samedi 15 août 2009

A Pensão Areeiro

Para mim era verdadeiramente um luxo morar naquela pensão ali mesmo no Areeiro, uma das pérolas das avenidas novas. O supra-sumo da alta sociedade lisboeta desses tempos, para aqueles que ainda não tinham casa em Cascais. Os outros hóspedes eram realmente muito arrogantes e olhavam-me indiferentemente como se eu fosse lixo que devia ser deitado fora. Eu não pertencia ali naquelas altas esferas. Eles se calhar tinham sido natos e criados no Bairro da Lata, ali em Campolide, mas ambicionavam mudarem-se para o Palácio de Queluz o mais rápido possível! Entretanto teriam de se contentar com a Pensão Areeiro, ali nas Avenidas Novas! Já era qualquer coisa. Isto até poderem comprar casa em Cascais ou na Malveira da Serra! Eu também não lhes passava cartão nenhum. Achava-os lamentavelmente pirosos.

Houve porém, um incidente curioso. Quando eu chegava “a casa” deitava sempre uma vista de olhos pelo bengaleiro instalado logo no hall de entrada, onde a “patroa” costumava pôr o correio recebido para os seus distintos hóspedes. Um dia vou rebuscar as cartas todas para ver se havia alguma para mim e esbarro com uma de costas para cima, com a morada do remetente. Ora o remetente dessa carta era o do João Paulo Santiago, de Leiria. O meu velho amigo doutros tempos! Fiquei excitadíssimo! Pego na carta e vou a correr para o meu quarto e abro-a ansiosamente para ver qual a razão o João Paulo me tinha escrito, e como tinha ele sabido da minha morada. Começo a ler essa carta que começava assim:

“Caro Zé:”

Imediatamente compreendi que, por lapso, tinha entrado na vida dos outros! Volto o envelope e vejo que a carta tinha sido endereçada ao:

“Exmo. Senhor José Maria de Sá Caetano”

Repus a carta dentro do seu envelope e vou em busca da “patroa” para lhe explicar o que se tinha passado. A senhora dona “patroa”, pega na carta e disse-me que esse senhor habitava o quarto ali mesmo ao lado do meu. Pedi-lhe que lhe entregasse a carta com as minhas desculpas pelo meu engano. A senhora bateu à porta desse quarto e como não obteve resposta, meteu a carta por baixo da porta. E assim a assunto parecia ter ficado arrumado.

Dias mais tarde alguém bate à minha porta e apresentou-se como sendo o Exmo. Senhor José Maria de Sá Caetano. Pedi-lhe imensa desculpa e ele pareceu muito surpreendido de termos um amigo em comum: o João Paulo Santiago! Convidei-o a entrar e ofereci-lhe a única cadeira que tinha no meu quarto, a tal de dois braços , junto à janela, para onde eu atirava todas as noites a minha roupa para cima, quando, muito estafado, a altas horas da noite, voltava do Tique-Taque e me despia para ir para a cama!

Ele acomodou-se e eu sentei-me numa das esquinas da minha cama. Ele pareceu-me ser um homem muito reservado, um tanto distante, como se não tivesse mesmo nada a ver comigo. Um pouco como todos os outros hóspedes, simplesmente, entre nós dois havia algo de maior ou menor importância: ambos éramos amigos do João Paulo! Ele acomodou-se um pouco mais confortavelmente na sua cadeira de braços, disse-me que era de Leiria, e que era um grande amigo do João Paulo. Donde é que eu o conhecia? Disse-lhe que o conhecera em Mafra, onde ele fizera a sua tropa. Conversámos um pouco sobre esse estranho incidente e quando pareceu não haver mais nada a dizer, ele desculpa-se dizendo que trabalhava no Aeroporto da Portela, na Torre de Controlo, e que tinha de pegar o serviço dentro de uma hora. Apertou-me a mão e saiu apressadamente para não chegar tarde ao seu posto de muita responsabilidade nessa torre.

Depois deste encontro ainda esbarrámos um contra o outro na casa de jantar e algumas palavras foram trocadas. Uma vez falou-me dum projecto do João Paulo de deixar Portugal para se instalar na Rússia, se bem me recordo. Essa nossa passageira amizade foi de pouca dura mas, mesmo assim, um dia ele apresentou-me uma bela loira, a Berta, com quem tencionava casar muito em breve. Ela era uma rapariga encantadora, muito aberta e sociável. Um pouco do contrário do Zé, como comecei a tratá-lo. Eu não compreendia muito bem a personalidade do Zé. Ele parecia-me vítima dum complexo de superioridade mas, a meu ver, aquele complexo de superioridade era talvez a mascarar um outro complexo ainda muito mais complexo: o de inferioridade. Um pouco como os homens de pequena estatura que se dão grandes are a tentarem disfarçar a sua pequenez. O Zé não era nem grande nem pequeno, era um homem de estatura normal mas, não sei por que carga d’água, não se sentia bem dentro da sua pele. A verdadeira razão nunca a vim a saber.

Muitos anos mais tarde viria a reencontrá-lo em Londres, de ter gozado a sua hospitalidade, enquanto eu não encontrava casa própria. A Berta continuava encantadora, mas desta vez muito morena e um nadinha mais redonda. Eles tinham-se casado em Portugal e depois seguido para a Inglaterra em busca de melhores oportunidades. Eles tinham um filho aí dos seus dois anos que se chamava Paulo. Paulo era um miúdo tão divinamente encantador que lhe chamávamos Papu. Ele começou a ser o meu Papuzinho e Pauzinho ficaria para o resto da minha vida!

O nosso convívio não durou muito porque o meu quarto na Pensão Areeiro me custava uma pequena fortuna e decidi procurar quarto algures menos dispendioso. Acabei por encontrar um belo quarto numa outra pensão um pouco mais modesta e muito menos dispendiosa, na avenida Guerra Junqueiro.

A partir do dia em que deixei a Pensão Areeiro nunca mais tive qualquer contacto come o Zé, até essa data em Londres. Porém, nessa muito decente pensão da Guerra Junqueiro comecei a receber as visitas da Balbina, a minha querida Silvina. Mas como era uma pensão muito decente, não me autorizaram a receber mulheres no meu quarto e assim os meus encontros coma Balbina passariam a ser em Restaurantes, Cafés, e Cinemas. A Zinha vinha com frequência passar os meus dias de folga comigo. Não recordo exactamente qual o dia da semana, mas parece-me que eram as quintas-feiras. Ora, como eu não estava autorizado a receber mulheres no meu quarto, comecei a receber gajos que engatava na Praça de Londres. Mas depois de alguns corpo a corpo às escuras no meu quarto, também me proibiram de receber homens! Moralidade da história, em Portugal, nesses dias, era-se preso por ter cão e preso por não o ter! Recordo uma noite ter dado uma grande gargalhada ao pensar que talvez nessa pensão não fossem autorizadas mesmo as masturbações. Isto para não dizer punhetas!

Logo a seguir pensei:

Oxalá não seja também proibido rir neste país retrógrado! Eu quase que fugira de Mafra para me libertar das mentalidades dos mafrenses, escravos do que os vizinhos podiam pensar ou dizer, amarrados a tradições dos tempos da Maria Cachucha!

Gradualmente começou a alojar-se na minha mente um desejo renitente de mudar de país, mudar d’ares, mudar de culturas, mudar de língua, mudar de roupagens, mudar de vida!

Ir morrer longe!

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