Os Salgados foi mais um período da minha vida que muito me marcou e que, a pedra e cal, se alojaria na minha memória ainda quase virgem!
Foi lá que aprendi o que era ter fome, ter frio e assustadoramente temer vida e o dia de àmanhã!
Meus pais viviam num casarão enorme completamente despido de mobília, sem cortinas ou qualquer outro tipo de decoração!
Não havia uma única mesa, uma cadeira, uma cama naquela casa. O pouco que possuíamos andava à solta espalhado pelo chão. Dormíamos em cima de sacos de carapelas que a Ti’Eva nos tinha dado, assim como alguns cobertores para nos taparmos durante a noite.
Eu e o Fernando andávamos na escola de Mafra, eu ainda na primeira-classe, pois que não tivera tempo de a acabar em Campolide com a Dona Laura. O Fernando andava já na terceira classe e íamos ambos, pé descalço, por caminhos e atalhos, sobre pedregulhos e vidros quebrados que nos cortavam a nudez dos nossos por vezes ensanguentados pés. Isto dos Salgados até à Escola Primária de Mafra, aquela lindíssima casa branca com barras muito azuis, essa casa que para mim hoje é um monumento ainda mais importante do que o majestoso Convento que El Rei D. João V fez erigir com os dinheiros vindos do Brasil e, parece, para pagar uma promessa, e à sombra do qual eu iria um dia crescer.
Havia ali por debaixo da escola uma porta sempre aberta a que chamavam a Sopa dos Pobres. Era lá que eu ia todos os dias pedir à Dona Rosa – a gorda e anafada cozinheira que nos tratava como se fôssemos seus filhos – uma sopinha e uma bucha de pão saloio.
Eu adorava aquelas sopinhas que ela fazia. Eram sempre sopas de grão ou feijão com muita hortaliça. Eram muito gostosas e quentinhas. Só havia sopa e pão e muitas vezes isso seria a única coisa que engoliríamos nesse invernoso ou soalhento dia.
Depois da escola lá voltávamos para casa. Descíamos a Calçada da Horta, passávamos à Paz, entrávamos na tasca da Ti’Lúcia para ver se o paizinho lá estaria nos copos. Logo que chegávamos aos Salgados dávamos uma saltada a casa da Ti’Eva, pois que geralmente ela nos dava um bocado de broa com chouriço e um copo de água-pé.
Depois íamos para casa ver a nossa mãe e fazer os trabalhos da escola e, mais tarde, dar uma volta pelo largo e brincar com o Luís no palheiro. Muita vez tive vontade de desvendar os segredos que o Luís ocultava debaixo dos seus calções muito curtos, que ele andava sempre a arrumar para o lado esquerdo, mas nunca ousei. Tinha medo que ele fosse contar ao Ti’Zé Laranja, de quem ele era o moço.
Por volta das dez da noite deitávamo-nos nas carapelas e dormíamos a noite toda até de manhã muito cedo quando a nossa mãe nos acordava, houvesse ou não houvesse pequeno almoço. Nós, para irmos para a escola, e o paizinho para ir trabalhar para a Repartição de Finanças em Mafra. Algumas vezes fizemos o caminho juntos, mas normalmente o paizinho partia antes de nós para estar no seu trabalho às oito em ponto, enquanto que a nossa escola só abria às nove horas da manhã!
***
Uma bela manhã ouvi a minha mãe soltar um grito sufocado:
“Ai a minha rica mobília!”
Eu estava tão entretido com os meus bois, que a minha mãe me tinha feito com duas pinhas, dois pregos e uma ripinha, que nem dei pela chegada da camioneta do tio António que nos trazia a mobília e a tralha toda de casa da tia Arminda até aos Salgados.
Fui dar com a minha mãe estatelada no chão! Com a ajuda das vizinhas trouxemo-la para dentro de casa, demos-lhe um copo de água e umas chapadinhas na cara e ela, recuperando os sentidos, desatou a chorar e foi a correr para a camioneta onde os homenzinhos já estavam a descarregar os nossos haveres. Abraçou-se ao seu grande guarda-vestidos e murmurou-lhe ternamente:
“Ai guarda-vestidos da minha alma!”
