mardi 14 juillet 2009

O Frederico











As coisas no Restaurante Frederico também não duraram muito. Isto por causa do grande problema que tenho de ter tanto amor aos animais e ficar horrorizado com matanças! Tudo isto só para uns encherem a pança e outros a carteira! Para mim, desde muito pequeno, pensei que os animais só deviam ser de companhia! Mas a Natureza é tão inquietantemente imperfeita que nos obriga a andarmos para aqui a comermo-nos todos uns aos outros, de todas as maneiras!

Na companhia da maternal Dona Carolina e a Menina Alice, a sua sobrinha, vivi momentos repletos de muito amor e carinho, coisa de que tanto precisava!
Eu ajudava na cozinha, a pôr e a levantar as mesas na grande sala de jantar, a fazer recados mas, nessa altura, ainda se matavam em casa as galinhas, os coelhos, e os patos para confecionarem as refeições dos clientes e fazer algum negócio, e isso afligia-me terrivelmente!

Gostava muito da Dona Carolina e dos mimos que ela me dava. Passava as tardes com ela lá em cima, no seu quarto no primeiro andar, onde ela gostava muito de se instalar muito refastelada no seu confortável cadeirão ao canto da janela, bisbilhotando o que se passava na rua e a fazer o seu croché. Era nesse canto que ela, empurrando os óculos em cima do nariz, ia contando as suas malhas e seguindo as instruções dadas no Modas e Bordados. Ao mesmo tempo ia-me ensinando a escrever e a fazer ditados. Ela lia-me algo do Modas e Bordados e eu tinha que, sentado no chão, com o caderno apoiado em cima dos joelhos, como no Cine-Teatro, escrever todas as palavras que ela me ia muito lentamente soletrando. Quando o ditado acabava, ela verificava o meu trabalho e punha um risco encarnado sob os meus erros ortográficos e obrigava-me depois a escrever correctamente essas mesmas palavras dez vezes e ao mesmo tempo que eu as escrevia tinha que as soletrar em voz alta para ela também me corrigir a pronunciação.

A menina Alice vinha sempre por volta das quatro trazer o cházinho e torradas à tia e como sabia que eu gostava muito de pudim flã, trazia-me sempre um a tremelicar em cima de um pires com uma colherzinha ao lado, e um copo de leite frio.

Através da janela eu via o imponente Convento cuja sombra iria ver-me crescer e fazer-me um homenzinho. Entre um ditado e um pudim e algumas festinhas da Dona Carolina, eu olhava lá para fora a ver os meus soldados a passarem na rua. Desta vez não eram os soldadinhos de chumbo que a tia Arminda me tinha comprado na Vila Alberto para eu brincar na varanda.

A dona Carolina tinha uma gatinha angorá preta, que se chamava Boneca, muito rebolona, que eu adorava. Eu dormia num cubículo no sótão com a porta aberta e ela todas as noites subia a escada a correr e vinha dormir comigo e ronronava até eu adormecer.

Eu gostava muito de ajudar a Menina Alice às horas do almoço quando haviam excursões e rajadas de turistas que entravam pela porta dentro como rabanadas à procura de mesa. A Menina Alice entrava em pânico e eu tinha que a ajudar naquilo que podia. O que eu mais gostava de fazer era - ao fim das refeições, quando a Menina Alice me berrava: Sai uma bica para a mesa 16 - eu agarrar em mim e ir todo pressuroso até à máquina de café de saco tratar do assunto. Depois, muito vaidoso, ia levar a bica e copo de água à mesa dos fregueses. Eles ficavam encantados ao verem-me assim tão ajeitadinho e, afagando-me o cabelo, davam-me uma choruda gorjeta! Que bom que era! Agora eu já era autónomo e podia ir à esquina do Sardinha ver o António dos jornais e comprar o meu Mosquito e alfarroba sem pedir nada a ninguém! Pedi à Dona Carolina que me cosesse os bolsos dos meus calções pois que tinha um medo terrível de perder os meus ganhos pelo caminho.

Um dia pedi à Dona Carolina para ir ao cinema mas cinema é que não! Ela explica-me que eu era ainda muito novinho para saír à noite sozinho!

A quebrar a harmonia dos meus dias felizes de menino amimado vieram quase a seguir as violências: as matanças da criação. A Maria José obrigava-me a presenciar esse pavor, pois que eu tinha que - dizia ela - aprender a vida à minha custa!

Um dia ela tem de fazer uma canjinha para a Dona Carolina que estava de cama com uma grande gripe e vai ao quintal e agarra num lindo pombinho todo branco lá no pombal e trás o pobre bicho a debater-se desesperadamente entre as suas mãos e, chegada à cozinha, brutalmente torce-lhe o pescoço e enfia-o numa panela de água a ferver, para melhor o depenar.

Corri aos berros até à Dona Carolina que me aperta nos seus braços muito ternamente e me explica que a vida era dura, mas que tínhamos de respeitar as ordens vindas, segundo ela dizia, de Deus! Na catequese, na igreja de Santo António de Campolide, disseram-me tanta vez que Deus era bom e omnipotente! Então porque razão deixava ele as pessoas torcerem o pescoço aos meus queridos pombinhos que eu tanto adorava?

