viríamos a crescer juntos como se fôssemos irmãos, compartilhando todos os nossos complicados problemas da adolescência.
A Lhé era um tanto esquiva e tímida, mas a Barau era uma moça muito empertigada e muito autoritária. Ela andava sempre com os ombros muito espetados para trás e marchava como se já tivesse feito a tropa. Os mafrenses chamavam-lhe a “atleta” mas entre mim e o Carretas ela era a “patroa”! Mas ela era também uma grande amiga minha. Com ela troquei as primeiras fumaças às escondidas e também alguns beijos experimentais à cinéfila, que tínhamos aprendido no cinema de Mafra onde íamos ver todos aqueles filmes muito românticos desses tempos de outrora que não voltariam nunca mais!
A tia Laura começou a ser para mim uma segunda mãe. Eu adorava aqueles seus olhos dum azul tão límpido que me dispensavam as atenções de que eu tanto precisava. Com o tempo, em vez de lhe chamar Dona Laura comecei a chamar-lhe tia Laura e ela a chamar-me “o rapazinho”. Era o rapazinho para a esquerda, o rapazinho para a direita, era um ver se te avias! Eu chamava-lhe tia por ela ter tomado um lugar muito especial no meu coração, ela chamava-me “o rapazinho” talvez por idênticas razões.
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