O meu dia a dia era uma permanente repetição do dia de ontem e uma antecipação do dia de amanhã! Levantar-me às sete da manhã, descer, dar os bons dias à Glória, tomar o pequeno almoço com os outros colegas, preparar tudo antes de abrir as portas do Café. A partir desse momento era um vaivém de clientes apressados que queriam ser atendidos prontamente para depois seguirem para a praia. Durante todo o dia haviam sempre muitos outros clientes a servir. Nós quase que não tínhamos tempo de ir à casa de banho lavar as mãos ou satisfazer certas necessidades fisiológicas. Tampouco tempo para ter uma curta conversa com um cliente. Tudo era feito a despachar. O trabalho era muito, mas ao menos não tinha que sofrer os gritos das vítimas do charlatão e ainda por cima as gorjetas entravam na minha bolsa à cintura para os pagamentos e trocos aos clientes. Nós íamos às mesas perguntar o que os clientes queriam tomar, depois íamos à copa comprar as bebidas encomendadas, pagávamos ao empregado por detrás do balcão e, depois, os clientes pagavam-nos a despesa. Por sorte todos os clientes pagavam sem protestar e ainda por cima nos davam a tal tão choruda gorjeta! Alguns dos meus colegas queixavam-se que alguns dos seus clientes partiam sem pagar, mas a mim isso nunca aconteceu! Ao fim do dia eu não tinha que fazer contas. O que me ficasse na minha bolsa pendurada à cintura, era dinheiro meu! Pela primeira vez na minha vida, abri uma conta no Banco mesmo em frente para saber onde pôr o dinheiro. Guardava um pouco de trocos no bolso para despesas pessoais e ter depois trocos para comprar as bebidas dos primeiros clientes do dia seguinte de manhã.
A recordação mais marcante desses tempos do Café Chico foi, essa inesquecível tarde, quando eu estava encostado à minha porta a tomar conta dos clientes sentados na esplanada e a ver passar os veraneantes quando, de repente, vejo uma mulher linda descendo a rua, na companhia de três homens muito bem arreados. A sua cara não me era estranha e muito surpreendido fiquei ao ver as mulheres de pescadores locais ao passarem por ela fazerem o sinal da cruz. Fiquei intrigadíssimo! Eles procuraram uma mesa na esplanada e sentaram-se. Fui ver o que queriam tomar e eles pediram quatro cervejas Sagres. Olhei de perto aquela cara de rainha que me era tão familiar mas sem conseguir chegar a nenhuma conclusão. Ao entrar para ir à copa pedir as quatro cervejas o empregado diz-me muito alvoroçado:
- É pá! Mas que sorte! Vais servir a Amália Rodrigues!
Caíram-me os braços ao chão! A Amália? Enfim! Eu ia conhecê-la pessoalmente!?
Enquanto lhes servia as quatro cervejas as minhas mãos tremiam como varas verdes. Tive uma vontade louca de lhe dizer que a ouvia na telefonia desde 1940, na Rua do Arco do Carvalhão, ali sentado naquela Bica mesmo encostada ao Aqueduto. Claro que não ousei. Encostei-me à minha porta ali fiquei o tempo todo a olhar para as suas costas. Ela tomava a sua cerveja em pequenas goladas, enquanto acomodava a sua bela cabeleira, e falava com os tais três senhores muito bem trajados. Ouvir a sua voz mesmo apenas a falando deu-me arrepios. Pela conversa percebi que os tais senhores eram os seus guitarristas, e que estavam acampados na Foz do Lizandro.
- Vocês sabem? Aqui na Ericeira, as pessoas simples chamam-lhe a “Nossa Senhora do Fado”!
Fiquei com pena de não ter ficado com um autógrafo dela ou qualquer outra coisa. Pesarosamente levantei a mesa. Essas quatro garrafas de cerveja e os quatro copos do Chico era tudo o que me tinha ficado. Ao pousar os copos sobre a bandeja, Santo Deus! Um dos copos, o copo da Amália, tinha ficado estampado com o batom daquela sua famosa boca! Aquele beijo da Amália ali retido naquele copo!
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