jeudi 9 juillet 2009

Campolide











Aos sete anos puseram-me na escola das Amoreiras, ali mesmo a fazer esquina com a rua de Campolide, ao pé da casa da tia Luzanira.
Estávamos em 1942, na altura da Segunda Guerra Mundial. Os vidros das janelas estavam todos cobertos de tirinhas de papel e alguns balões cinzentos muito compridos lá muito alto, no firmamento. Dizia-se que era para evitar que Lisboa fosse bombardeada.
Eu continuava a brincar no pátio da Vila Alberto com a malta e adorava ir à escola todos os dias. Tinha uma professora com o pescoço muito torto, que se chamava Laura, tal como a minha mãe. Eu gostava muito da minha professora. Ela também morava na rua do Arco do Carvalhão, mesmo em frente da nossa casa. Eu gostava muito de aprender e ela era muito boa para mim e só uma vez me deu uma reguada por eu ter dito um palavrão.

Eu continuava a minha rotina de brincar no pátio, ir ao chafariz ouvir a Amália no rádio da taberna, ver as pessoas a passarem apressadamente e, às vezes, subia lá à Ponte Duarte Pacheco para ver os carros lá em baixo a passarem sempre numa grande mecha. A tia Arminda continuava a sair cedo para ir trabalhar no Laboratório Sanitas e eu passava muito tempo nas bichas do senhor Faustino - o merceeiro - pois que vivia-se do racionamento e nunca havia que chegasse para todos.

Os meus pais mudaram-se para o Sobreiro e deixaram-me em casa da tia Luzanira, mesmo ao pé da minha escola, até eu fazer a quarta classe, e deixaram a casa da tia Arminda. Fiquei muito chateado com a ideia de voltar para casa da tia Luzanira, porque a casa estava sempre muito desarrumada e suja e a minha tia era muito chata.

Todos os dias, às nove, lá ia eu para a minha aula com a Dona Laura depois de um muito pequeno-almoço. Curiosamente, não recordo nenhum dos outros meninos que andaram comigo na escola! Depois, à hora do recreio, a minha tia passava-me pela janela do meu quarto que dava para o recreio da minha escola, umas fatias de pão com doce de tomate que ela fazia lá em casa e eu até lambia os dedos!

Depois da escola voltava para casa mas via-me aflito para fazer os trabalhos da escola pois que havia muito pouca luz lá em casa. As janelas eram apenas frestas junto ao teto e a luz do candeeiro eléctrico sobre a grande mesa da entrada, daqueles candeeiros que subiam e desciam com um empurrãozinho no abajur, tinha uma lâmpada de vinte velas.

A tia Luzanira era muito avarenta e não queria gastar dinheiro em compras ou pagamentos de contas de água e electricidade, embora que, no velho sobrado da casa, viam-se muitos buracos tapados com tampas de latas de zinco afincadas com pregos onde, segundo a Capitoa, ela escondia o dinheiro que tinha feito com o negócio com a tia Eugénia, com a capelista que elas tinham fundado nessa mesma casa e ainda haviam vestígios do balcão e dos armários cheios de fitas de seda e retroses. Quando da morte da tia Eugénia, ela decidiu fechar o estaminé e viver dos rendimentos! Já tinha perdido a irmã Adalcinda, que tinha fugido para o Brasil com um gajo qualquer e, logo a seguir, perdia a tia Eugénia. Decidiu então devotar-se à Igreja de Santo António de Campolide e ao padre Serafim!

Eu comia com os gatos aquela comida que ela fazia com as guelras de peixe que lhe davam na peixaria. Eu detestava aquelas açordas imundas que ela fazia. Portanto, para o padre Serafim, havia sempre dinheiro para comprar bolinhos na pastelaria ao lado para ela encontrar um pretexto para lhe ir beijar a mão. A Capitoa costumava dizer muito maliciosamente que ela não lhe beijava só a mão, que também lhe beijava “outras coisas”, e a palavra “coisas” pôs imediatamente a minha imaginação em reboliço.

