samedi 22 août 2009

O Gavião Branco


Uma vez mais tive de acartar com as malas às costas da Avenida de Madrid até à Sacadura Cabral. Era, praticamente, só atravessar a Avenida de Roma. Era quase em frente! Chegado lá, subir aqueles três andares! Bati à porta e foi a Dona Alice quem me veio abrir. Instalei-me no quarto onde já dormiam o António e o meu irmão Fernando. A minha cama ficava logo ali à entrada, ao lado direito da porta. Era um quarto bastante espaçoso mas apenas com uma janela constituída de três frestas. Além das camas e da janela, apenas um grande guarda-roupa para os três ocupantes. Felizmente, como sempre, tinha poucas roupas. No Tique-Taque tinha os meus uniformes, e depois apenas algumas camisas e uns três pares de calças.

A Dona Alice era uma mulher simpática e sempre muito sorridente. Ela mostrou-me a casa toda. Tinha um pequeno quarto com porta para a escada onde dormiam o Zé Barbeiro e o Guilherme, o galã lá da casa. Tinha a pequena casa de jantar com uma mesa com lugar para seis pessoas, e uma grande janela para a rua. O quarto dela e do marido, o Camaradinha, era o mais pequeno da casa toda. Ao fundo do corredor tinha a casa de banho dum lado o quarto de dois irmãos nortenhos que trabalhavam nas obras, cujos nomes se piraram da minha memória. Tinha também uma grande marquise onde ela passava as suas tardes a lavar roupa, engomar, e a passar a ferro. Por vezes, um bocadinho de renda.

Ela deu-me todas as informações acerca das regras da casa. Cada rapaz pagava 600.00 escudos por mês, o velho sistema de cama, mesa, e roupa lavada. Só um banho por semana! Não trazer amigos ou amigas lá a casa, que era uma casa séria!
Ela tinha uma filha, a menina Luisa, que se tinha casado com um malandro e que se tinha divorciado, e que habitava ali perto. O seu marido, o Camaradinha, trabalhava como electricicista numa empresa qualquer na Baixa. Tudo óptimo para mim. O Tique-Taque era só a uns vinte metros, e tinha o meu irmão como companheiro de quarto e o António, que era um rapaz muito tímido, que não chateava ninguuém. Preparei-me para alo viver tranquilamente por algum tempo. Para mim, ficar muito tempo no mesmo sítio era como marcar passo sem chegar a parte alguma!

Apenas duas coisas eu nunca viria a saber: porque era que a esta pensão particular lhe chamavam o Gavião Branco, e por que razão chamavam Camaradinha ao marido da Dona Alice. Ele era talvez o marido, o pai, mas certamente nunca o patrão. O patrão lá em casa era, sem a mínima dúvida, a Dona Alice, com o seu eterno sorriso e os seus óculos a escorregarem!

No Tique-Taque, tanto eu como o Tété tivemos um certo pouco à vontade, nos primeiros dias. Depois readaptámo-nos rapidamente ao dia a dia corriqueiro das nossas funções. Então tudo me parecia mais fácil, morando ali a dois passos na pensão onde me tinha hospedado. Entretanto, como ia frequentemente a um Café ali no Campo Pequeno, tomar um café e ouvir o grande sucesso desses tempos, do filme “A Colina da Saudade”, aquela maravilhosa cantiga “Love is a Many Spledored Thing” no papa-moedas dessa nova invenção de máquinas onde se introduzia uma moeda de um escudo para escolhermos e escutarmos uma modinha ao nosso gosto incluída no menu, dei com um jovem que morava mesmo por cima desse Café, que também muito gostava desse sucesso e, assim, um dia ele convida-me a subir ao seu quarto para me conhecer um pouco melhor. Ele morava em casa duma tia, num daqueles quartos com porta para a escada. Isso dava-lhe muita privacidade para meter na sua cama quem muito bem entendesse. Graças a ele, quebrei a minha já longa abstinência. Ele chamava-se Tomé mas eu chamava-lhe Tótó. Era melhor um Tótó que nenhum Tété! Ele andava na Universidade a estudar Direito. Com já todos esses seus estudos, ele sabia muito bem como me endireitar. Foi uma relação que durou pouco tempo pois que ele era muito possessivo e eu demasiado inconstante, e sempre a seguir para onde o vento me empurrasse!

