mercredi 15 juillet 2009

O Narciso














Eu e o Carretas dávamo-nos bem e todas as noites, antes de fechar o Café, púnhamos as cadeiras todas em cima das mesas e depois lavávamos o chão para no dia seguinte estar tudo impecável. No outro dia de manhã tirávamos as cadeiras de cima das mesas e arrumávamos tudo muito bem e abríamos as portas.

Uma vez por semana eu lavava a montra e os espelhos e o Carretas encarregava-se de escovar a mesa de bilhar. Eu fazia todos os dias as retretes e lustrava a máquina do café - que era cromada - que eu queria sempre muito reluzente para poder ver-me reflectido nela e assim poder admirar os meus belos olhos verdes, a boca muito vermelha, e os dentes muito brancos. Os cadetes, alguns deles chamavam-me ”o dolicocéfalo loiro” porque deram comigo a ler um livro do Pitigrilli com o mesmo título, e porque eu era loiro e dolicocéfalo. Outros chamavam-me o Narciso, por eu andar sempre a espreitar-me nos espelhos todos do Café. Mais tarde tive de começar a usar óculos e isso foi para mim um tremendo insulto, como se me tivessem deitado abaixo do meu inacessível olímpico pedestal!

Eu gostava muito de trabalhar no Café Estrela e gostava muito da tia Laura e do senhor Caetano. Gostava muito de servir às mesas e receber boas gorjetas e os sorrisos apreciativos dos clientes, mas detestava os fins-de-semana por causa das excursões que nos invadiam todos os domingos. O pior de tudo era ter de ir para o Largo à volta das camionetas que chegavam e outras que partiam, vender uma grande invenção do senhor Caetano: os Sinos de Mafra! Uns sinos moldados em madeira recheados de doce de ovos. Detestava! Detestava também dar à bomba para encher de gasolina os depósitos dos carros dos passantes que nunca me davam gorjeta! Gostava também muito de ir para a janela do quarto da tia Laura, às tardes, com as manas, para ver o movimento do Largo D. João V com aquela gente toda a passar. Pela parte que me tocava, eram os atraentes cadetes nas suas belas fardas cinzentas e botas altas até ao joelho que eram para mim o meu maior enlevo.

Nessas tardes passadas à janela com as manas, aprendemos a conhecermo-nos mutuamente, dando largas aos nossos sonhos mais íntimos, quase todos irrealizáveis.
Tantos projectos foram feitos nesses momentos à janela, assim como no vão do cadeirão atrás do grande frigorífico. Tantos sonhos, tantas confissões, tantos dilemas inultrapassáveis!

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