Foi na casa da tia Luzanira, na minha camita contra a parede, no escuro, a olhar o luar através da fresta do meu quarto, que comecei a descobrir os milagres das minhas mãos sobre o meu corpo. Olhava para o Cristo pendurado na parede e imaginava aquilo que ele talvez tivesse debaixo da fralda. Eu esfregava a minha pila entre as duas mãos até obter aquele estremecimento, aquele gozo danado vindo nunca saberei de onde! Foi na casa da tia Luzanira que eu descobri algo que eu cultivaria para o resto dos meus dias: a masturbação!

Frequentemente, com a tia Luzanira, íamos a pé até aos Restauradores apanhar o Elevador da Bica, para irmos a casa da prima Judite e do primo Jorge que viviam lá para os lados da Graça numa casa muito pimpona cheia de móveis muito antigos e montes de quadros com os retratos da família em todas as paredes. Em casa da prima Judite comiam-se boas paparocas. Tanta vez desejei lá ficar com eles e não voltar para a gataria e a gaita das açordas!

A prima Judite era uma senhora muito bem arreada que não ia à rua sem pôr o seu chapelinho e o primo Jorge um senhor muito elegante que andava sempre de gravata e botas com polainas. Ele andava sempre metido lá em cima no sótão onde arrumavam as bugigangas todas para não deitarem nada fora!

Nem um nem outro eram casados e lembro a Capitoa uma vez insinuar muito sorrateiramente que eles se calhar até dormiam juntos.

Um dia esgueiro-me até esse sótão para ver o que por lá se passava e comecei a abrir todas as gavetas e caixotes para satisfazer a minha irrequieta curiosidade. Descubro muitos álbuns de família com retratos de cavalheiros com grandes bigodes e senhoras muito ataviadas. Estupefacto, descubro também uma caixinha redonda, muito esquisita, por onde se podia pôr um olho no buraco para ver o que se passava lá dentro. Nessa caixa havia também uma rodinha à frente e cada vez que eu fazia rodar a rodinha via uma fotografia diferente de senhores a cavalo em senhoras com muitos lacinhos. Fiquei parvo com esta outra grande descoberta! O que era aquilo? As senhoras não eram nenhumas mulas para andarem com o dono às costas! Fiquei muito espantado e intrigado mas nunca perguntei ao primo Jorge ou a quem quer que fosse o que era aquela caixinha de Pandora. Ainda por cima, num caixote no vão da janela, dei com fotografias de senhores a cavalo de outros senhores, a meterem a coisa uns nos outros. Logo me lembrei do que se passou na casa da tia Arminda com o Fernando e o Carlos. Aquilo afinal não tinha sido nenhuma invenção do Fernando nem do Carlos! Aquilo já existia e a única coisa que se passara não passou nem nunca passaria de ordens vindas de só Deus sabe donde. Mas aquelas fotografias de senhoras de albarda a carregarem com os senhores em cima do lombo é que nunca percebi muito bem. Só muito mais tarde vim a compreender que aquela coisa dos senhores em cima das senhoras era apenas uma invenção da Natureza para perpetuar a raça humana! Então percebi como é que eu tinha sido feito e porquê via tantas senhoras na rua com grandes barrigadas. Tudo isto era apenas uma grande manipulação do além para fazer gente para depois darem lucros aos cangalheiros. Portanto eu adorava ir ao cemitério dos Prazeres pôr flores na campa da tia Eugénia. Aquilo da tradição das flores nas campas também não era mais do que uma esperteza dos floristas para fazerem avançar o negócio. Tantas outras tradições que foram inventadas, tal como o Natal e aniversários e tantas outras mais, para as pessoas comprarem prendas umas às outras para garantirem as entradas de caroço a todos esses negociantes espalhados pelo mundo fora.

Também achava estranho que se chamasse a um cemitério o Cemitério dos Prazeres. Se calhar estar dentro de uma cova num cemitério talvez seja um regalo, pois que quando para lá se entra nunca mais ninguém de lá sai!