O ambiente no Gavião Branco era bastante agradável. O Guilherme, o galã, não me incomodava mesmo nada. Era bonitinho mas tão imbecil que não me despertava qualquer interesse fosse qual ele fosse. O Zé Barbeiro era um belo rapagão que queria ser toureiro e que tinha o físico e silhueta para tal, embora eu, mesmo morando ali a dois minutos a pé da Praça de Touros do Campo Pequeno, detestasse profundamente! Quanto a mim aquilo não era uma arte, era um abuso do homem sobre os animais! Era quase como nos tempos romanos, na arena do Coliseu a abarrotar de selvagens aos berros em cima das tribunas, enquanto os gladiadores se massacravam uns ao outros, e o Nero, baixando o polegar, a ordenava: matar!

O Zé Barbeiro adquirira esse nome por ser barbeiro e trabalhar na barbearia mesmo em frente, onde eu ia cortar o cabelo e fazer a barba. Ele sim, ele despertava em mim uma certa muito irrequieta parte do meu corpo, mas nunca pus o pé na argola. Apenas uma vez, quando comparávamos o tamanho das nossas bandarilhas, para ver quem é que dizia: Ólé! Certamente que, se ele me tivesse dado uma boa estocada, me teriam cortado as duas orelhas! Várias outras vezes tive vontade de jogar esse mesmo joguinho mas as ocasiões nunca se apresentaram! O António era um bom rapaz, mas tão introvertido que nenhum gozo me dava. O Fernando, esse, sempre muito dependente de mim até ao dia do seu casamento com a Lucília, era um tanto como a PIDE lá em casa.
Fui ao casamento do Fernando e da Lucília, ali na igreja na Igreja de São João, na Praça de Londres. Foi um belo dia para os noivos e todos os convidados. Depois eles partiram para Paio Mendes, para a sua lua-de-mel na bonita casa onde a Lucília nascera, onde então habitava a sua velha mãe já um tanto dependente. Depois da lua-de-mel o Fernando voltou à Fábrica de malhas do nosso irmão Zé, no Cacém, e eles encontraram ali mesmo à porta da fábrica um belo apartamento onde se instalaram e fizeram dois filhos. Como a Lucília tinha o instinto do negócio e o Fernando andava farto de malhas, mudaram-se mais tarde para Olival de Basto, onde se instalaram confortavelmente. A Lucília abriu um pequeno comércio de mercearia, e aí viveram muitos anos!

