mardi 1 septembre 2009
O Calvário
Depois de ter terminado o meu contracto com o Olympia, minha vida tornou-se num verdadeiro calvário! Senti-me como acartando a minha cruz sem saber aonde a levar, onde a depor! Sem os meus 800 escudos mensais do Olympia, 600 dos quais entraram no mealheiro da Dona Alice e, apenas com 100 escudos de vez em quando da RTP, minha vida tornou-se um degredo infernal! Corri seca e Meca por toda a Lisboa em busca dum novo ganha-pão, mas o Desemprego era o tópico do dia a dia dos noticiários nas rádios e nos jornais. Procurar um emprego através dos anúncios de jornais era como procurar uma agulha num palheiro. Fiz Lisboa a pé do Campo grande à Praça do Comércio batendo a cada porta que se me deparasse, mas todos me enxotavam como se eu fosse uma importuna mosca varejeira! Passei pela loja do Rui para talvez voltar às Pipocas, mas a loja tinha fechado. Pensei em dar um salto a casa dele, mas a imagem dum pecador arrependido batendo à porta de alguém que eu tinha abandonado, deitado fora, repugnou-me! Num arremesso de excessiva dignidade, pus essa possibilidade totalmente de parte. Bati de novo à porta do Schmulevich, na Visconde Valmor, mas ele não precisava dos meus serviços, não teve sequer tempo de levantar os olhos das suas contas-correntes! Pensei em voltar para o Cacém, para a fábrica de malhas do meu irmão, mas isso seria recuar na minha odisseia da conquista dum palco! Gastei os meus derradeiros tostões pondo um anúncio no Diário de Notícias oferecendo os meus serviços como criado de mesa - resposta ao Gavião - mas nunca obtive qualquer resposta. Pensei em ir bater à porta daquele senhor jornalista, na Avenida da Liberdade, que me tinha proposto adoptar-me, mas a idéia de vir a ser um bibelot nas mãos dum senhor sem família nem descendência, teria sido a renúncia à minha liberdade! A Dona Alice começava a entrar em pânico, sabendo-me sem meios para pagar-lhe todos os meses a minha mesada. Um dia, devendo-lhe já mês e meio de pensão, volto a casa depois de ter despendido o meu dia à procura de trabalho, e quando chego à porta do Gavião, naquele segundo andar, direito, encontrei as minhas duas malas à minha espera no patamar. Quando abri a porta e entrei, a Dona Alice friamente arranca-me as chaves da mão, e pede-me para ir morrer longe! Pedi-lhe, quase de jelhos que, ao menos, me guardasse as minhas malas por uns dias! Ela agarrou nas malas, pô-las a um canto do corredor, e prega-me com a porta na cara! Desci e, quase de rastos, fui pela Sacadura Cabral abaixo, até ao Campo Pequeno. Na minha mais cruel humilhação, subo ao segundo andar do Tótó, aquele seu pequeno quarto com porta para a escada, a pedir-lhe asilo. Tótó entreabre a sua porta e pergunta-me o que queria eu? Por cima do seu ombro, vislumbrei um belo jovem recostado na sua cama. Falo-lhe da minha precária situação, mas ele responde-me que vivia agora com um companheiro e, como eu sabia, não havia lugar para três no seu quarto nem no seu coração. Pôs cinco escudos na minha mão e sugeriu que eu fosse passar a noite naquela pensão económica, ali mesmo ao lado. Atirei-lhe com a moeda à cara e desci aos trambolhões pela escada abaixo e fui divagar pela Avenida de Roma em busca dum milagre. O meu tio Artur vivia ali mesmo no Arco do Cego, mas não me rebaixei a ir pedir-lhe esmola, ele que me considerava a vergonha da família! Aí começou a minha penosa escalada ao Monte das Oliveiras, sem nenhuma Maria Magdalena que me viesse enxugar o rosto!
Fui arrastar a minha cruz pela Avenida de Roma, de cima abaixo, sem saber o que fazer da minha vida. Repentinamente começo a ser seguido por um carro que avançava muito lentamente piscando-me com os faróis. Olho para dentro do carro, pensando que era alguém que eu conhecia, e deparo com um senhor de certa idade que, piscando-me o olho, me fazia sinais para eu subir. Com vergonha de mim mesmo, pensando que ele me poderia propor um quarto, uma cama, subi. Porém esse senhor não tinha palavras. Parecia ser mudo. Arrancou com o carro na direcção do Aeroporto da Portela, procurou um recanto tranquilo, arrumou o carro, abriu-me a braguilha, abocanhou o meu sexo, e não o largou enquanto eu não ejaculei. Depois acompanha-me de novo até ao sítio onde ele me tinha pescado, põe-me 100 escudos na mão, e pergunta-me se era ali naquela esquina da Sacadura Cabral que era o meu “sítio”. Aceitei aquela bela nota de Banco, metia-a no bolso, disse obrigado, e que o meu sítio era sobre um palco. Ele arrancou, certamente ofendido, e seguiu, penso, para sua casa, talvez também ali mesmo na Avenida. Esfaimado, enregelado - era quase Natal – meti-me no “Bowling” e comi um combinado, tomei um copo e um café mas, nervos, revolta, vergonha de mim mesmo, vomitei a minha pequena ceia ali mesmo em cima do balcão. Pedi desculpa, tomei uma água das Pedras, e pus-me a caminho da tal pensão económica no Campo Pequeno. Eu precisava de um quarto onde me abrigar do frio, derramar as minhas lágrimas, adormecer e, com a maior das fortunas, nunca mais acordar!
