mercredi 12 août 2009

A Fábrica das Malhas no Cacém


Chegado a Mafra voltei a subir aquela escada do 5 Travessa da Narcisa. Ao entrar anuncio a minha chegada para não assustar a minha mãe. Encontrei-a sentada no seu canto preferido: o canto da janela do seu quarto onde ela tanto gostava de fazer a sua renda.

Ao ver-me ela pergunta:
- Que estás aqui a fazer? Porque não escreveste?

Expliquei-lhe tudo o que se tinha passado e falei-lhe do meu sonho de ir até Lisboa procurar trabalho, fazer teatro. Ela, depois de reajustar os seus óculos sobre o seu minúsculo nariz, depôs a sua renda sobre o seu regaço, mostrando-se um tanto em desacordo com os meus planos. Que Lisboa era uma grande cidade cheia de ciladas. Que eu não tinha onde me instalar, pois que a tia Luzanira, entretanto, tinha falecido, que a tia Judite tinha deixado a sua casa na Travessa Cruz de Soure para ir viver em Queluz com a sua filha Maria Emília. Aconselhou-me então a tentar a sorte no Cacém, em casa do Zé Manel, que tinha recentemente aberto uma grande fábrica de malhas de sociedade com o tio Artur, e que andavam à procura de pessoal. Que os meus irmãos Fernando e Carlos já lá estavam a trabalhar, que me reunisse aos meus irmãos!

Depois de uns dias passados em Mafra, alguns bons momentos no Jardim do Cerco, Café Esplanada, e Ericeira, com a Balbina. Assim como bons momentos passados na companhia dos meus pais, um dia agarro uma vez mais na minha maleta e lá apanho a camioneta para Sintra e daí o comboio para o Cacém.
Da estação do Cacém fui a pé até à fábrica, depois de ter perguntado o caminho a alguns passantes. Lá chegado fiquei atónito com a imponência daquela espécie de palacete que era agora a propriedade do meu irmão Zé e do tio Artur. Mesmo à esquina havia um pequeno portão. Pensei que houvesse um badalo ou uma campainha para anunciar a minha chegada, mas nem badalo nem campainha visíveis. Reparei naquela pequena e muito estreita rampa à esquerda da porta e decidi subir para ver se havia alguma entrada pelas traseiras. Ao subir, à minha direita, deparou-se-me uma pequena porta muito humilde, comparada com o esplendor do resto da propriedade. Mesmo assim, como havia uma pequena campainha, decidi tocar. Esperei uns segundos e alguém veio a abrir-me a modesta portazinha que parecia não pertencer à magnificência daquele quase palácio real. Quem me veio abrir foi a Maria do Carmo, a mulher do Zé Manel. Ela ficou estupefacta com a minha aparição mas a sua reacção imediata foi abrir-me a porta e lançar os seus braços em torno do meu pescoço. Depois, alegremente, convida-me a entrar!

Ao entrar pousei a minha pequena mala e olhei em redor. Fiquei pasmado com a imensidade daquela casa por dentro. Tudo era enorme. Ao lado esquerdo o escritório do Zé e do tio Artur, uma vasta sala com duas grandes secretárias e muitas estantes à volta. Ao lado esquerdo uma larga cozinha que me lembrava a cozinha do quartel de Mafra onde eu ia às vezes pedir rancho para não morrer de fome. A minha tia Carolina, a mulher do tio Artur, estava às voltas com uma grande panelão que também parecia ser o do rancho, pois que a família era como uma patrulha, um pelotão a enfartar.

Depois a Maria do Carmo mostrou-me a grande dependência que era considerada a “fábrica”. Haviam quatro operários que manipulavam as máquinas de fazer meias e dezenas de jovens raparigas que coziam e engomavam. O Zé veio ao meu encontro com a sua beata colada ao lábio inferior, como sempre o lembrarei. Ele era um bonito homem. Eu comparava-o ao meu actor preferido (pela sua beleza) o Tyrone Power! Ele deu-me um apressado beijo e disse-me que sabia do meu desejo de me juntar a eles para aprender a fazer malhas. Que a máquina estava ali mesmo à minha esquerda, à minha espera, pois que um dos seus operários tinha imigrado para França. Nas outras máquinas já lá estavam o meu irmão Fernando e o Carlos, que apenas me acenaram, como se tivessem medo de suspender o seu trabalho em frente do patrão.

Depois de ter sido apresentado a todos os operário e operárias, a Maria do Carmo subiu comigo ao primeiro andar onde havia outra grande cozinha, uma sala compridíssima, talvez aí uns vinte metros de comprimento por uns dez de largura, onde havia apenas um pequeno divã contra uma parede e, contra a outra parede ao fundo, uma gigantesca telefonia sobre quatro pés. Ela aponta-me o pequeno divã, dizendo-me que era ali que eu iria dormir. Depois descemos ao ao rés de chão onde, na grande casa de jantar, a tia Carolina estava já a distribuir a sopa por todos os pratos. À mesa iríamos ser oito bocas esfaimadas. Foi aí que vi pela primeira vez a Lurdinhas, a filha do Zé e da Carminha. Ela tinha talvez então três ou quatro anos. Era muito lourinha, tinha uns olhos muitos azuis, e um sorriso muito tímido que pareciam indagar quem seria esta nova cara que de repente ia usurpar mais um lugar à sua mesa. Ainda por cima o lugar que me propuseram era logo ali ao lado da sua cadeira.
O almoço decorreu alegremente. A tia Carolina fazia-me muitas perguntas e o tio Artur, como era seu hábito, procurava sempre rebaixar os outros. Sobretudo o meu pai. Isso sempre muito chateou. A Carminha, a que depois passei a chamar a Maria dos Carmos, pois que era ela quem tratava da família toda. Era eu, o Fernando, o Carlos, e o Zé, todos Carmos, que ela tratava.
A velha história do “cama, mesa, e roupa lavada”!

