jeudi 10 septembre 2009

O Cinema

















Tinha ali deixado o meu pai sob a terra frescamente revolvida, levando consigo para a eternidade aquele apelo, aquela sua última vontade, sem que eu tenha tido a coragem de dele me aproximar, de sobre ele me debruçar, de colar o meu ouvido à sua muda moribunda boca, escutar o seu pedido, ou fosse lá o que fosse. Nunca me perdoarei! A minha única consolação foi e sempre será, que ele não ficara ali naquele buraco, completamente só! Ele deitara-se ali mesmo ao pé dos ossos do meu tão querido irmão Alberto, que lhe faria companhia até ao fim de todas as minhas mágoas! Eu agora também ia ter tempo de viver intensamente a vida, o tempo que Deus me havia programado. Ia ainda ter tempo de viajar, descobrir, aprender, “amar este, aquele, o outro, e toda a gente”. Ia poder agarrar em mim e ir por esse mundo fora em busca daquele meu grande amor que para tão longe me fugira! Ele lá estaria à minha espera para me abrigar nos seus braços, com as suas mãos ambas muito abertas para me oferecer o seu amor e toda aquela vida que iríamos viver juntos, aqui, ali, além, e mais adiante ainda!

A minha vida continuou com o peso de mais outro duro luto a macerar. Felizmente tinha o meu emprego, o meu Taínha, o meu Tomás, o meu Gavião, o meu Café do Campo Pequeno, o meu “Love is a Many Splendored Thing” a troco dum escudo. Tinha, sobretudo, a minha vida à minha frente, à minha espera em tantas esquinas por esse mundo fora que me aguardavam impacientemente. A minha correspondência com o Tété continuava assídua. Cada uma das suas cartas era para mim um relâmpago em plena noite tenebrosa. Cada uma das suas cartas se terminavam da mesma maneira: Saudades! Tenho tantas saudades tuas! Devia também agradecer a Deus o facto de me ter posto no caminho o Tomás que me queria só para ele, mas que compreendia o meu desejo de partir. Eu tinha que seguir o meu destino, a minha rota, pois que assim tinha sido escrito, nunca ninguém o saberá bem onde nem por quem. Era o amor? A aventura? Uma promessa a pagar a um defunto irmão que guiavam meus passos para tão longe? Fosse o que fosse, eu teria de seguir esse caminho que para mim tinha sido traçado por sabe Deus que força estranha vinda de ignotas paragens. O meu Destino? A minha Sorte? O meu Fado? A minha Sina?

Comecei a despedir-me de tudo e de todos um pouco mais cada dia que passava. Em silêncio começara a dizer adeus a Lisboa, ao Amaro & Mota - que já começavam a andar envolvidos no projecto da ponte sobre o Tejo - ao Taínha, ao Gavião, ao Tomás, à minha mãe, a todos os meus, duma maneira muito definitiva, como se o meu lugar tivesse sido decidido por Deus, que teria de ser em Israel, nos braços do homem que eu amava. O futuro aguardava-me além mares por mim nunca navegados, terras por mim ainda nunca cavalgadas. Porém, um dia, para tudo vacilar, a tia Alice veio trazer-me uma carta que eu de modo algum esperava. Uma carta do Arthur Duarte convocando-me para estar no dia tal às tantas horas, frente a uma certa garagem por detrás do edifício do Diário de Notícias, para as filmagens duma passagem dum dos seus filmes em preparação, o “Encontro com a Vida”, no qual me tinha sido atribuído um pequeno papel. Esta carta veio abanar rudemente o castelo de cartas onde tinha começado a construir um futuro luminoso e florido pelos cumes do Har Hacarmel, em Haifa. Eu queria tanto ser actor, eu queria tanto ser alguém, mas também queria ser feliz, perto de alguém que tanto amava. Decidi estar presente a esse imprevisto encontro com o cinema português, depois, tal como a morte do meu pai, ficaria livre para levantar voo, abrir as minhas asas na direcção que a sorte me indicava, para bem longe de Portugal. Voltar as costas a uma carreira que se anunciava não era mesmo nada fácil, mas aquele bilhete de barco de Marselha até Haifa era mais forte ainda do que aquele meu desejo tão grande de subir a um palco e perante um público massivo e silencioso, e clamar bem alto:

Eu existo! Estou aqui perante todos vós, mendigando o vosso aplauso! Aplaudam-me! De pé! Não sou nenhuma puta do Cais do Sodré! Sou um homem que sofre, sou um poeta ainda por ser descoberto, lido, cantado! Recuso póstumas consagrações! Amem-me agora, já! Antes que para vocês seja tarde demais! É agora ou nunca! Prefiro agora!

