dimanche 5 juillet 2009

A CARTA DA LILA









Façamos

do Passado

PRESENTE!

Carmen Dolores











A Casa da Brasileira

Tudo em Pratos Limpos

de Rogério do Carmo

Esta manhã, depois de uma noite agitadíssima com pesadelos medonhos, levantei-me a custo e fui até à cozinha fazer um café. Depois segui para a sala para saborear esse mesmo café e fumar o meu primeiro cigarro do dia.

Sentei-me no sofá e olhei o mundo lá fora pela larga janela e vi as árvores baloiçando na ligeira brisa matinal. Olhei as janelas fechadas e silenciosas dos vizinhos da frente e senti como se eu já não estivesse nem aqui nem ali nem em parte alguma...

Olhei para o cesto dos papéis e, junto dele, dei com uma folha muito amarrotada caída no chão. Pensei quase automaticamente que se tratava de algum papel sem qualquer importância que eu na véspera deitara fora e senti-me como aquela folha de papel amachucado, bom para ser também deitado ao fora!
Levantei-me, peguei no papel e quando ia para o repor no cesto apercebi um pequeno poema meu intitulado “Blasfémia”, escrito em Paris no dia 12 de Dezembro de 1988...

Tinha eu então cinquenta e três anos...



Curioso, reli esse poema:



“Sorridente
Frente ao espelho
Como frente a um altar
Fingindo não ser velho
Moribundo no seu leito
Discretamente perguntar:
Mas o que é feito de mim
Do meu corpo escorreito?”
Mas o espelho caiu
O espelho se estilhaçou
O altar desabou
E meu sorriso fugiu!



Este poema fustigou-me brutalmente na minha apatia e muitas perguntas, de mim a mim mesmo, foram formuladas:

Que diabo vim eu fazer a este mundo? Quem me trouxe cá? Que vim eu cá fazer?

Comecei a recuar no tempo, a ir ao encontro das primeiras imagens que se me gravaram no cérebro ainda quase virgem e incauto, e comecei a ver estranhas imagens desfilarem ante meus olhos ainda mal acordados...



Vi a minha irmã Maria Adilia, a quem ternamente chamávamos Lila, a mulher que um dia me enviou uma longa carta a contar-me como tudo aconteceu no dia em que, sem querer, cheguei a este mundo!



E ela contou:



Nasceste na Casa da Brasileira, aquela casa encarniçada ali mesmo à beira da estrada de Mafra à Ericeira - mesmo à beirinha do Pinhal dos Frades - com uma larga vista sobre o imenso vale. A casa que meus pais compartilhavam com a Pitinhas, marido e filhos. Quando meu irmão Carlos nasceu, também a Pitinhas deu à luz uma filha, de quem a minha mãe foi a madrinha e lhe deu a única coisa que ela lhe podia dar. O seu nome: Laura!

Graças a esta carta da Lila, vim a saber que, como a Pitinhas não tinha leite, foi nossa mãe quem amamentou a Laurita, uma rapariga de quem desde sempre, sem saber qual a razão, muito gostei. Só muitos anos mais tarde, intrigado pelo amor que eu tinha a essa mulher, fui elucidado.

Foi a Luizinha, a filha da Laurita, que me confirmou esta história. Fiquei então a saber porquê este meu grande amor pela Laurita:

A Laurita era minha irmã de leite!

Depois, outras coisas a Lila me contou:

Que eu tinha nascido no Sobreiro, na Casa da Brasileira - a tal casa ali mesmo à beira da estrada - no dia 2 de Fevereiro de 1935. Era sábado - dia do São Purificado - que minha mãe me pariu, sozinha no seu quarto, com a porta fechada, abafando seus gemidos, sem autorizar a Lila a entrar no quarto.

Quando a Lila ouviu o meu primeiro grito soaram na pequena torre da Igreja do Largo, ali muito perto, as doze badaladas do meio-dia.


Meu pai tinha ido a correr chamar a parteira mas, como já estava com os copos, caiu num barranco e não conseguiu desenrascar-se sem auxílio. Quando a parteira chegou à Casa da Brasileira, minha mãe já tinha cortado o cordão umbilical!