Esse dia foi uma grande alegria para a minha mãe e para nós todos, até as vizinhas ficaram contentes!
Nessa tarde a minha mãe não parou! Acomodar os móveis, fazer as camas, despejar os baús cheios de roupa e lençóis e outras cangalhadas. Foi um alvoroço toda a tarde, mas já tínhamos mesa e cadeiras para confortavelmente nos regalar com o presunto e o pão de milho que a Ti’Eva nos trouxe para celebrar o acontecimento.
Mais tarde chegou o Ti’Zé Laranja com um garrafão de água-pé e melões para a sobremesa.
Foi uma grande almoçarada!
Depois, em vez de fazermos a sesta, fomos todos ajudar a nossa mãe a arrumar tudo e a encontrar sítios onde pôr toda a catrefa de coisas que repentinamente nos tinha caído do céu aos trambolhões. Isto graças ao tio António que era marrequinho e mal podia andar mas que tinha muitos negócios e muito dinheiro e vivia num grande apartamento em Lisboa, no Campo de Ourique, com a mulher e o filho.
Quando chegou a noite fomos todos para a cama, desta vez camas a valer que minha mãe tinha feito, esticando muito bem os lençóis e dando pequenas pancadinhas muito suaves a acomodar as rugas das colchas.
Não haviam almofadas que chegassem para todos mas eu, como de costume, dormi com um braço dobrado debaixo da cabeça e os joelhos a quase tocarem-me os queixos.
Nessa noite tive sonhos maravilhosos e esqueci-me de todos os meus medos, sobretudo o medo de ter fome e de ter frio.
Inesperadamente, a Vida recomeçava a sorrir-me...
Inesquecíveis foram também as férias da escola, as idas com o Laranja aos verdes campos para ceifar e mondar e, ao meio-dia, debaixo de um arbusto, papar a merenda que a Ti’Eva nos trazia no seu grande cabaz de verga.
O Zé Laranja abusava da pinga mas era precisamente depois de umas boas goladas que ele tinha mais piada e mais carinho nos despendia.
Com eles aprendi a mungir as vacas. A Estrela era a minha preferida. Os seus olhos doces enviavam-me mensagens de amor sem fim. Quando ela deu à luz uma bezerrinha eu fiquei com o Zé Laranja até muito tarde no estábulo para ajudar a Estrela a ter o menino. Os meus olhos de garoto curioso e sensível ficaram assombrados com aquele espanto de um ser vivente trazer ao mundo um outro pequeno ser gerado no seu ventre. Estava deslumbrado e ao mesmo tempo aterrado pois que, desde a matança do porco do Pedro da Relva e o peru do Natal da Capitoa, receava que essa maldita sorte caísse também em cima do meu ainda tão frágil bezerrinho tão amoroso! Nesse momento percebi como era que eu tinha vindo a este mundo!
Nunca compreendi nem nunca compreenderei essa degradante lei da selva, uma das muito injustas e incompreensíveis imperfeições da Natureza! Os maiores comerem os mais pequenos! Porquê tudo e todos chegavam confiadamente a este mundo traiçoeiro para um dia de novo o deixar, sem nunca sabermos ao certo que diabo viemos cá fazer! Quando penso que as tão delicadas borboletas só vivem um dia e uma noite. Foi o que me disseram!
Depois vi crescer essa éguazinha e levava-a ao campo para pastar. Com ela iam cinco vacas, dois bois, um bezerro, e a burra. Levava-os todos e assobiava-lhes na fonte para eles matarem a sede. Desde então passei a ser um grande amigo de todos os animais, não importa a raça, tamanho, forma ou cor!
Os bois do Laranja tinham lindos nomes, um era o Formoso e o outro, o Galante. Eles gostavam muito que eu os acariciasse entre os cornos. Ao fazê-lo eu mirava os seus olhos cheios de uma imensa ternura por mim.
Um dia porém o Laranja teve de enviar os bois para o matadouro, porque estavam já demasiado velhos par o labor mas talvez ainda bons que chegasse para umas bifanas.