Nessa prevista manhã lá estava eu em frente dessa garagem por detrás do Diário de Notícias. O Arthur Duarte já tinha chegado com todos os seus técnicos, para uma das muitas filmagens de exterior para o seu filme. Apresento-me! Ele “olha-me de alto a baixo” e, pacientemente, explica-me mais ou menos o que se iria passar. Era apenas um pequeno papel, mas todos os actores começaram as suas carreiras assim. Temi que esse começo de carreira desviasse os meus passos do caminho que tanto tinha desejado: Israel! O Arthur Duarte explica-me o que eu tinha que fazer nessa soalhenta manhã de lisboeta, ali tão perto do Marquês de Pombal. Decorei o curto diálogo que me tinha sido proposto, a encenação dessa curta cena desse filme e, depois, fomos todos ali a uma pastelaria tomar um ligeiro pequeno almoço. Durante esses curtos momentos Arthur Duarte relembrou-me que o actor principal do filme chegaria à porta da garagem onde eu supostamente trabalhava, me perguntaria se eu conhecia aquele senhor ao qual eu acabara de encher o depósito de gasolina do seu carro. A minha resposta teria de ser negativa, mais ou menos improvisada por mim, baseada na situação a ser focada. Quando tudo estava preparado em frente dessa garagem para as filmagens, o Arthur diz-me para ir servir o tal cliente que queria encher o depósito do seu carro. Eu saio e, com a experiência que tinha de, no passado, ter feito esse tipo de trabalho no Café Estrela, em Mafra, para mim foi a coisa mais fácil e simples de fazer mas, quando o actor principal do filme me fez um sinal com a mão, o meu coração deu um grito! O actor principal era aquele Rogério que um dia, em Mafra, quando deixou a tropa, se veio despedir de mim, dando-me um grande abraço, dizendo-me:

- Rogério, ainda um dia nos havemos de encontrar sobre um palco em Lisboa!

Esse palco de Lisboa era aquela garagem por detrás do Diário de Notícias, e o actor principal era o Rogério Paulo! O tal que tinha previsto que um dia nos encontraríamos sobre um palco em Lisboa! Depois da ordem -“cortar”, caímos nos braços um do outro. Que surpresa, que contentamento!

Depois fomos todos à Tobis fazer a dobragem dos diálogos. Isto feito, fomos tomar um copo à cantina. Quando o Rogério Paulo se despediu de mim, foi quase como uma ordem:

- Até breve! Sobre um palco de Lisboa!

Depois cada qual seguiu o seu destino. Hoje pergunto-me: Fiz bem, fiz mal, ter deixado Portugal para seguir um amor impossível quando acabava de principiar a realizar um possível grande sonho da minha vida: ser actor! Só Deus é que sabe o que realmente aconteceu nessa manhã! Em Portugal fiz uma carreira de actor dumas tantas horas, fora de Portugal fiz muitas carreiras de muitos anos! Nunca saberei se fiz bem ou mal, mas o que quer que fosse já tinha sido feito! Segundo me disseram um dia, nós já nascemos com o nosso destino traçado! Por vezes bem gostaria de o destraçar e retraçá-lo novamente, de acordo com os meus mais caros sonhos e à minha feroz vontade de vencer, de tudo ultrapassar! Mas como a vida é feita de gostos e desgostos, aqui me encontro neste momento, no dia 10 de Setembro do ano 2009, às seis e quarente e cinco da manhã, a escrever as minhas memórias, a pedido duma grande actriz que admiro e amo: Carmen Dolores! Bem gostaria que um dia isto que estou a escrever neste momento lhe chegasse um dia às suas mãos, para talvez ela se arrepender de várias vezes me ter pedido:

- Rogério! Escreva as suas memórias! Faça do Passado Presente!

Neste momento, abatido pelo cansaço, pergunto a mim mesmo:

Será que quando acabar de fazer do meu Passado Presente, ainda haverá algum Futuro à minha espera, algures, ou a palavra FIM já tenha sido, há muito, escrita pelas mãos do Tempo que nos faz correr para um dia cairmos e nunca mais nos levantar? Será que ainda terei um dia essa transcendente felicidade de um dia subir aos cumes do Har Hacarmel, em Haifa, ao encontro dos braços do Tété?

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