Muitos anos mais tarde, quando minha mãe nos deixou, fui eu que - também sozinho, não deixando ninguém entrar no meu quarto, abafando os meus soluços - tive de cortar o cordão umbilical que nos uniu e sepre nos unirá!

“Cobri seu rosto gelado e deitei-me depois a seu lado para do mundo me esquecer”!

Mais tarde, meu pai, que trabalhava na Repartição de Finanças em Mafra, dentro do majestoso Convento, esqueceu-se de me registar no Registo Civil e, em Outubro, quando se lembrou de o fazer, para evitar de pagar a multa, registou-me como nascido no dia 2 de Outubro. Assim, tenho dois aniversários por ano. Hoje, em vez de ter 73, tenho 146 anos, embora que, dentro de mim, eu seja sempre esse último rebento que veio a este mundo directamente do ventre dessa mãe às ensanguentadas mãos da corajosa mulher que ela sempre foi!

***

Meus pais casaram-se civilmente em Lisboa, no dia 17 de Setembro de 1919 pelas dezoito horas.
Fixaram residência em Lisboa na Rua do Arco do Carvalhão, 53-1° esquerdo, casa que, entretanto, foi deitada abaixo para dar lugar a mais um supermercado, ou qualquer outro negócio sem história.

Foi nessa morada que lhes nasceu a primeira filha a 14 de Julho de 1920, a quem deram o nome de Maria Adília que, por decisão da mãe Laura, começou a chamar-se Lila. Ela, a Lila, só veio a saber que se chamava Maria Adília no dia em que ingressou na Escola Primária!

No dia 31 de Julho de 1921 nasce o José Manuel; no dia 28 de Janeiro 1924 nasce o Alberto Virgílio; no dia 1 de Maio de 1925 nasce a Maria Luiza. Todos eles nascidos em Lisboa na rua do Arco do Carvalhão.


Depois, em Setembro de 1926, por decisão do meu pai, o Alberto Ilídio, mudam-se todos para o Sobreiro, onde foram viver para a Casa do João Benvindo e aí falece a Luizinha a 29 de Setembro de 1928, com 5 anos de idade, vítima duma meningite, um luto interminável para os meus pais.

Em Março de 1929 nasce o Carlos Simplício.

Em 1930 mudam-se para a Casa da Brasileira onde, no dia 5 de Abril de 1931, nasce o Elmiro Ventura; no dia 8 de Fevereiro de 1933 nasce o Fernando Héleo, o único irmão com quem brinquei e cresci.

Finalmente, no dia 2 de Fevereiro de 1935, nasce o Rogério Francisco, o último embrião do casal Laura Guedes e Alberto Ilídio, o tal que deu o seu primeiro sinal de vida quando soaram as tais doze badaladas do meio-dia na tal torre da pequena igrejinha do Largo.

O tal a quem minha mãe disse um dia:

“Foste o último filho a saír do meu útero, mas na vida serás sempre o primeiro!”



3 commentaires:

  1. A conversa com Lila foi uma forma muito bonita de se narrar a ocasião do nascimento. Aliás, descobri com este capítulo uma curiosidade que guardava silenciosa em mim: de saber mais sobre a cena da minha chegada, suas cores, seus personagens, seus dramas e suas fortunas. As palavras deste texto são de uma intensidade que revelou para mim, no espelho intacto, uma imagem profundamente humana do narrador-personagem.

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  2. Mateus:

    Eu tive a sorte de ter sido o último filho dos oito que a pinha mãe deu à luz e de ter tido a irmã mais velha que ainda estava lá em casa para tudo presentir e um dia tudo me contar.

    O "melhor" ou "pior" (?) ainda está por vir!

    Visita a minha vida de vez em quando. Há ainda muitas surpresas...


    Obrigado pelo teu interesse numa vida sem interesse nehum!
    Abraço!

    Rogério

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  3. Retomei a leitura dos teus" Pratos". Falarei quando assim o entender e quando for capaz. Curioso a Lila só saber que se chamava Adília no dia em que foi para a escola primária e foi triste a Luisinha ter morrido.
    Isto promete, Rogério!
    Simples e sem artifícios, és um delicioso contador de histórias.

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