Não sei se por instabilidade ou por qualquer outra razão, meus pais andavam sempre com a casa às costas de um lado para o outro. Penso que me vem deles esse mesmo tipo de problema. Parece que tenho medo de criar raízes num só sítio, como se eu só possa ser feliz onde não estou nem nunca estive!
Hoje vamos tentar vasculhar as ruelas tortuosas dessa minha longa caminhada, como se o Passado fosse o meu único Futuro!
Como me disse um dia a Amália:
O Futuro não existe
O Passado nunca existiu
E o Presente
São apenas os momentos que nos caem do céu aos trambilhões e que mal chegam logo morrem!
Se tentar recordar possa ser um bom exercício para um cérebro que envelhece, vamos tentar descobrir lá nos contrafundos da minha frouxa memória, o que se passou então, já lá vão tantos anos, nessa pitoresca Vila Velha que foi, em idos tempos, o começo da vila de Mafra, antes de o Convento ter começado a ser construído. Assim ouvi dizer um dia!
A primeira imagem que me ocorre é a do meu pai, de pé, junto à larga janela toda aberta ao fundo do corredor, extasiado, a contemplar uma violenta trovoada. Cada relâmpago para ele era uma prevenção do céu. Como ele dizia, a advertir-nos da nossa mísera pequenez!
A casa onde vivíamos pertencia ao Zé da Vila, um ricalhaço que apertava na sua mão todo aquele império de todos aqueles terrenos e moradias da Vila Velha. Era um belo homem simpático e acessível e as mulheres andavam todas a levantarem-lhe as saias. Não sei se pela sua virilidade e gabarito ou se pela sua fortuna. Ele era casado e tinha dois filhos mas isso não impedia que as mulheres lhe corressem atrás.
A nossa casa era realmente muito espaçosa e tinha nas traseiras um vasto quintal onde o meu pai amanhava batatas, nabos, cenouras e feijão verde. A mãezinha cultivava as suas flores e tinha o seu galinheiro e a coelheira para, como ela dizia, ao menos termos ovos frescos todos os dias sem ter de ir à loja pedir fiado.
Tínhamos uma grande cozinha com lareira e uma grande casa de jantar e três quartos. Era o quarto dos meus pais, o do Alberto e Maria José, e o meu e do Fernando. Ao meio havia um grande corredor com uma grande janela ao fundo, que a minha mãe dizia só servir para fazer correntes de ar! A tal onde o meu pai se extasiava com as trovoadas vindas a lembrar-nos que não somos nada sobre esta terra onde apenas estamos de passagem!
O Negrito esteve amarrado à sua casota de madeira que meu pai lhe tinha feito para, como meu pai me explicou, ele se habituar à ideia de que era ali que ele morava. Eu andava sempre a trazer-lhe comida que minha mãe me dava para ele e aí começou outro grande amor da minha vida. Outra grande dor no dia em que tivemos de nos separar...
Mais tarde o Negrito já andava à solta, sempre atrás da minha mãe dentro de casa, a mendigar os nossos restos. Por vezes saía para a rua para a galderice e por lá ficava horas e horas a fio mas, à noite, voltava sempre à sua barraca. A barraca estava encostada ao muro que separava o nosso quintal da grande fazenda em baixo, propriedade do Zé da Vila. Desse muro, desfrutava-se um panorama fabuloso sobre o vale. Eu adorava ir para lá ver o sol desaparecer no infinito, naquela orgia de cores violentas que me abrasavam os olhos e a alma. A renda da casa também era razoável pois que o Zé da Vila tinha feito um preço acessível pelo facto do meu pai trabalhar na Repartição de Finanças e lhe prestar muitos valiosos serviços sem lhe cobrar um pataco.
Eu e o Fernando tínhamos um grande quarto, mesmo ao lado do quarto do Alberto e da Maria José com o berço da Adília Maria. Quase todas as noites ouvíamos a cama deles ranger e a Maria José gemer abafadamente e nós sabíamos exactamente o que se estava a passar e eu aproveitava precisamente essas ocasiões para dar asas à minha imaginação e aguardava o urro triunfal do Alberto para eu também ter o meu orgasmo. Era, o que eu hoje considero, uma pívia incestuosa! Eu adorava o meu irmão Alberto porque ele era ainda mais belo que o David de Miguel Ângelo!
