Como esquecer aquela manhã, quando minha mãe me acordou mais cedo do que o costume, e me deu um banho na velha tina de zinco no meio da cozinha, e me vestiu aquela linda blusa de ceda branca com riscas azuis que me tinha feito a minha madrinha, e me pôs os calções de veludo azul-escuro e as minha belas sandálias de cabedal castanho, dizendo-me que íamos a Lisboa visitar a tia Luzanira.
Passados alguns momentos a camioneta chega e minha mãe soergue-me e põe-me dentro da camioneta. De seguida sobe e pede ao condutor uma ida e volta para Mafra. Depois senta-se e põe-me sobre os seus joelhos e aconchega-me contra os seus peitos. Aturdido, eu olhava em redor e preparava-me para descobrir o que havia para além da estrada do Sobreiro. Mal o condutor arrancou e a camioneta começou a rasgar o asfalto, meus olhos furaram a vidraça empoeirada da nossa janela em busca de novas paisagens e novas sensações.Todo ao longo da viagem até Mafra descobri apenas que, afinal, era tudo tão idêntico ao Sobreiro.
Chegados a Mafra descemos da camioneta e minha mãe pergunta-me se eu queria fazer chichi. Dei um salto de contente, pois que estava mesmo à rasquinha!
E lá fomos ao Café Estrela. Entrámos nas retretes e enquanto eu, muito espantado com todos aqueles aparatos, fiz o meu chichi contra aquela parede de cimento do urinol, coisa que eu nunca tinha visto na vida. No Sobreiro eu fazia chichi no penico, no quintal, ou contra uma árvore quando íamos levar a paparoca ao Pedro da Relva.
Minha mãe aproveitou a deixa para também aliviar a bexiga enquanto eu olhava deslumbrado uma coisa que eu nunca tinha visto ainda: um Café! Todas aquelas mesas e cadeiras umas à volta das outras, aquela grande montra que dava para a rua e através da qual se podia ver aquele grande casarão muito cinzento que pensei pertencer àquelas histórias de fadas com muitos palácios encantados que minha mãe me contava para eu adormecer.
Quando minha mãe saiu da retrete, ajustando a sua blusa, perguntei-lhe o que era aquilo, aquela casa tão grande? Ela disse-me que era o Convento de Mafra, que o rei D. João V. tinha feito erigir para pagar uma promessa.
Sentámo-nos a uma mesa perto da grande montra e minha mãe tomou um galão e um queque. Ela deu-me metade do seu queque e explicou-me que íamos apanhar outra camioneta para a estação dos comboios de Mafra e daí apanharíamos o comboio para Campolide.
Fiquei encantado com tantas novidades no mesmo dia. Mais uma camioneta e depois um comboio? Mas o que era um comboio? O que era Campolide?
Alguns minutos mais tarde saímos do Café Estrela e fomos apanhar a outra camioneta que nos levaria à estação dos combóios. Durante a viagem eu prescrutava as paisagens através dos vidros enlameados e as caras de toda aquela gente que eu não conhecia de parte alguma mas que, como nós, secalhar iam todos para Campolide.
As caras dos outros passageiros eram todas caras desconhecidas mas as paisagens continuavam a ser muito semelhantes às do Sobreiro.
Chegados à almejada estação, descemos da camioneta e entrámos naquele edifício enorme onde havia uma janelinha muito pequenina com um senhor muito gordo lá por detrás, ao qual minha mãe, sem o conhecer de parte alguma, pede-lhe uma ida e volta para Campolide.
Perguntei à minha mãe o que era essa coisa de ida e volta e ela explicou-me que era para irmos a Campolide e depois voltarmos para o Sobreiro com o mesmo bilhete.
Comecei a ficar preocupado, pois que ela só tinha pedido uma ida e volta... comecei a suspeitar que andava para ali gato... Atão eu não pagava bilhete? Na loja da Dona Perpéta pagava-se sempre tudo antes de voltar para casa, ou se punha no rol!
Chegados a Campolide descemos do combóio e apanhámos um atalho até à rua de Campolide, onde morava a tia Luzanira, que eu nunca tinha visto, apenas ouvido falar dela, de vez em quando.
Chegados a casa da tia Luzanira, uma pequena casa cor-de-rosa, minha mãe bateu à porta e momentos depois a porta entreabre-se e a tia Luzanira deita o nariz de fora e diz:
- Ah! Já chegaram? Entrem! -
Sentámo-nos à volta de uma mesa cheia de cangalhada ao meio de montes de tralhas espalhadas pelo chão, e tomámos chá e biscoitos. E eu que adorava biscoitos!
Depois minha mãe, pondo uma das suas mãos sobre o meu ombro, diz-me que eu ia ficar com a tia Luzanira algum tempo, pois que íamo-nos todos mudar para Lisboa e que eu ficava ali até eles virem com todos os seus cacos na camioneta do tio António, que íamos todos morar para a rua do Arco do Carvalhão, ali mesmo ao lado, onde meus pais moraram quando se casaram, mas que agora era habitada pela tia Arminda, a mana do paizinho.
Tinha ficado muito contente com a nossa viagem a Lisboa, mas agora começava a ver o caldo entornado. Então, que raio, eu tinha tantos tios e tantas tias que nunca tinha posto os olhos em cima e agora, de repente, caem-me todos do céu aos trambolhões só de uma assentada?
Quando minha mãe se dobrou para se despedir de mim com um leve beijo nos meus loiros cabelos, pediu-me que eu fosse bonzinho e não desse ralações à tia Luzanira! Eu desatei a chorar baba e ranho. E o meu Farrusco? E o Fernando? E o Largo da Igreja? E o paizinho? E a Dona Perpétua? E Conceição Branca? E o Cabrito?
Mas todas estas perguntas ficaram sem resposta alguma. Minha mãe virou-me as costas a ocultar as suas próprias lágrimas, sobe apressadamente os degraus que a levavam até à porta e desapareceu da minha vista como se, repentinamente, tivesse sido engolida pela rua de Campolide.
Tinha sido a primeira peta que me pregavam na vida!
" A casa de fora..."
RépondreSupprimer" Os meus olhos furaram a vidraça."
"O que é um comboio? O que é Campolide?"
" Atão, eu não pagava bilhete?"
" O pior de tudo é que eu não tinha gostado mesmo nada da tia Luzanira..."
Uma ternura, ROGÉRIO!
IMPRESSIONANTE!
Por uns momentos, fechei os olhos para pensar...