A partir dessa ignóbil noite, os meus dias foram um degradante martírio! Todas as manhãs comprava o meu jornal à cata de anúncios, de um milagre benfazejo que me arrebatasse à minha ignomínia! Porém o mundo, as pessoas, passavam a meu lado sem sequer repararem em mim. Eu era apenas outro transeunte qualquer, sem eira nem beira. Acartava o meu infame destino como quem carrega toda a vergonha do mundo! O meu lugar era sobre um palco, mostrando-me abertamente a um vasto público, não às escondidas pelas brumas do Aeroporto da Portela a prostituir-me! Mas eu não era um prostituto, era a Vida, essa grandessíssima puta, que fez de mim um farrapo, um pobre diabo que não sabia o que fazer de si mesmo! Como ainda viria a acontecer tantas vezes, nesse malfadado futuro que me acenava lá ao longe. Mas eu queria mostrar ao Futuro, à Vida, que quem mandava era eu! Mas o Futuro, a Vida, fizeram-me um manguito e ainda me levaram mais baixo, mais sujo, do que o que as levadas nas sarjetas!
Na Noite de Natal, para me sentir menos só, abandonado, desprezado, fui-me encostar à porta da escada do Gavião. Dali eu avistava todas aquelas lampadazinhas de todas as cores a apagar e a acender, como se fossem pirilampos. Era noite de festa, noite da família, mas fazia um frio de rachar, e eu nem sequer tinha a chave daquela porta de escada. Senti-me tão desgraçado que encostei um braço ao umbral dessa porta, encostei a esse braço a minha cabeça devastada e chorei as lágrimas mais salgadas da minha vida. Fui acostado pelo guarda nocturno, que já me conhecia de vista, que veio, muito inquieto, perguntar-me porque chorava. Solucei-lhe que não tinha a chave para abrir a porta da escada. Ele disse-me que não era preciso chorar, que ele me abria a porta. Ele abriu-a e eu entrei mas, certamente que ele pressentira algo de anormal e, uns minutos mais tarde, volta a reabrir a porta e encontrou-me sentado num degrau, chorando como uma criança abandonada por todos. Ele senta-se a meu lado, envolve-me nos seus braços, e pede-me para não chorar, que tudo se arranjaria. Ele cerra-me muito forte nos seus braços, beija-me a cara, os cabelos, a boca! Nessa noite, enquanto tantos estavam muito animadamente a celebrar a Missa do Galo, eu estava a ser, simplesmente, galado num vão de escada, por um guarda nocturno!
Da Avenida de Roma ao Cais do Sodré são apenas uns passos de uma miséria igual a todas as misérias que nos espreitam por toda a parte! Morto de frio e de fome, fui refugiar-me na Gare do Cais do Sodré onde tinha, quanto mais não fosse, um pouco mais de calor, calor humano, aquele calor que as pessoas emanam dos sovacos, do seu hálito, do seu chulé, da sua indiferença! Nessa Gare, encostado a um poste para não cair de nojo por tudo e por todos, sou abordado por um marujo que, muito gingão, me pergunta quanto lhe custaria um broche, que me daria 20 paus por um broche feito numa escada ali perto. Nessa noite, indignado, recusei, mas nos dias que seguiram, para matar a fome e alugar um quarto para dormir agasalhado, não tive outra alternativa. Eu tinha descido, chegado, aos broches a 20 paus para sobreviver, mas eu sentia, eu sabia, que a vida ainda m'as iria pagar! E a vida, num futuro muito próximo, me iria compensar de todas essas afrontas! Afrontas como naquela noite em que eu, sentado naqueles bancos de pedra à beira Tejo, na Praça do Comércio, com vontade de me deitar ao rio, chorava a minha desdita, fui acostado por um vagabundo, podre de bêbedo, que quando lhe disse que não tinha onde ir dormir, me arrastou até uma espécie de caserna com muitos colchões no chão, onde dormiam, ressonavam, vomitavam,praguejavam, escarravam, dezenas doutros vagabundos sem terem onde caírem mortos. Encostei-me a um canto para ao menos me resguardar desse frio atroz, mas o mau cheiro era tão penetrante e o ar tão irrespirável, que saí para a rua e procurei um vão de escada só meu, que encontraria na Rua da Prata, no 242, que um dia viria a ser a minha escada, quando para lá me mudei para a pensão da Palmira, se bem me recordo. Eu queria esquecer a Berta de Bivar e aquele palco onde eu subiria um dia e gritaria:
-Eu existo! Estou aqui! Não peço compaixão! Peço aplausos!
Nesse momento pensei na Carmen Dolores. Ela já me tinha ajudado uma vez na minha vida, talvez me pudesse ajudar uma vez mais? Ajudar-me a encontrar um trabalho, um emprego, recuperar a minha dignidade, deixar a rua!
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