Um dia a tia Luzanira leva-me à Igreja de Santo António de Campolide para as missas do costume e, como habitualmente, ela desapareceu com o padre Serafim por detrás da porta da sacristia. Era a altura da procissão do Senhor dos Passos e, enquanto eu esperava que a tia beijasse a mão ao senhor padre, aproveitei para bisbilhotar os santinhos todos da igreja. O Senhor dos Passos estava mesmo ali no meio da igreja, à saída, para as beatas, ao sairem, darem uma beijoca no pé do gajo, no seu andor, antes de irem para casa lavar a loiça. Também lá fui para dar um beijinho, mas lembrei-me de espreitar por debaixo da saia do Senhor dos Passos para ver se ele também tinha uma pila. Santo Deus do Céu, o Senhor dos Passos tinha um pézinho de fora para as senhoras darem um chocho ao sair da igreja mas quando lhe levantei a saia vi com horror que o Senhor dos Passos não tinha nada debaixo da saia, apenas uma armadura de madeira para aguentar a cabeça dele de fora, com a coroa de espinhos, e a cruz ao ombro, e um pezito espetado num bocadinho de tornozelo para as beatas beijocarem! Tinha pensado que ia ver o Senhor dos Passos em cuecas, a ver se ele tinha alguma coisa lá escondida mas só havia aquela armadura de madeira a fingir que o Senhor dos Passos tinha um corpo como todos nós! Fiquei tão desiludido! Na minha cabecinha de puto desventurado compreendi que aquilo de igrejas e de padres e de santinhos era tudo uma grande aldrabice! Depois deste incidente nunca mais pus os pés numa igreja! Mais tarde voltei a entrar em igrejas mas apenas para casamentos, baptizados, funerais, e mais tarde ainda, algumas vezes para rezar à Santa Rita de Cássia, que diziam ser a padroeira do impossível, e eu queria que ela me explicasse o que se passava comigo cá nesta terra! Por que razão eu tinha vindo, e com que finalidades! Muitos anos, ainda muito mais tarde, visitei muitas igrejas e catedrais por esse mundo fora só para ver a magnífica arte barroca que as revestiam!

A tia Luzanira ficou fula comigo quando se apercebeu que eu não ia em fitas e, para se vingar, sempre que eu recusava ir à igreja com ela, deixava-me em casa fechado à chave. Eu tinha um cagaço dos diabos das ratazanas que por lá andavam à solta, a despeito da gataria que entrava e saía pela portinhola que ela tinha instalado na porta de entrada, para os gatos entrarem e saírem quando muito bem lhes apetecesse!

Quando ela me deixava de castigo sentia-me como um gato vadio entalado numa sarjeta! Eu só podia trepar em cima do lava-loiça e pôr o nariz de fora através das grades que davam para o passeio e gritar que nem um desalmado. As pessoas paravam para ver o que se passava e chamaram a polícia. A polícia chegou logo e prometeram ficarem comigo até que a velha dos gatos voltasse. Um deles enfiou a mão por entre as grades para me acariciar a cabeça, assegurando-me que dentro em pouco a minha tia estaria de volta. Mas ao fim de alguns minutos viraram-me todos as costas e voltaram para a esquadra, para a caserna, ou para o raio-que-os-partam! Nunca saberei ao certo se eram polícias ou se eram bombeiros. Uma coisa era certa: vestiam uma farda, essas fardas que escondiam de mim brinquedos interditos que me punham a cabeça em alvoroço!

Continuei aos berros pela gradeada fresta até que uma senhora me pergunta muito aflita onde estava a minha tia. Disse-lhe que ela estava na igreja de Santo António de Campolide a beijar a mão ao cabrão do padre! Ela ficou muito desorientada e pergunta-me se eu não conhecia nenhuma vizinha. Disse-lhe que fosse chamar a Capitoa e dei-lhe a morada dela, ali a dois passos, na rua do Arco do Carvalhão, na Vila Alberto. Ela foi a correr chamá-la! Quando a Capitoa chegou, numa azáfama, muito atrapalhada, pediu-me que me acalmasse, que a tia já vinha, e que ela ficava ali comigo até que ela voltasse! Foi à pastelaria do lado comprar-me um queque e ali ficou especada até que a tia Luzanira, como por milagre, repentinamente apareceu. Foi a única aparição que o céu me enviou em toda a minha vida!

