mardi 14 juillet 2009
A Vivenda Amor e Carinho
Chegados ao Cacém fomos a pé - apenas uma pequena caminhada - até à Vivenda Amor e Carinho, precisamente o que eu mais precisava. Chegados ao portão dessa pequena quinta, meu pai puxou três vezes o cordel da sineta, explicando-me que o Zé Manel morava na cave daquela bela vivenda e que para o chamar tinha-se que badalar três vezes.
Quem nos veio abrir o portão foi a Maria do Carmo, a bonita rapariga que o Zé tinha conhecido quando ele andava na Marinha e ia dormir a casa da tia Judite, na Travessa Cruz de Sour, ali no Bairro Alto. A Maria do Carmo vivia lá então no mesmo andar, na porta em frente da tia Judite, no mesmo patamar.
A Maria do Carmo ficou muito contente de nos ver, que já me tinha visto algumas vezes em casa da tia Judite. A Maria do Carmo vestia um vestido de chita azul e branco e tinha por cima dele um avental de ganga. Ela era linda! Os cabelos muito loiros e aqueles olhos de um azul muito transparente através dos quais se adivinhava uma alma boa. O seu permanente sorriso a rasgar a sua bonita face de uma pele muito lisa e ensolarada, era como um franco desejo de boas vindas.
Ela andava sempre a sorrir e a alisar a sua bela cabeleira loira. A sua voz era como uma melodia e as suas gargalhadas enchiam a casa toda, do nascer ao por do sol!
Eles viviam numa cave, mesmo por baixo da grande vivenda da Dona Aurora, a quem chamavam muito sorrateiramente a Dona Urraca.
A casa do Zé era, como já disse, uma cave, e todas as dependências tinham uma fresta para a rua, muito perto do teto. A casa de entrada era pequena e não tinha janela, apenas dois postigos na porta de entrada. A um canto havia um pequeno divã que servia de bengaleiro e pôr as meadas de lã para serem embobinadas. Mesmo em frente da porta tinham a máquina de fazer malha, enorme e muito complicada, com muitas agulhas e uma maneta para passar as lãs sobre as ditas. Havia uma porta que dava para a cozinha onde haviam apenas o fogão a gás que a Maria do Carmo utilizava para fazer os seus petiscos, um lava loiça de pedra, uma pequena mesa, e um armário. Da cozinha passava-se para a casa de jantar, muito bem mobilada, e um outro pequeno divã a um canto, que passou a ser a minha cama. O quarto deles era mesmo ao lado, também muito bem mobilado, e no pequeno saguão havia uma porta que dava para a garagem da Dona Urraca e que a Maria do Carmo utilizava para lavar, estender e passar a ferro a roupa da semana.
Em frente da casa havia uma grande eira e a quinta era enorme. Havia um riachozinho que corria docemente junto à parede que dividia a quinta da Urraca e a da vizinha do lado. Existia igualmente um grande tanque que servia de piscina, um poço e um alto moinho de vento cujo barulho, aos meus ouvidos, era uma cantilena ao som da qual, à noite, no meu divã, eu adormecia tranquilamente, indo ao encontro dos meus belos sonhos de menino.
Todas as manhãs, ia com a Maria do Carmo até ao mercado da Agualva, ali mesmo debaixo da arcada, fazer as compras do dia. Perto do mercado havia a Pastelaria Primavera, que pertencia à tia da Maria do Carmo, onde nós íamos todos os dias tomar um carioca e um bolo, oferecidos pela tia dela. Ela tinha lá também a sua prima, a Carolina, de quem eu também gostava muito, mas que um dia casou e foi viver para Inglaterra e eu nunca mais a vi!
Voltados a casa, a Maria do Carmo arrumava a casa e preparava o almoço e depois, da parte da tarde, fazia meias para vender aos clientes de Lisboa. O Zé Manel trabalhava numa camisaria no Rossio e chegava sempre tarde à noite a casa para jantar. Depois de jantar íamos todos para a cama e, antes que o moinho lá fora me adormecesse, ouvia a cama do Zé a gingar e comecei a perceber que realmente as pessoas faziam coisas muito estranhas durante a noite.
A Maria do Carmo gostava muito de ouvir a Amália na telefonia e um dia, quando passaram no cinema da Agualva o filme “Capas Negras” - com ela e o Alberto Ribeiro - fomos lá a uma matiné e gostámos muito do filme. Nesse filme a Amália cantou alguns fados e um deles, o “Não Sei Porque te Foste Embora”. Gostámos tanto desse fado que aprendemos a música e a letra durante a projecção do filme e quando voltámos a pé para casa íamos ambos a cantarolar esse fado pelo caminho.
A Dona Urraca tinha uma filha adoptiva. Nunca saberei qual era o seu verdadeiro nome, mas toda a gente lhe chamava Lóló! A Lóló tinha a minha idade e começámos a namoriscar.
Tinham também uma cadela enorme, da qual eu tinha muito medo, mas com o tempo comecei a dar-lhe comida e assim afeiçoámo-nos muito um ao outro! Ela chamava-se Jóia e sempre que eu a chamava ela vinha a correr e punha-se de pé à minha frente e apoiava as patas dianteiras em cima dos meus ombros. Eu brincava com a Jóia dias inteiros. Já não sabia quem era que gostava mais um do outro. Eu dela? Ou ela de mim?
A Dona Urraca trabalhava em Lisboa na Atlantic, uma companhia de petróleos, e ia e vinha todos os dias de comboio. Ela chegava à estação do Cacém por volta das seis e meia da tarde e a Jóia estava lá sempre na estação à espera da dona. A Dona Urraca achava muito estranho! Como é que ela conseguia escapar-se da quinta, como é que ela controlava as horas. Um dia a Urraca pede-me para eu, por volta das seis horas, espiar a Jóia e ver por onde é que ela saía.
