Aparentemente eu tinha muito jeito para decorar as vitrinas e a Condotti tinha uma para a avenida de Roma e outra para a Sacaura Cabral! Foi ela, a Rita, quem me apresentou o Engenheiro Roque, que era uma homem muito belo e incerto acerca da sua sexualidade. Ele era definitivamente homosexual, mas tentava enganar os outros e a si próprio, mas sem realmente conseguir enganar fosse quem fosse. Foi ele que depois me confiou o trabalho de fazer as vitrinas do cinema Império e mais algumas botiques das Avenidas Novas. Tentei várias vezes seduzi-lo - ele passava as noites todas no Tique-Taque, a tentar seduzir o Tété, e estou quase certo que o Tété lhe fez o gosto ao dedo! E a outras coisas. - mas ou eu talvez não era o seu tipo de homem - não bom que chegasse para as suas sedas - ou receava que “se viesse a saber"”. Os tais tabus altamente hipócritas impostos por uma intransigente sociedade. Alguns dos portugueses que censuravam esta, como eles diziam, ultraje à masculinidade, alguns deles os apanhei nos parques de Lisboa em busca da realização dos seus “tão degradantes” fantasmas.
Eu continuava doentiamente enfatuado com o Tété mas não ousava deixar transparecer os meus sentimentos, temendo perder o meu emprego, e todo qualquer outro contacto com esse homem que eu idolatrava. A única solução para mim era trabalhar. Trabalhar para ganhar mais umas patacas e para que quando eu caísse à cama adormecesse imediatamente e não ter tempo sequer de apenas desejar ter o meu Tété ali a meu lado, beijar a sua boca, senti-lo nos meus braços, morder-lhe aquele lindo nariz arrebitadinho que me punha louco. Eu sabia que nunca realizaria aquele meu tão grande desejo que tinha de o esmagar sob o meu corpo, penetrá-lo até à raiz do meu sexo sempre brandindo por ele. Assim eu inventava trabalhos suplementares para me impedir de ter tempo de pensar nele nem na minha absoluta condenação a ter que abdicar ao seu amor, ao seu corpo, à sua vida. Só me autorizava certos delírios solitários!
Entretanto o Tété e a Rita tinham-se mudado do Rato para aquele moderno prédio cor-de-rosa do Areeiro. Depois de lhes ter nascido a Anaís - a única flor a despontar daquela estranha união entre a Rita e o Tété - precisaram de mais espaço. Anaís quase que cresceu no Tique-Taque. Ela era um bebé absolutamente fora deste mundo. Era um encanto vê-la vaguear entre aquelas cadeiras todas do Tique-Taque.
Uma noite eles quiseram ir a uma grande festa na Embaixada de Israel em Lisboa e, como era o meu dia de folga, pediram-me para eu ir tomar conta da Anaís nessa noite. Nessa noite, antes de partirem, o Tété pôs à minha disposição o seu mini-bar e toda a sua biblioteca. Passei esse serão, até muito tarde, e visitar a sua vasta biblioteca muito rica em livros de arte e de ballet. Entre esses livros, encontrei alguns álbuns de fotografias da família e passei todo esse serão a ver o meu Tété crescer. Haviam fotos dele desde o berço até aos dias de então. Também vi muitas fotografias da Rita, que tinha nascido na Áustria e crescido em Lisboa, pois que para fugirem ao nazismo, os pais dela tinham vindo procurar abrigo nesta cidade, onde abriram aquele negócio de malhas na Visconde Valmor A Anaís não acordou uma única vez. Fui eu que tive de ser acordado quando eles regressaram da festa da Embaixada porque, depois duns whiskies e de ter fechado o último álbum, também, sem querer e sem dar por isso, adormecera.
O Tique-Taque começou a ser frequentado por uma bela senhora da alta que, fizesse frio fizesse calor, andava sempre de casaco de peles. Ela era uma mulher muito bonita e cortejada. Claro que o Tété já a tinha frequentado no 26 Rua Feio Terenas, onde ela habitava. Ela tinha um grande apartamento com uma enorme sala. Penso que o pretexto do Tété para estar com ela foi alugar essa sala como seu escritório privativo. Era evidente que essa senhora, a Dona Maria de Lurdes, se aproveitou dessa desculpa para o levar para a sua cama.