Nessa noite custou-me imenso adormecer. A Boneca ronronou durante alguns minutos e depois adormeceu. Eu adormeci muito depois dela e tive pesadelos horríveis de pombos a serem trucidados! Eu não percebia lá muito bem porque era que não se podia curar um raio duma gripe com a porra duma aspirina que se comprava na Farmácia do Rolim ou na do Medeiros, por tuta e meia!

Os dias continuaram a passar preguiçosamente e as atrocidades na cozinha continuavam a ser cometidas!

Um dia, pela primeira vez, vi a Maria José agarrar numa lagosta ainda viva, e amarrar-lhe a cauda com uma guita. A pobre da lagosta debatia-se desesperadamente mas acabou por ficar toda tolhida e só podia mexer os olhos. A Maria José emborcou a pobre da lagosta na água a ferver e os guinchos que ela lançava - tal como os do porco do Pedro da Relva - horrorizaram-me de tal forma que em vez de ir a correr a pedir socorro à Dona Carolina, saí desvairado pela porta afora e, correndo como um louco, fui refugiar-me nos braços de minha mãe no Poço do Rei!

Minha mãe ficou desorientada, não sabendo o que fazer de mim. Meu pai estava no escritório com um cliente e pede à minha mãe para me acalmar, que ele subiria logo que pudesse. O meu irmão Alberto ouviu o meu pranto e pergunta à minha mãe o que se passava. Minha mãe levou-me para o quarto dele, contou-lhe rapidamente a história da lagosta e voltou as costas, pois que ela tinha de ir ao hospital fazer banhos de diatermia. Eu fiquei ali ao pé do meu querido irmão, a olhá-lo bem nos seus olhos, aqueles lindos olhos cor de céu duma manhã de Primavera, e tombei-lhe nos braços. Eu queria lá saber da tuberculose! Eu precisava de amor, amor, muito amor, e que me levassem para bem longe deste desnaturado mundo sem dó nem piedade por nada nem por ninguém!

Enquanto minha mãe não regressava do hospital, meu pai, para apaziguar a minha desventura, sentou-se a meu lado e começou a contar-me coisas do seu passado. Que também tinha sofrido muito na vida, mas que a vida era assim feita.

Falou-me dos seus tempos de menino, em Lisboa, quando ele andava no liceu. Falou-me do seu pai, que era Coronel, que se chamava, tal como o meu irmão Miro, Elmiro Ventura. Que o meu avô tinha sido Regedor de Moçambique durante oito anos, que tinha sido um grande amigo de Gungunhana e que quando o Gungunhana, por razões políticas, teve de fugir de Moçambique, tinha vindo refugiar-se em casa do meu avô, ali na rua do Arco do Carvalhão, mesmo em frente da Vila Alberto. Que a minha avó Cordelina tinha bordado para o Gungunhana uma tapeçaria muito bonita. Contou-me também que o pai da minha mãe se chamava Alfredo Cabral e que tinha sido o fundador dos Inválidos do Comécio em Lisboa, em 1929, e que a minha avó Adelina tinha criado todos os seus filhos trabalhando para fora.

Falou-me das suas irmãs todas. A Tia Adalcinda, que tinha fugido para o Brasil e que ele a tinha seguido mas como não gostou do Brasil e tendo muitas saudades de Lisboa, voltou muito rapidamente; a tia Arminda, que nunca casou; a tia Eugénia que viveu sempre à sombra da tia Luzanira e claro, esta que era uma grande beata e que também nunca casou, mas que era uma mulher de negócios e abriu uma capelista em Campolide; que ele tinha sido o único filho e que só ele deixava progenitura; que conheceu a mãezinha na rua Saraiva de Carvalho, quando andava na Escola Politécnica, que se tinham casado na Freguesia de Santa Isabel; que a avó Adelina tinha tido três filhos, o tio António, o tio Artur, e o tio Raul, e quatro filhas, a tia Judite, a tia Carolina e a tia Elisa, mas que ele lhe tinha abarbatado a mais bonita delas todas, a Laura!

Depois falou-me do problema que ele tinha tido com o professor Mauro, por causa dele me ter retirado das suas aulas antes de eu ter terminado a escola primária. Que tinha sido um crime, que eu era o seu melhor aluno, que o professor Mauro lhe tinha feito um processo, que tinha andado em tribunal por causa dessa laracha, e que tinha ganho a causa com a ajuda de uma certidão do Dr. Passos, expondo as verdadeiras razões da minha partida para a Barreiralva, tinha sido para me afastar do perigo de contágio da doença do Alberto.

Eu escutei encantado todas aquelas histórias, mas quando a minha mãe regressou preparou-me um café e broa e eu pensei que estava o caso arrumado mas na minha vida os casos nunca ficam definitivamente arrumados.

O meu pai retirou-se para o seu quarto com a minha mãe e depois chamaram-me e disseram-me que no dia seguinte iríamos até ao Cacém, visitar o meu irmão Zé Manel, que tinha uma pequena fábrica de malhas.

Nessa noite voltei a dormir lá em baixo no escritório do meu pai, sem a minha querida Boneca. O Mário tinha visitas e a cama gingava. No dia seguinte, muito cedo, meu pai leva-me uma vez mais com a minha pequena trouxa até ao Largo D. João V para apanhar a camioneta do Sardinha que nos levaria até Sintra. Chegados a Sintra apanhámos um comboio que fazia uma grande fumarada e que nos levaria até ao Cacém.

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