No dia seguinte, por volta das seis, pus-me à coca da Jóia e surpreendi-a escapando-se por debaixo da pequena ponte por onde o riacho entrava na quinta. A Urraca mandou pôr uma barra de ferro na passagem da ponte e a pobre da Jóia ficava ali muito triste a ganir. Eu falava com ela e dizia-lhe que era proibido sair da quinta e, com o tempo, ela conformou-se com a sua sorte.
A Dona Urraca era viúva e gostava muito de mim e andava sempre a convidar-me para ir jantar lá a casa dela com a Lóló.
Um dia a Urraca propôs ao Zé Manel que eu podia dormir lá em casa dela, pois que tinha um quarto disponível, com uma grande janela para a quinta, e que para mim seria melhor do que dormir no meu divã lá em baixo. O Zé concordou mas, a brincar, disse-me: Cuidado meu menino, muito cuidado! A Urraca é capaz de começar a brincar com a tua pila. E foi precisamente o que aconteceu! Mas apenas uma vez!
Uma noite ela deu-me uma camisa de dormir de flanela cor-de-rosa da Lóló porque fazia muito frio. Era Inverno, e quando ela voltou para me aconchegar e dar-me o beijo de boa-noite, como habitualmente o fazia, trouxe-me uma botija de água quente para me aquecer os pés e ao levantar os cobertores a minha camisa de dormir chegava-me ao pescoço. Ela contempla uns segundos a minha pila e diz-me com um ar muito matreiro que eu estava bem desenvolvido para a minha idade. Acaricio-a ligeiramente e puxou a minha camisa para baixo até aos pés e aconchegou-me nos meus cobertores e deu-me um ligeiro beijo na boca como de costume, e saiu fechando a porta do meu quarto, seguindo para o quarto da Lóló para, presumo, o mesmo ritual de todas as noites antes de ela ir para a cama.
Foi com a Maria do Carmo que eu aprendi muitas coisas que me serviriam pela vida fora. Graças a ela, hoje sei arrumar uma casa, fazer uma cama, lavar a minha roupa, passar a ferro e a fazer comida. Também me ensinou a embobinar as lãs com as quais ela trabalhava na máquina de fazer meias. Um dia comecei também a aprender a manobrar essa máquina, mas como eu partia muitas agulhas, o negócio abriu falência.
O Zé era um bonito homem. Eu até dizia que ele se parecia muito com o Tyrone Power! Era muito malandreco e andava sempre a gozar comigo por causa de eu ter tanto jeitinho para ajudar a Maria do Carmo nas lides da casa. Eu gostava muito do Zé porque nos tempos que ele era marujo aparecia lá fardado em casa da tia Judite e as fardas sempre muito excitaram a minha imaginação. Um dia cheguei mesmo a desejar que ele abusasse de mim, como tinham feito o Fernando e o Carlos.
Uma das muito engraçadas recordações desses bons tempos foi quando das nossas idas a Sintra, a casa dos pais da Maria do Carmo, onde íamos almoçar todos os domingos. Eles viviam ali em Chão de Meninos, numa casa muito pequena e velha, com minúsculas janelas e um quintalzito nas traseiras. Esses almoços decorriam sempre muito alegremente! A mãe da Maria do Carmo era boa cozinheira mas muito fechada e muito refilona. Por outro lado, o pai dela era um homem muito vivaço e reinadio a quem chamavam o Nabiço! O Zé Manel, durante um desses almoços, queixou-se repetitivamente que as coisas agora já não eram como nos velhos tempos, que agora era tudo uma grande porcaria. O Nabiço olha o seu genro longamente nos olhos e, dando uma grande gargalhada, pergunta: “Ó seu Zé! Se você gosta tanto das coisas antigas, por que raio é que você se casou com a minha filha e não com a minha mulher? A mim tinha-me feito um jeitão!”
Uma noite, estávamos todos a jantar na “Vivenda Amor e carinho” quando de repente, o chão começou a tremer debaixo dos nossos pés e saímos todos a correr para a eira! Foi a única vez que presenciei tal fenómeno e não desejo voltar a viver novamente a mesma experiência.
Assim como outro muito triste acontecimento se passou na “Vivenda Amor e Carinho”...
... Anos mais tarde, a Urraca decidiu fazer férias na serra da Estrela com a Lóló e pegou na sua tenda, alugou um carro, e foram por essas estradas fora mas, primeiro, pediu à vizinha da quinta do lado, a Dona Margarida, de quem era muito amiga, para ela tomar conta da Jóia. A dona Margarida acedeu e levou a Jóia para a quinta dela, mas a Jóia não concordou com a mudança e a ausência da dona e da Lóló e fez a greve da fome. Como nesse tempo não haviam telemóveis e a Dona Margarida não sabia como entrar em contacto com a Urraca, a Jóia morreu de fome e talvez também, quem sabe, de saudades dos de quem ela gostava.
Quando soube disso, já eu estava a trabalhar no Café Estrela em Mafra. A mágoa foi tão grande que me fui esconder fechado à chave na retrete do Café e chorei a minha querida Jóia até não ter mais lágrimas a derramar.
Não me lembro quando nem porquê eu deixei o Cacém. Não sei qual a razão, sei apenas que voltei para Mafra e fui trabalhar para o Hotel Duarte, ali no Largo dos Correios, e duma certa casa amarela com barras azuladas...
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