Eu gostava muito de ver a minha mãe na cozinha a fazer comida para o jantar, com a ajuda da Maria José. Com elas aprendi um pouco dos saborosos segredos da cozinha portuguesa feita à pressa e sem grandes condimentos. A cozinha tinha uma porta para o quintal e muito frequentemente a mãezinha tinha de enxotar as galinhas lá para fora. Eu passava a vida a brincar no quintal com o Fernando e o Negrito. E as galinhas que andavam à solta a depenicar na terra que o meu pai estrumara.
Assim esse lindo coelhinho se tornou em outro grande amor da minha vida.
Outra inesquecível recordação foi, aquele dia em que meu pai me levou a Mafra para eu cortar o cabelo na barbearia do Urbano. Eu detestava cortar o cabelo porque me ficavam sempre cabelos nas costas e isso incomodava-me terrivelmente. Quando saímos, eu vinha a resmungar e a sacudir-me todo e o meu pai, para me compensar, levava-me ao Café do Victor para me comprar umas damas de chá, coisa que eu muito gostava, e convidava-me para um capilé.
Dois ou três dias depois o meu pai volta a casa à noitinha para jantar e mostra-nos as fotografias. Tinha encomendado seis. Uma para mim, outra para ele, outra para a mãe, outra para a minha madrinha, outra para a tia Arminda e outra para a tia Luzanira. Essa fotografia, aquela que me calhou, ainda hoje a guardo religiosamente. Sempre que olho para ela tenho um sorrisinho sarcástico quando me vejo com aquele bonezinho ridículo enfiado na cabeça.
Nós íamos muitas vezes para casa do Zé da Vila - que morava mesmo em frente - para brincar com os filhos dele. Ele tinha uma filha muito prendada que ajudava a mãe dela em tudo, e que se chamava Maria de Lurdes, e filho dele, o Mário, era uma rapazão muito traquina, mais velho do que eu, com o qual andava sempre à porrada.
Na noite de Santo António o Zé da Vila organizou um grande arraial com muitos balões e uma grande fogueira na rua, e a vizinhança toda veio saltar a fogueira e fazer marchas. O Mário andava sempre a correr atrás das pessoas para rebentar uma bomba de Santo António perto delas, para as assustar. Às tantas teve a triste ideia de rebentar uma delas mesmo ao pé da minha orelha direita e rebentou-me o tímpano. Desde esse dia, fiquei completamente surdo desse lado para o resto da minha vida. As coisas ficaram por aqui e assim vivi toda a minha vida a ouvir só de um ouvido mas quando inventaram o estereofónico fiquei muito lixado, pois que pensava que era preciso ouvir das duas orelhas para tal progresso tecnológico.
Eu andava na escola com o professor Mauro e passei para a segunda classe com muitos valores. O Mauro gostava muito de mim e dava-me sempre como exemplo a todos os outros putos. Que eles se portassem e fizessem os trabalhos da escola como eu. Quando alguém tinha de ler um texto qualquer em voz alta, era sempre eu que ele designava. Eu ficava muito vaidoso e cada vez gostava mais do meu querido professor Mauro, e adorava ler histórias em voz alta para a classe toda! O mesmo prazer me seria dado, muitos anos mais tarde, na Kita do Ulpan do Kibbutz Beit Hashitá e, ainda muito mais tarde, na Rádio Alfa de Paris! Rádio essa que viria a fundar com alguns amigos. O Fernando tinha deixado a escola para ir trabalhar para a Remonta, onde o Alberto também já trabalhava. Eu gostava muito de ir à Remonta ver o Alberto pois que ele tratava dos cavalos e quando eu lá ia ele punha-me sempre em cima dum cavalo e ensinou-me a cavalgar, como o fazia nos Salgados em cima da burra da Ti’Eva para ir comprar pão ao Sobreiro. Eu tinha muito medo dos cavalos mas gostava muito de andar sempre às suas garupas, tentado imitar o John Wayne, que tinha visto uma vez no cinema. O Fernando já estava com dez anos, era muito vadio e já conhecia a Tapada toda de cor e saltado. Ele levava-me a um tanque que lá havia para eu aprender a nadar. O Fernando já nadava muito bem mas eu tinha um cagaço levado da breca para entrar na água. Havia lá um remontista que estava lá sempre nesse tanque à coca, a tomar conta da miudagem e, um dia, ele agarra-me pelas sovacos e atira-me para dentro da piscina, e grita-me:
”Agora desenrasca-te!”
