lundi 31 août 2009

A Dona Carmen









Nessa inesquecível manhã, sou o primeiro a levantar-se no Gavião, o primeiro a abrir a torneira de água fria naquela inóspita casa de banho ali entre a cozinha da Dona Alice e o quarto do Tomás (agora lembrei-me do seu nome) e do seu irmão, os tais dois tipos do Norte que trabalhavam nas obras. Quando saí da casa de banho já a Dona Alice estava na cozinha a preparar o café. Perguntei-lhe se ela queria que eu fosse à padaria comprar o pão, ela disse que sim com a cabeça, e põe-me aquele seu saco de pano com duas borlinhas numa mão e cinco escudos na outra e pede-me para lhe trazer uma dúzia de carcaças. Fui à mexa pelas escadas abaixo até à padaria, ali na Sacadura Cabral, e volto esbaforido com o saquinho a rebentar de papo-secos ainda quentinhos. A Dona Alice serve-me o café e a carcaça toda besuntada de manteiga, que engoli num ápice! Os outros “rapazes” começaram pouco a pouco a correrem para a casa de banho para acordarem com aquele jacto de água fria e a puxarem o autoclismo. Eu abri a janela para fumar o meu primeiro cigarro do dia, pois que a Dona Alice só autorizava “fumaças” nos quartos de cada um ou na marquise, que não queria a sua casa toda enfumarada como se fosse o túnel do Rossio! Sempre que eu abria a janela da casa de fora para fumar, infalivelmente ela me gritava da cozinha para eu fechar a gaita da janela, que fazia corrente de ar!

Depois do pequeno almoço olhei para o relógio e eram apenas oito e meia da manhã, cedo demais para ir bater à porta da Dona Carmen. Como ela morava ali numa rua em frente da Praça dos Touros, ali a dez minutos a pé da Sacadura Cabral, decidi deitar outra olhadela no espelho do corredor para ver se eu estava bem penteadinho, e desci para comprar o meu Diário de Notícias e ir para o Café do Campo Pequeno tomar a minha bica, escutar o meu “Love is a many Splendored Thing”, e espiolhar os meus anúncios todos e assinalar os mais prometedores com uma estrela encarnada que eu fazia com um lápis de cor que eu trazia sempre no bolso. Nesse dia não haviam muitas estrelas encarnadas no meu DN, apenas um anúncio a pedirem mulheres a dias para fazerem limpeza no Cinema Eden. Roguei uma grande praga e disse a mim mesmo que bastava de cinemas. Agora, cinema, só se fosse como actor! Já tinha feito os cinemas todos ali dos Restauradores, só me faltava o Politiama e o Coliseu dos Recreios! Basta!

Olhei milhentas vez para o relógio de pulso que eu tinha, com uma correia de plástico a imitar pele de cobra, e o diabo dos ponteiros só o dos segundos avançava desenfreadamente! Ainda não eram dez horas e eu não queria acordar a Dona Carmen cedo demais! Levantei-me, paguei a minha bica, e fui por aí abaixo até ao Saldanha para ver os cartazes do Monumental, esse teatro onde eu ia tanta vez a uma matiné, e sonhar com a Laura Alves e o Vasco Morgado, e esse meu grande sonho de subir um dia a um palco e gritar à multidão:

- Sou o Rogério do Carmo! Eu existo! Estou aqui na vossa frente! Preciso do vosso aplauso!

Olhai gente,
Toda a gente, olhai!
Não me fixem de soslaio
Discretamente,
Olhai-me bem nos olhos,
Frente a frente,
Para além de todas as regras
E convenções,
E digam-me
se acharam qualquer resposta
Às vossas dúvidas,
Às vossas suposições!

Não!
Os meus olhos vão fechados
E vão desfeitos!
E não há moiros na minha costa
Nem portas secretas
Nem dissimulados alçapões!

Procurai ler a minha história
No livro aberto da noite
Onde as letras sejam estrelas!
Tentai juntá-las
E procurai compreendê-las!

Um dia
Pensei escrever a minha história
Com o fumo enrolado e negro dum vapor
Na linha do horizonte,
Sobre o mar!
Mas ao iniciar a história verifiquei
Que além de amor,
Amor, muito amor,
Eu nada mais tinha para contar!
Por isso nada contei!