Só soube dessa tragédia quando fui dar com o Zé Laranja a chorar às escondidas no palheiro. Quando ele me disse as razões pelas quais ele chorava, caí-lhe nos braços e chorámos ambos amargamente a perda de tais queridos amigos.
A Vida continuava a enviar-me telegramas!
Foram tantas ainda as descobertas que a vida me reservava. A vida era de uma crueldade implacável. Vivia muito mal todos os horrores que ela pouco a pouco começava a mostrar-me. Eu tentava aceitar todas essas novas realidades como naturais, mas para mim o sofrimento humano e animal não tinha nada de natural, era um abuso vindo não sabia muito bem de onde!
Um dia, quando a casa já estava toda mobilada e confortável, aparece-nos a Maria José, a namorada do Alberto – que continuava a trabalhar na olaria do Franco no Sobreiro – a bater-nos à porta, muito desditosa, porque estava grávida do Alberto e que a mãe dela a tinha posto na rua.
Este novo problema trouxe-nos mais modificações às nossas vidas. Tivemos de dar à Maria José o nosso quarto, o meu e do Fernando, que tinha uma janelinha que dava para a rua, e puseram-nos no quarto das traseiras, o que muito me agradou, pois que tinha uma linda vista sobre aquele infinito luminoso vale, onde o sol nascia a todos os alvores, pondo aureolas de oiro sobre tudo que magicamente tocasse, como um beijo matinal.
A Maria José trouxe as coisas todas dela e instalou-se definitivamente em nossa casa. A minha mãe gostava muito dela e tratava-a como se ela fosse sua filha, assim como muito ansiosa de conhecer o seu primeiro netinho. A Maria José todas as manhãs apanhava a camioneta para ir ao Sobreiro ter com o Alberto, mas rapidamente o Alberto decidiu vir viver connosco para os Salgados e era ele então que ia e vinha todos os dias de bicicleta.
Uma manhã a Maria José começa aos gritos e a minha mãe põe-me na rua e vai a correr chamar a parteira. Fiquei ali sentado debaixo da janela dela a ouvir, intrigado, quase em pânico, os seus gritos lancinantes.
Quando a mãezinha voltou com a parteira atrás, elas entraram em casa, disseram-me para eu ficar onde estava e fecharam a porta. Poucos minutos depois a parteira grita à minha mãe:
“Ó Dona Laura! Por favor traga-me mais água quente!”
Fiquei ali colado à parede a imaginar que a Maria José devia estar como a Estrela, a ter um menino que lhe saía da barriga. Eu pedia a todos os Santinhos que ela não sofresse muito, como a Estrela tinha sofrido.
De repente oiço um grito muito agudo, logo a seguir um açoite e um bebé chorar.
Momentos depois minha mãe entreabre a porta e segreda-me:
“É uma menina! Já és tio!”
Fiquei muito surpreendido. Seria isso uma dádiva ou uma praga do céu?
Duas horas depois fui autorizado a entrar no quarto da Maria José e ver a menina.
A Maria José estava tão lívida como as Santas nos altares. A menina, que viria a chamar-se Adília Maria, era um anjinho lindo! Só lhe faltavam as asas! Quis logo pegar nela ao colo mas não mo permitiram.
***
Os tempos foram passando e a minha rotina era sempre a mesma: ir manhã cedinho para a escola a pé e voltar à tarde também a pé, e dar um saltinho a casa da ti’Eva para a habitual merenda, fazer os tralhos da escola e, à noitinha, voltar a casa da Ti’Eva, para mais alguma bucha coberta de manteiga e uvada.
Adorava ir ter com a minha mãe lá abaixo ao rio vê-la lavar a roupa com sabão azul e branco, ajoelhada ao pé da grande pedra onde ela esfregava e batia a roupa da família toda. Depois punha a roupa branca no cloreto uma hora, seguidamente passava tudo de novo na água corrente do rio, torcia ligeiramente e punha tudo a corar ao sol, sobre a relva.
Adorava, no tempo das vindimas, andar a apanhar uva com a Ti’Eva e depois, mais tarde no lagar da adega, pisar os cachos com o Luís, o Fernando, e o Laranja a fazermos o nosso bom vinho caseiro. Eram coisas tão simples e corriqueiras, mas que tanto me fascinavam!