Depois do almoço o Zé foi mostrar-me o Cacém e a Agualva, para me mostrar onde eram as lojas, se eu precisasse de comprar alguma coisa. Mostrou-me também onde era o Café mais próximo e o cinema lá do sítio, assim como a Pastelaria Primavera, que era propriedade dos tios da Carminha.

Voltado a casa fui descobrir o resto da casa. No primeiro andar, à parte a grande cozinha e a grande sala, haviam ainda muitos mais quartos. A casa estava dividida em dois, metade para o Zé e a outra metade para o tio Artur. A Maria do Rosário, a minha prima, que era muito vivace e um tanto autoritária, parecia muito contente da minha chegada.

Depois do trabalho, os meus irmãos vieram todos sentarem-se na casa de jantar do rés-do-chão. Enquanto aguardávamos que a tia Carolina servisse o jantar, falámos de mil e uma coisas mas em nada em particular. Apenas cada qual dos seus projectos de futuro. O Carlos já falava em casamento.

Depois do jantar fomos todos para a cama e na manhã seguinte agarrei-me à minha máquina de fazer malha e rapidamente aprendi como a utilizar produtivamente. Parti algumas agulhas, mas o Zé vinha logo mostrar-me como o evitar.
Havia também um outro rapaz do Cacém que trabalhava na outra máquina à minha direita, cujo nome esqueci, mas que muito me apeteceu conhecer a fundo! Havia um outro, um tanto introvertido, bastante bizarro, que se chamava António, e que morava na Amadora com os seus pais. Foi com ele que, depois de eu ter confessado que eu não tinha terminado a minha terceira-classe, que ele sugeriu que eu podia ir todas as noites com ele para as suas aulas nocturnas na Amadora, onde ele ia também fazer a sua quarta-classe. O Zé aconselhou-me a que o fizesse e, assim, comecei a sair com o António depois do trabalho e lá ia com ele de comboio até à casa dos pais dele para uma bucha e, depois, para escola.

Essas aulas nocturnas passavam-se ali numa luxuosa vila muito perto da estação dos comboios. A professora era a Dona Carolina, esposa dum coronel, que tinha transformado a sua garagem numa precária classe de aulas. Haviam lá já com ela, alem de mim e o António, mais uma dezena de rapazes. Eu rapidamente me integrei mas chateava-me não ter tempo de jantar em casa com os meus irmãos e quase imediatamente deixei de frequentar essa escola nocturna. Moralidade da história: nunca acabei a minha terceira-classe e o mesmo iria acontecer com a minha quarta classe. De resto, achava o meu trabalho na fábrica muito monótono e sem grande criatividade! Resultado? O convite do Tété veio acordar-me na minha vida rotineira. Gostava do convívio com os meus irmãos e colegas, da Carminha mas, por outro lado, embirrava bastante com a sarcástica e incomodativa presença do tio Artur, embora gostasse bastante da tia Carolina e Maria do Rosário. Sobretudo gostava muito da Lurdinhas e levá-la às cavalitas, lá abaixo ao jardim que circundava o palacete, onde havia um lago redondo entre as escadarias, repleto de peixinhos de todas as cores.

A recordação mais viva que a minha memória reteve foram aquelas sestas que eu fazia com a Lurdinhas toda as tardes no meu divã naquela vasta sala e duma noite quando da gigantesca telefonia começou a saír o Bolero de Ravel e eu dancei-o à volta dessa grande sala perante o resto da família. Depois fui aplaudido, coisa de que sempre muito gostei. A Maria do Rosário disse-me que eu devia ir para Lisboa frequentar uma escola de dança e tornar-me bailarino profissional. Mais uma vez a proposta do Tété me veio à cabeça!

Assim, uma manhã, apanho um comboio até Lisboa e, chegado à Estação do Rossio, pergunto nas "informações" onde era a Rua Silva Carvalho. Disseram-me que bastava subir a Avenida da Liberdade até à Rua do Salitre, apanhar essa rua e, quando chegasse ao Rato, perguntasse a um polícia sinaleiro. Foi o que fiz e assim cheguei à Tentadora sem grandes dificuldades.

Entrei na Tentadora e pedi para falar com o senhor Luís Ferreira. Aguardei uns momentos e logo me aparece pela frente o senhor Luís que me fez uma grande festa. Entrámos no seu escritório e falei-lhe do meu desejo de trabalhar para ele. Ele recebe-me de braços abertos e disse-me que eu podia começar quando quisesse. Depois pega no telefone e diz à Zuzu que aquele rapazinho que tinham conhecido na Casa das Cavacas na Ericeira estava ali com ele. Não sei qual foi a reacção da Zuzu, mas logo que ele pousou o telefone vira-se para mim e disse-me que a Zuzu gostaria que eu subisse. Depois disse-me que bastava, ao sair da Tentadora, virar à direita duas vezes e entrar na primeira porta de escada à direita, e subir ao segundo andar.
Obedeci e fiquei muito sensibilizado com a recepção da Zuzu. Convidou-me a entrar na sua sala e apontou-me um sofá. Perguntou-me o que queria eu tomar? Talvez um cházinho? Anuí. Ela grita para a cozinha que nos fizessem um chá. Tomámos esse chá e biscoitos e a Zuzu declarou estar muito feliz de me ver e que aceitasse vir trabalhar para a Tentadora, que eles gostariam muito de me ter como empregado, porque eu era um bom profissional, que com minha experiência e loquacidade seria ideal para ir trabalhar para o Tique-Taque, um grande Snack-Bar que eles iam abrir brevemente na avenida de Roma!

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