A única coisa desagradável que aconteceu durante esse período no Gavião Branco foi, um dia a Dona Alice decidiu ir passar um fim-de-semana a Loures, em casa da sua irmã, na companhia do Camaradinha. A Dona Alice tinha instalado um telefone só para receber chamadas, pois que o disco para se poder discar um número estava aferrolhado com um cadeado. A Dona Alice passava a vida a cavalo na sua telefonia que só se ligava para ela ouvir os seus folhetins radiofónicos. Quando eram horas de ouvir “A Coxinha” ela desligava o telefone e a campainha da porta, pois que ela se punha literalmente a cavalo na telefonia e podiam cair bombas que ela não arredaria pé! A RTP (Rádio-Telavisão-Portuguesa) acabava de ter sido lançada, mas a Dona Alice não tinha os meios para comprar um televisor. Assim, a telefonia era a sua compensação. Eu já tinha começado a fazer figuração na RTP. Eles tinham posto um anúncio no Diário de Notícias a pedir figurantes e eu fui logo a correr! Fui a pé pois que eu corria mais rápido que os eléctricos do Campo Pequeno até ao Lumiar. Sempre que havia algo na RTP onde eu aparecesse íamos todos ver-me num pequeno Café da Avenida de Roma que tinha instalado um televisor para atrair mais clientela. Essas noites, para o meu ego, eram como dias de feira. Quando eu aparecia todos batiam palmas, mesmo que se tratasse dum filme muito dramático. Os outros clientes ficavam espantados, pois que nem sequer se apercebiam que era a mim que eles aplaudiam. Isso frustrava-me profundamente! Teria preferido que alguns deles me tivessem vindo pedir um autógrafo! Ora, como estava a dizer, quando a Dona Alice foi passar esse fim de semana a Loures, como ela não queria que gastássemos muita electricidade, e como o contador de electricidade se encontrava no corredor, ao pé da porta de se saída (e entrada) ela tirou os fusíveis e escondeu-os no seu quarto, cuja porta ela fechou à chave, pondo as ditas na sua malinha de mão. Nós ficámos furiosos, pois que embora fossem apenas dois dias, foram dois dias sem luz! À noite andávamos todos às apalpadelas com uma pilha de bolso para ir à casa de banho ou dum quarto para o outro. Ora nesse domingo havia um grande desafio de futebol entre o Sporting e o Benfica. O Guilherme queria por força ouvir o relato na telefonia mas não podia porque não tínhamos electricidade. Eu, que nunca fui nada de futebóis, mas como era muito benfiquista porque eles tinham um avançado-centro muito bonito que se chamava Rogério, também quis ouvir esse relato. O Zé Barbeiro sugeriu que podíamos ir até ao Café da Avenida de Roma ver o relato na televisão, mas eu decidi que ouviríamos o relato na telefonia da Dona Alice, pois que para isso pagávamos 600 escudos por mês para cama e mesa e roupa lavada! E telefonia, se faz favor! Como o meu quarto e o quarto da Dona Alice eram separados por uma porta interior, cuja, do lado do meu quarto, estava oculta por um largo guarda-roupa, e do lado da Dona Alice por um guarda-vestidos, passou-me pela cabeça desencostar o meu guarda-roupa para ver se essa porta também estava fechada à chave. Aí o grande problema! Essa porta não estava fechada à chave! Empurrei a porta que abria para o lado da Dona Alice, só uma gretinha para me deixar passar. Passei, olhei em redor e vejo os fusíveis um ao lado do outro a fazerem ó-ó muito tranquilamente em cima da mesa de cabeceira. Acordei os pobres dos fusíveis, agarrei neles e instalei-os lá, donde eles nunca deviam ter saído! Assim ouvimos o relato. Fiquei lixado pois que foi o Sporting que ganhou por causa daquele malvado de Peyroteu! Mas como a Dona Alice estaria de volta dentro de algumas horas, voltei a pôr os fusíveis na caminha. Regressei ao meu quarto pela estreita greta da porta, puxei docemente contra mim o guarda-vestidos da Dona Alice, mas ficou uma pequena greta entre o guarda-vestidos e a porta. Empurrei o meu guarda-roupa contra a parede e, Ponto Final! Mas esse ponto final saiu-me uma pobre vírgula sem defesa! A Dona Alice tinha um belo elefante de mogno em cima do seu guarda-vestidos, e o raio do elefante, para me estragar o arranjinho, caiu-me de pantanas. Ora a Dona Alice quando regressou foi direitinha ao seu quarto para ir buscar os fusíveis para ela poder ter luz e ligar a sua telefonia. Quando a luz deu à luz a Dona Alice deu com o pobre do elefante a fazer uma soneca em cima do seu guarda-vestidos. Imediatamente percebeu que alguém tinha entrado no seu quarto por essa porta que dava para o meu quarto. Nós estávamos todos muito felizes de termos a luz de volta, e no quarto do Guilherme e do Zé Barbeiro, havia uma grande algazarra acerca do Sporting-Benfica. O Zé era benfiquista e o Guilherme era sportinguista. A Dona Alice bate à porta deles e pergunta o que se passava? Para quê tanto chiqueiro? Onde é que ouviram o relato? Na minha telefonia, está visto, pois que o meu elefante tinham-lhe partido a tromba! Queria imediatamente saber quem foi o abusador que entrou no seu quarto para sacar os seus fusíveis! Eu, como sempre, muito assumido, disse que tinha sido eu, pois que não tinha achado justo que ela nos tivesse deixado dois dias sem electricidade! A Dona Alice muito arreliada, aponta-me a porta e, em altos berros, pediu-me para agarrar nas minhas coisas e tirar o cu da sua casa! Os outros rapazes intercederam, que se sentiam também responsáveis e que, de resto, ela não tinha o direito de me pôr fora antes do fim do mês. Ela aquietou-se um pouco, volta as costas dizendo: Assim Seja! E nós acrescentámos: Ámen!

Chegado esse fim do mês, como a Dona Alice nunca mais tinha falado no assunto, continuei no Gavião Branco, e lá ia todos os dias, às cinco da tarde para o Tique-Taque em busca do meu Tété...

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