Foi também nos Salgados que vi pela primeira vez o toro do Laranja - um garanhão que ele tinha para cobrir as vacas todas do povoado, assim como dos arredores - a cobrir a vaca de um vizinho. Primeiro fiquei chocado com esse espectáculo brutal do toro a trepar para cima da indefesa fêmea e o Laranja a apontar a coisa do toro para dentro da pobre vaca. Depois de ter aprendido com a Estrela como era que vínhamos a este mundo, nesse dia aprendi a saber como é que éramos feitos! Ainda mais chocado fiquei quando vi o Laranja estender a mão ao vizinho para ser pago pelos serviços prestados. A intrusão dos negócios, corrompiam-me essa Vida que eu imaginara cor-de-rosa. Sem quase dar por isso, a Vida começava lentamente a descer do doirado pedestal onde eu um dia a tinha implantado para se reduzir apenas a uma bosta num curral!
O meu pai trabalhava nas Finanças mas andava sempre teso. A maior parte do dinheiro que ele ganhava gastava-o com os amigos nas tabernas a pagar rodadas. Parece que também com algumas mulheres da Vila Velha. Parece que ir à Vila Velha cobrir uma gaja, era como o garanhão do Laranja, tinha-se que pagar! Para ir ao Sobreiro comprar pão à loja da Dona Perpétua, onde ia a cavalo na burra da Ti’Eva, também tinha de pagar. Para se ter fosse o que fosse, tinha-se que pagar. Isso é que eu ainda não compreendia muito bem.
Mais tarde vim igualmente a descobrir que até a Vida se pagava com a Morte!
Mas compreendia o comportamento da burra da Ti’Eva que, para chegar ao Sobreiro dava dois passos em frente e um para trás, mas depois, de regresso aos Salgados, era um ver se te avias para voltar depressa à sua estrebaria e dar as suas tetas à sua amorosa éguazinha!
Mais tarde a sua éguazinha começou também a ir connosco ao Sobreiro fazer compras. Ela ia correr feita maluca atrás de mim e da mãe. Tinha tanto medo que ela fosse atropelada, mas nesse tempo só haviam carroças e as camionetas do Sardinha e do Gaspar. Que bons tempos! Nada de engarrafamentos!
A minha mãe não tinha dinheiro para me comprar sapatos e um dia manda-me à Quinta da Mugueta pedir à dona da quinta, que tinha dois filhos da minha idade, que eram gémeos, se ela me dava um parzinho de sapatos de um dos seus filhos, mas a boa senhora prega-me com o raio da porta nas trombas e diz-me que ali não era nenhuma sapataria!
Nesse dia descobri mais um terrível efeito secundário da Vida:
Um dia o paizinho chega a casa e alegremente informa que íamos, dentro de alguns dias, nos mudar para Mafra, para a Vila Velha. Por um lado fiquei contente mas, por outro lado, já começava a ter saudades da Ti’Eva, do Zé Laranja, da Estrela - aquela vaquinha onde eu ia mamar quando não havia pão lá em casa - e daquelas belas noites de luar sentado na eira a descascar maçarocas, com a malta toda a cantarem cantigas que eu nunca tinha ouvido antes.
Eu que nunca tinha visto neve na minha vida!
Que saudades já dos orvalhados campos de trevo a meus pés todas as manhãs, cheio de papoilas, borboletas, passarinhos, e do ar puro e fresco das madrugadas que me entrava pela janela dentro e, docemente, me vinham acordar quando outro novo dia começava a despontar...
A casa dos Salgados e uma incursão ao mundo genuíno da terra. Tenho uma predilecção por tudo que cheire a terra! A tua descrição da vida nos Salgados é de uma luminosidade espantosa. Continuam as tuas descobertas,momentos de felicidade e desilusão.
RépondreSupprimerQuase que consigo sentir o cheiro das ervas e recrudesce em mim, também, a revolta pela matança dos animais. Os bois de olhar manso qu tiveram que ir para o matadouro.
A história dos sapatos, as humilhações, a criança que nasce, em tua casa, filha do Alberto e da Maria José...
São tão vivas, tão crucialmente vivas, as tuas histórias!