Quando a tia Luzanira se apercebeu do se estava a passar deita as mãos ao carrapito e, olhando para o alto, perguntou a Deus o que é que eu fazia na sua casa e na sua vida! Depois fez o sinal da cruz e abriu a porta. Como um foguete, caí nos braços da Capitoa. Ela levou-me para casa dela na Vila Alberto, onde muito me acarinhou. Dias mais tarde ela escreveu uma carta aos meus pais a contar o que se tinha passado e a pedir-lhes que me viessem buscar e que me levassem para o Sobreiro.

A única coisa inesquecível que a tia Luzanira me proporcionou foi outra grande descoberta: Levou-me à rua da Escola Politécnica, à Foto-Nogueira, para eu tirar o meu primeiro retrato!

A tia Luzanira
Contava-me o que não vira
E fazia-me acreditar!
Comprava carapaus de gato
Punha-os todos no meu prato
Nem as espinhas podia deixar.
Come tudo!
-Ela me dizia-
Não faça chiqueiro!
Coma as cabeças as guelras
As espinhas
Tudo custa dinheiro!
E eu comia.
Quando ia-mos comer à mata
Levávamos sardinhas de conserva
E eu sentado na erva
Receava ter de comer a lata.
Em Lisboa havia então
Uma grande confusão
E já se falava da PIDE.
Ela queria que eu fosse padre
Andava mal com a comadre
E queria ter sempre razão!
Falava-me das tardes na Foz
Dos amores com o Queiroz
E da sua aristocracia.
Tinha as pernas tortas
Carrapito no alto da cabeça
E sem que ela nunca o esqueça
As irmãs todas já mortas!
Com ela
Pela primeira vez
Fui à Foto-Nogueira
Ali na Escola Politécnica
Fazer a minha fotografia
A minha fotografia primeira
Encostado a um caixote
A face muito anémica
E um sorriso de velhote.
Olha o passarinho!
-Ela me dizia-
Mas não haviam passarinhos
Nem rebuçados nem bolinhos
Só a chata da minha tia!
Eu olhava o buraco
Enquanto o pobre do Nogueira
Em jeitos de toupeira
Enfiava a cabeça no saco.
E eu sorria sorria
Para a minha primeira fotografia
Minha fotografia primeira.
E eu sorria sorria sorria
E já tão à minha maneira!

Ainda fiquei uns tempos em casa da Capitoa. Continuei a ir à escola, até que um dia a minha mãe chega a casa dela para me levar até à camioneta do Sardinha, ali ao pé do Teatro Apolo. Não para me levar para Mafra, mas para um pequeno lugarejo perdido na paisagem, chamado Salgados. Apenas meia dúzia de casas à beira da estrada, não longe de Mafra, onde eles se tinham instalado à espera que o tio António trouxesse de novo a cangalhada deles de casa da tia Arminda para a casa dos Salgados. Não havia nenhuma mobília e dormia-se no chão em cima de sacos de carapelas que a Ti’Eva, a nossa simpática vizinha, lhe tinha dado quando minha mãe lá chegara de mãos penduradas.

1 commentaire:

  1. Esta tua tia Luzanira que só queria beijar a mão ao padre, sempre me saiu um grande traste!
    E a tua desilusão pelo santo não ter nada debaixo da saia! E depois a decisão de não ires mais à igreja e o castigo. Os berros, a polícia, o enquadramento na 2ª guerra mundial.
    Os teus relatos são um excelente retrato da época, onde não faltam os candeeiros a gás, acesos e apagados, como se fazia antigamente nas igrejas.
    A tua curiosidade, as tuas dúvidas existências, postas a nu e cru, por uma criança avançada demais para a idade.. A descoberta do sexo, o prazer, enfim, és uma derrocada nos tabus e nos status.

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