Mudei-me para a Rua Feio Terenas carregando a minha mala com meia dúzia de trapos. Quase toda a minha vida vivi sem grandes bagagens. Eu pressentia que queria viajar e correr mundo, e que as malas seriam sempre um empecilho. Instalei-me nesse quarto, mesmo em frente da grande sala. Ao lado do meu quarto havia o quarto da Maria, a sua criada, que era a casa de jantar. Ao lado da casa de jantar era o quarto da Maria de Lurdes, que passava os seus dias na cama com o telefone na mão a falar sabia Deus com quem, e que só se arranjava à noite antes de sair para ir jantar fora com algum amante e só voltava de manhã para ir para a cama e voltar a pegar no telefone. Achava aquele ritmo de vida muito estranho e pouco saudável. Eu passei algumas noites na sala a ler e a escrever. Foi nessa sala que eu escrevi um poema intitulado “A Sala”. Um poema que, numa noite dum desejo abrasador do ter o Tété nos meus braços tive de desabafar, verter esse grande amor sobre o papel indefeso.
Havia também, no corredor, frente à cozinha, um outro pequeno quarto, onde dormia o Manuel, um garoto que ela tinha adoptado da Casa Pia quando o marido dela tinha pedido o divórcio e levado consigo o seu filho, o Nuno, que vivia com os avós paternos, mas que vinha sempre passar um dia com a mãe, de vez em quando. O Manuel era uma espécie de criado para todos os serviços. Ele era um mocetão um tanto pilante, mas muito apetitoso. Tudo correu muito bem até que um dia a Maria, que andava a trabucar com o Manuel, começou também a querer fazer umas horas extraordinárias comigo. O Manuel apercebeu-se das manobras da Maria e, uma manhã, pôs-se a correr atrás de mim com um facalhão da cozinha. Como o corredor era longo e logo ao fundo havia a porta de entrada que do interior era a porta de saída, pus os pés a caminho e só parei no Tique-Taque. Foi a única maratona que ganhei nos meus Jogos Desolímpicos!
Desesperado, sem saber onde arrumar os ossos nessa noite, lembrou-me de ir a uma Papelaria ali na Praça de Londres, onde costumavam pôr anúncios para vender ou alugar montanhas de pequenas coisas. Dei lá um salto, percorri todos os anúncios e dei com uma quarto para alugar numa casa particular, na Avenida de Madrid, mesmo por trás do Cinema Roma. Bati à porta da senhora. Ela mostrou-me o quarto, um quarto muito aprazível com janela para a rua. O quarto agradou-me e eu agradei à senhora. Paguei um mês adiantado e foi o Tété que no dia seguinte me trouxe os meus tarecos de casa da Maria de Lurdes.
A SALA
De que me vale estar inerte na carpete
Ao canto da sala em ébria prostração
Como alguém tentando desesperadamente
Alhear-se da sua própria solidão?
De que me vale que a luz seja irreal
E as velas amarelas
E que a lua penetre diáfana pelo cortinado
A encher a sala de um belo tom azulado
Se em nada me ilumina esta imensa escuridão?
Que me importa que a música seja de sonho
E que chegue até mim numa carícia
Se não tenho ninguém a meu lado
A quem possa transmitir
Este frémito do meu corpo masturbado?
De que me valem cigarros ardendo mansamente
A crepitarem docemente junto aos meus ouvidos
Se tudo é ermo e vácuo em meu redor
Um redor onde me perco
Sem sequer tentar encontrar em mim
O que há em mim de melhor?
De que me vale recordar noites e noites sem fim
Uma voz que deixei de ouvir
Se não consigo deter em mim
Este desejo de partir?
Vou deitar mais vinho no meu copo
E pôr outro disco a girar
Acender outro cigarro e encher de fumo a sala
Falar sozinho para crer que estou acompanhado
E cobrir meus lábios sequiosos
Com meus próprios pulsos
A fingir que alguém me veio beijar.
Soprem as velas abram todas as janelas
Deixem o fumo sair e a noite alagar-me
Apaguem-me os cigarros e levantem-me do chão
Quebrem-me todos os discos e todas as garrafas
E beijem-me longamente para eu adormecer.
Mas não pensem que vou assim esmolar
Pela vida fora -aqui ali e mais além -
Não!
E se o telefone tocar se o telefone tocar
Eu não estou não estou para ninguém!
Rogério do Carmo
Lisboa, 16/10/1953
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