E eu desenrasquei-me! Logo que cheguei à escadinha que havia lá ao cantinho para sairmos da água eu pus os pés no estrado, vesti-me a correr e pirei-me para casa e nunca mais lá pus os patas. Desde aí, traumatizado, nunca mais consegui aprender a nadar, mesmo se mais tarde, na Ericeira, onde os meus pais nos levavam de vez em quando, eu entrava no mar e conseguia nadar um bocadinho ao longo da costa. Uma dessas vezes apanhei tanto sol nos joelhos que não podia mesmo andar e não podia ir à escola. O professor Mauro veio até à nossa casa para falar com o meu pai para saber o que se passava, pois que ninguém o tinha informado acerca da minha ausência. O Mauro ficou danado e disse ao meu pai que o meu lugar era na escola, não na praia!
No dia em que fiz os meus oito anos a minha mãe convidou a minha madrinha, a Mariazinha, que veio a pé do Sobreiro com o seu pai, que também era meu padrinho. Ele chamava-se Francisco e queria que eu também me chamasse Francisco, mas a minha mãe queria que eu me chamasse Rogério e, assim, para fazer o gosto a ambos, quando fui baptizado na Basílica de Mafra pelo padre Isidoro, deram-me o nome de Rogério Francisco. A minha mãe arranjou uma mesa muito bonita para o almoço dos meus anos e eu andava contente que nem um rato. Fui mesmo lá acima ao Largo buscar a tia Judite à camioneta, que vinha especialmente de Lisboa com as minhas primas Maria Manuela e Maria Emília, para lhes ensinar o caminho, pois que era a primeira vez que elas vinham a Mafra. Éramos muitos à volta da mesa. Era a primeira vez que celebravam o meu aniversário. O Zé da Vila e a mulher dele também vieram e todos tinham uma prendinha para me dar. Foi talvez o primeiro dia muito feliz da minha vida depois da miséria nos Salgados.
Depois de todos termos comido eu pedi licença ao paizinho para me levantar. Ele deu-me permissão. Fui a correr para o quintal à procura de ervinhas fresquinhas para dar ao meu lindo coelhinho todo branco com olhos cor de Eilat. Apanhei umas ervinhas e dirigi-me para a coelheira, mas o meu coelhinho não veio a correr ao meu encontro e pôr-se de pé contra a rede como costumava. Aflito, corri para a cozinha e puxando o avental da minha mãe, perguntei:
Mãezinha! Mãezinha! Onde está o meu coelhinho?
Surpreendida, com um grande sorriso, ela põe a sua mão no meu ombro e ternamente me responde:
Ó meu querido! O teu coelhinho tá na tua barriguinha, meu filho! Estava bom, não estava?
Dei um grito lancinante e vomitei o meu coelhinho em cima do chão de terra batida da cozinha e ele ali ficou estatelado, quando devia estar lá na sua casinha à minha espera, de pé contra as redes que o aprisionavam e o não deixavam correr para muito longe, onde não houvesse ninguém que lhe torcesse o pescoço e lhe arrancasse aquela pela toda branca e macia como a neve!
Apavorado, fugi de casa, fui correr por esses montes e vales, a esconder as minhas lágrimas doloridas!
Parece que ainda não voltei! Penso que ainda choro...
E acabo agora mesmo de o fazer ao reler este terrível episódio da minha vida!
Outra soberba descrição. Tudo flui como a vida.
RépondreSupprimerMas, também me vieram as lágrimas aos olhos com esta pugente realidade:
" Parece que ainda não voltei! Penso que ainda choro!"
Se há animais que me metem pena até mais não, são os coelhos.
Os animais sentem quem os ama e fogem para o pé dessas pessoas. Basta ouvir a sua voz.
Mas, não é só a história do coelho que me prende, irresistivelmente, às tuas narrativas.
É a simplicidade na escrita e a perfeira coerência com que escreves. Sente-se tudo em carne viva.