Assim deixei o fumo subir
Deixei o barco seguir
E ao mundo as costas virei!


Aplausos! Aplausos! Preciso de aplausos!


***


Entrei no Monte Carlo e tomei mais um café! Eu precisava de café para me dar a coragem necessária de ir fazer face à Dona Carmen, essa mulher da qual eu nunca tinha ouvido falar! Seria que ela me aceitaria como aluno? Seria que ela me levaria muito caro? Seria que ela era jovem e bonita, ou velha e feia como uma bruxa de Sálem? Que me reservava o Destino?

Chegado àquela morada que a Dona Carmen me tinha simpaticamente concedido, abro a porta da escada e entro. Sento-me uns minutos sobre o segundo degrau da escada para me preparar psicologicamente para enfrentar essa desconhecida que ao mesmo tempo me atraía e me apavorava. Degrau a degrau subi até esse quarto andar. Parei em frente dessa porta desse quarto andar, direito, e pousei o meu indicador sobre a campainha (ou bati com as nozes dos dedos?) aguardei uns momentos para recuperar uma vez mais o meu fôlego e ganhar coragem para perturbar a tranquilidade de alguém que eu não conhecia de parte alguma. Estava com uma ânsia enorme de ver a sua cara pela primeira vez, mas a tal vozinha que me vem de lá muito longe me sussurrava: avança! E eu avancei! Apoiei sobre essa campaínha e disse a mim mesmo: seja o que Deus quiser! E Deus quis que esse dia fosse um dos mais felizes da minha vida!

Uma voz muito musical, uma voz que já tinha ouvido antes, pergunta antes de abrir:

- Quem é?

- Sou o Rogério...

...a porta abre-se e uma mulher linda surge ante os meus olhos deslumbrados! Aquela cara era-me, afinal de contas, uma cara que eu tão bem conhecia! Num muito breve espaço de meia dúzia de segundos, a minha infância, a minha meninice, tomaram-me de assalto! Ela era aquela mulher que eu tinha idolatrado, ela era a Teresa de Albuquerque! Uma força também vinda de lá muito longe, me impediu de lhe cair nos braços, de a aconchegar ao meu peito! Ela convida-me a entrar na sala e aponta-me um sofá e senta-se na minha frente, mãos entrelaçadas sob o queixo, cotovelos fincados sobre os joelhos, com uma grande interrogação naqueles seus enormes e bonitos olhos - não sei se pretos se castanhos - de que eu tanto gostava desde pequenino, quando eu ia ao cinema de Mafra ver todos os filmes onde ela entrava, e pergunta-me:

- Ora bem! Diga-me lá então o que o traz por cá?

Troquei-lhe tudo por miúdos acerca do meu grande sonho de ser actor, que tinha sido enviado pelo senhor Armando Marques Ferreira, que precisa de alguém que me ensinasse a dicção, a colocar a voz, a estar em cima dum palco. Não sei se ela, entretanto, tinha falado com o Marques Ferreira, mas a verdade é que esse nosso encontro foi muito rápido! Ela assegurou-me que andava muito ocupada com uma peça de teatro que andava a ensaiar - não sei que peça, não sei que Teatro - que não tinha tempo a dispensar-me, mas aconselhou-me a que fosse falar com uma Grande Dama do Teatro Dona Maria II, que se tinha aposentado depois da morte do seu marido, o imenso Alves da Cunha! Ela deu-me a sua morada ali a Campo de Ourique e, ao fechar a porta sobre mim, desejou-me boa sorte!

