mercredi 19 août 2009

O AVIS
















No Avis a vida começou a correr-me melhor. Fora da alçada do Soares e agora nas mãos do Santos, que era para mim como um irmão mais velho, a vida sorria-me duma maneira muito mais descontraída.

Gostava muito da Dona Zita, que era a chefe das bilheteiras, e de todos os meus colegas. Foi uma fase bastante curta da minha vida, pois que O Tété metia-se em cavalarias altas e todos os lucros do Roma e do Avis - que se iriam muito em breve por água abaixo - evaporavam-se misteriosamente. No entanto, enquanto a coisa durou, eu fui muito feliz!

Estavam a mostrar então um filme sublime: era o “Madame Butterfly”, uma ópera de Puccini filmada nas belas montanhas do Japão, com actores profissionais dobrados pelas vozes de grandes sopranos e mezzo-sopranos, tenores e barítonos, grandes vozes líricas dessa época bafejada da minha vida.

No Avis havia muito menos trabalho. Era um cinema mais pequenos que o Roma, menos lugares, menos espectadores, menos clientes no Bar. Com os colegas tudo se passou pelo melhor, excepto um pequeno detalhe: O Tété, como eu tinha umas unhas muito bonitas, queria que eu fosse à sua manicura uma vez por semana, para ela me tratar das unhas e envernizá-las. Por essa razão ele não queria que eu lavasse os copos e as chávenas, que não molhasse as mãos. Assim, quem tinha de lavar a loiça toda era a Esperança, uma rapariga simples que morava no Alto da Serafina. Éramos muito amigos mas o facto de eu não tocar na loiça levava-a aos arames! Expliquei-lhe que eram ordens do Tété e ela começou a pensar e a dizer a quem calhava que eu e o Tété éramos amantes. A verdade é que, realmente, nunca nada se passou entre mim e o Tété, mas era evidente que o Tété tinha uma ternura muito especial pela minha pessoa. O Santos ficava muito espantado com todos aqueles rumores, mas continuava a ser aquele que eu ainda hoje considero um dos melhores amigos que tive na minha vida!

O meu dia a dia era chegar ao meu emprego por volta das duas da tarde para preparar tudo para a primeira matiné. O meu trabalho consistia apenas em tirar os cafés daquela famosa máquina dos Cimbalinos e, depois, meter-me por detrás duma cortina, durante a projecção do filme, a ver Madame Butterfly todos os dias três vezes por dia. Com esse maravilhoso filme aprendi a gostar de ópera e a interessar-me pelos cantores líricos dessa época. Um dos meus sopranos favoritos passaria a ser a Renata Tebaldi e o Beniamino Gigli enchia-me os ouvidos e alma de amor pela Ópera. Cheguei mesmo a comprar um disco de 78 rotações com essa ópera de Puccine. Disco esse que ainda conservo aqui entre as minhas velhas recordações que são agora relíquias desse meu já tão distante passado, quase de valor de antiquária!

Esse disco andou na minha mala desde essa data até aos dias presentes. Viajou comigo por esse mundo fora e, quando eu trabalhava em Zefat, em Israel, num hotel que tinha um grande terraço que dava sobre aquelas belas montanhas, ao pôr do sol eu punha o disco a girar naquele sistema sonoro que invadia o hotel todo, e ia para o terraço escutar essa obra-prima de Puccini contemplando esse sublime adeus ao dia que a natureza nos contempla todas as tardes, tingindo o céu de todos aqueles radiosos tons de púrpura anunciando que mais um dia das nossas vidas se foi para dar lugar a mais uma noite de repouso até ao alvor que ciclicamente nos desperta com os primeiros raios desse sol que infatigavelmente roda à volta deste planeta onde vivemos, esse planeta que um dia apagará todas as nossas chamas. Era um êxtase para mim e para todos os hóspedes que se sentavam nesse terraço a tomar um aperitivo antes de jantar.

Um entardecer em que não tive tempo de ir escutar a Madame Buterfly, um hóspede vem ter comigo à recepção, a perguntar-me se a Madame Butterfly estava de folga nesse dia, que a sua esposa - uma americana de certa idade com brincos pendurados nas orelhas que lhe desciam até aos ombros - me pedia encarecidamente que eu pusesse esse meu disco a rodar, pois que eram os melhores momentos que ela passava no hotel, o Hotel Rakeffet, que eu também tanto amei, e que hoje é apenas um Lar para os velhos ricaços lá do sítio. Esse sítio deslumbrante afagado pelas silenciosas montanhas que a cada instante mudam de cor. Sítio esse, hoje quartel general dos ortodoxos a porem uma sombra negra nessa paisagem inqualificável!

Uma das mais bonitas recordações desses tempos do Avis foi aquela festa de aniversário desse cinema, quando o director organizou um “party” com muitos petiscos e bebidas, que convidou todo o pessoal para essa ocasião muito especial, tendo mesmo fechado as portas do cinema da parte da tarde. Nessa tarde não tivemos as duas matinés, apenas a sessão nocturna. Foi uma festa de arromba! A imprensa estava presente, e um dos fotógrafos fez fotografias de tudo e de todos. A Rita estava linda nessa tarde e foi ela a rainha dessa inesquecível festa!
Uma tarde, o fotógrafo veio oferecer-me uma cópia duma foto que ele me tinha tirado. Foto essa que também ainda conservo como uma relíquia encontrada nas escavações arqueológicas do Tempo e da Memória!

A fatalidade andava no ar! O Tété, cabecinha tonta, com a mania dos negócios e das grandezas, em busca da sua independência, de não viver às sopas do papá, meteu-se em negócios turvos, e foi tudo por água abaixo! Ele perdeu o Bar do Roma, assim como o do Avis, e teve de voltar aos domínios do seu pai. Assim eu e ele voltámos para o Tique –Taque, e os outros meus colegas foram à vida! Nunca mais soube nada deles! O destino nos reúne, o destino nos separa! As únicas coisas que me ficaram desses belos tempos do Avis foram uma foto e um disco que eu acartaria através do mundo, disco que escutaria quase todos os dias durante a minha longa vadiagem por alguns continentes:

“Madame Butterfly”!��

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