Não recordo como cheguei até às mãos dessa outra Grande Senhora do Teatro. Não recordo se lhe telefonei antes de a procurar, se lhe escrevi primeiro mas, uma coisa é certa, nesse dia em que ela me abriu a sua porta em Campo de Ourique e a vi, pequena e frágil ante os meus humildes olhos, beijei-lhe a sua magra e macilenta mão, para não lhe cair aos pés e beijar-lhe aqueles seus diminutos velhos sapatos de trazer por casa! Eu tinha na minha frente, sorrindo-me e convidando-me a entrar, a pequena Grande Berta de Bivar que uma vez tinha visto no Dona Maria II, não sei em que peça, mas quase certo que contracenara com o Alves da Cunha e a Grandíssima Palmira Bastos, que como altiva árvore, um dia morreu de pé, deixando um imperecível grande vazio no Teatro Português! Expus-lhe o meu problema de dicção e voz, das preocupações do Marques Ferreira que me tinha enviado à Dona Carmen, mas a Dona Carmen estava muito ocupada com uma peça que andava a ensaiar. Ela põe-me à vontade e disse-me que para ela era um grande prazer, que ela tinha os dias todos só para pensar no seu passado, que agora, ensinar-me, seria um prazer abençoado por Deus! Perguntei-lhe quanto me custariam as lições e ela, pondo uma das suas trémulas mãos sobre um dos meus ombros, diz-me que não precisava de dinheiro, que tinha uma boa pensão que a confortaria para o resto dos seus dias! Falei-lhe dos meus horários no Olympia, e ela propôs-me duas vezes por semana (não me lembro que dias) das dez da manhã até ao meio-dia, que assim teria tempo de almoçar e chegar ao Olympia a horas. Que começaríamos na semana seguinte, porque ela precisava de se preparar. Depois, essas duas manhãs por semana passariam a ser como uma abençoada gota de água no deserto escaldante dos meus infortúnios!

A minha vida de porteiro do Olympia engrandeceu-se com as minhas idas a casa da Berta. À porta do Olympia comecei a cortar bilhetes como quem corta por um atalho para chegar mais depressa a subir a um palco de Lisboa! No Gavião, a Dona Alice parecia recuperar um pouco das atenções do passado. Ela, nas minhas costas, estou certo, quando falava de mim, chamava-me o “rapaz”, mas a partir dessa altura, não sei por que cargas de água, começou a chamar-me o Senhor Rogério! Isso não me agradou mesmo nada e um dia contestei-lhe que eu não era o Senhor, que o Senhor estava no céu, e que eu estava na merda, e a labutar que nem escravo para dela sair! Ela baixou os olhos, mas, para ela, continuei a ser o senhor Rogério, como ela para mim a Dona Alice, a dona duma casa muito séria, a esposa do Camaradinha, a mãe da Menina Luisa, a patroa do Gavião!

Até ao fim do mês, quando terminei o meu contrato com o Olympia, continuei a fazer de vez em quando figurações para a RTP, e as minhas lições com essa terna mulher que me ensinou tudo ou quase tudo que ela aprendera todo ao longa da sua longa vida de teatro! Eu amava essa mulher como se ela fosse uma Deusa pelos céus a mim enviada! Além das lições ela também procurava sempre saber um pouco mais de quem eu era. Muitas vezes as lições de dicção foram feitas com poemas meus que eu sabia de cor e salteado. Ela apreciava os meus escritos e, quando ela me corrigia e repetia os meus versos, aquilo era como se os meus versos, saídos da sua boca, ganhassem inesperadas dimensões, outra luz, outra música, outro fulgor! Tal como quando, um dia, muitos anos depois, quando a Amália me leu um poema meu que ela queria cantar, o meu poema parecia chegar-me doutra galáxia, de para além das estrelas! Tal como a Dona Carmen, a Carmen, a Carmen Dolores, quarente e nove anos mais tarde, quando do lançamento do meu livro de poemas “Vagas”, numa emissão da RCM - a rádio de Mafra - no programa “Disto é que eu Gosto”, do Rogério Batalha, telefonicamente, nos recitou aquele meu poema de que ela gostou, o “Cais do Sodré”, e que, enquanto ela o recitava, lágrimas ameaçaram tombar dos meus olhos!

E aquele dia, quando deixei Portugal a caminho de Israel, quando me fui despedir da Berta de Bivar, ela, segurando-me ambas as mãos, me disse, lágrimas nos olhos e um soluço na voz:

- Rogério! Você tem tanto talento! Desejo-lhe boa sorte e que chegue um dia a mostrar ao mundo tudo o que você tem a dar! Seja feliz!

Essa frase ainda ecoa na minha alma, e aquelas lágrimas ainda me afogam de saudade! Fui, ou sou, um homem que foi bafejado com essas honras que essas três maravilhosas mulheres me concederam!

Bem hajas Berta de Bivar! Bem hajas Carmen Dolores! Bem hajas Amália Rodrigues! Bem hajas Vida!

Valeu a Pena ter vindo ao mundo, valeu a pena ter nascido!

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