mardi 18 août 2009

Os Três da Vida Airada


A vida não parava no Tique-Taque ! Era todos dias um trabalho arrasador. Mesmo assim, como só começava às cinco da tarde, ainda aproveitava as manhãs par dar uma ajuda na “Condotti”, uma botique de senhoras que era da Rita Schmulevitch, a lindíssima mulher do Tété, que era mesmo ao lado da porta do Tique-Taque, na esquina entre a Avenida de Roma e a Rua Sacadura Cabral, onde morava o meu irmão Fernando que trabalhava então numa fábrica de malhas na Visconde Valmor, propriedade dos pais da Rita. Rita Schmulevitch, essa fascinante judia que compartilharia comigo uma vida quase toda inteira!

Aparentemente eu tinha muito jeito para decorar as vitrinas e a Condotti tinha uma para a avenida de Roma e outra para a Sacaura Cabral! Foi ela, a Rita, quem me apresentou o Engenheiro Roque, que era uma homem muito belo e incerto acerca da sua sexualidade. Ele era definitivamente homosexual, mas tentava enganar os outros e a si próprio, mas sem realmente conseguir enganar fosse quem fosse. Foi ele que depois me confiou o trabalho de fazer as vitrinas do cinema Império e mais algumas botiques das Avenidas Novas. Tentei várias vezes seduzi-lo - ele passava as noites todas no Tique-Taque, a tentar seduzir o Tété, e estou quase certo que o Tété lhe fez o gosto ao dedo! E a outras coisas. - mas ou eu talvez não era o seu tipo de homem - não bom que chegasse para as suas sedas - ou receava que “se viesse a saber"”. Os tais tabus altamente hipócritas impostos por uma intransigente sociedade. Alguns dos portugueses que censuravam esta, como eles diziam, ultraje à masculinidade, alguns deles os apanhei nos parques de Lisboa em busca da realização dos seus “tão degradantes” fantasmas.

Eu continuava doentiamente enfatuado com o Tété mas não ousava deixar transparecer os meus sentimentos, temendo perder o meu emprego, e todo qualquer outro contacto com esse homem que eu idolatrava. A única solução para mim era trabalhar. Trabalhar para ganhar mais umas patacas e para que quando eu caísse à cama adormecesse imediatamente e não ter tempo sequer de apenas desejar ter o meu Tété ali a meu lado, beijar a sua boca, senti-lo nos meus braços, morder-lhe aquele lindo nariz arrebitadinho que me punha louco. Eu sabia que nunca realizaria aquele meu tão grande desejo que tinha de o esmagar sob o meu corpo, penetrá-lo até à raiz do meu sexo sempre brandindo por ele. Assim eu inventava trabalhos suplementares para me impedir de ter tempo de pensar nele nem na minha absoluta condenação a ter que abdicar ao seu amor, ao seu corpo, à sua vida. Só me autorizava certos delírios solitários!

Entretanto o Tété e a Rita tinham-se mudado do Rato para aquele moderno prédio cor-de-rosa do Areeiro. Depois de lhes ter nascido a Anaís - a única flor a despontar daquela estranha união entre a Rita e o Tété - precisaram de mais espaço. Anaís quase que cresceu no Tique-Taque. Ela era um bebé absolutamente fora deste mundo. Era um encanto vê-la vaguear entre aquelas cadeiras todas do Tique-Taque.

Uma noite eles quiseram ir a uma grande festa na Embaixada de Israel em Lisboa e, como era o meu dia de folga, pediram-me para eu ir tomar conta da Anaís nessa noite. Nessa noite, antes de partirem, o Tété pôs à minha disposição o seu mini-bar e toda a sua biblioteca. Passei esse serão, até muito tarde, e visitar a sua vasta biblioteca muito rica em livros de arte e de ballet. Entre esses livros, encontrei alguns álbuns de fotografias da família e passei todo esse serão a ver o meu Tété crescer. Haviam fotos dele desde o berço até aos dias de então. Também vi muitas fotografias da Rita, que tinha nascido na Áustria e crescido em Lisboa, pois que para fugirem ao nazismo, os pais dela tinham vindo procurar abrigo nesta cidade, onde abriram aquele negócio de malhas na Visconde Valmor A Anaís não acordou uma única vez. Fui eu que tive de ser acordado quando eles regressaram da festa da Embaixada porque, depois duns whiskies e de ter fechado o último álbum, também, sem querer e sem dar por isso, adormecera.
Eles vinham um tanto “alegres” e acharam muita graça ao facto de eu ter adormecido. Deram-me uma gratificação e eu segui para a Guerra Junqueiro a imaginar o Tété meio embriagado, meio despido, esperando por mim na minha cama meia desfeita...

O Tique-Taque começou a ser frequentado por uma bela senhora da alta que, fizesse frio fizesse calor, andava sempre de casaco de peles. Ela era uma mulher muito bonita e cortejada. Claro que o Tété já a tinha frequentado no 26 Rua Feio Terenas, onde ela habitava. Ela tinha um grande apartamento com uma enorme sala. Penso que o pretexto do Tété para estar com ela foi alugar essa sala como seu escritório privativo. Era evidente que essa senhora, a Dona Maria de Lurdes, se aproveitou dessa desculpa para o levar para a sua cama.
A Dona Maria de Lurdes abriu uma pequena Casa de Chá na avenida de Roma, mesmo em frente do Cinema Roma, a que chamou “Anastásia”. Era apenas, à entrada, um pequeno balcão com muitas doçarias. As mesas eram no primeiro andar, depois de se ter subido uma pequena escada de caracol. Como ela sabia que eu estava livre até às cinco, pediu-me para eu a ajudar na sua Casa de Chá. Aceitei com muito gosto. Eu precisava de estar ocupado o tempo todo para não pensar no meu secreto amor proibido. Ela não me propôs nenhum ordenado. Era apenas as gorjetas e, como eu pagava uma soma bastante elevada pelo meu quarto na pensão, ela propôs-me eu deixar a pensão e vir viver em casa dela, pois que tinha um quarto disponível. Aceitei com ambas as mãos, ambos os pés, ambos os olhos, ambos tudo que eu tinha e ainda tenho neste meu corpo sempre tão acordado para tudo o que me possa ainda acontecer, mesmo que apenas por caridade.

Mudei-me para a Rua Feio Terenas carregando a minha mala com meia dúzia de trapos. Quase toda a minha vida vivi sem grandes bagagens. Eu pressentia que queria viajar e correr mundo, e que as malas seriam sempre um empecilho. Instalei-me nesse quarto, mesmo em frente da grande sala. Ao lado do meu quarto havia o quarto da Maria, a sua criada, que era a casa de jantar. Ao lado da casa de jantar era o quarto da Maria de Lurdes, que passava os seus dias na cama com o telefone na mão a falar sabia Deus com quem, e que só se arranjava à noite antes de sair para ir jantar fora com algum amante e só voltava de manhã para ir para a cama e voltar a pegar no telefone. Achava aquele ritmo de vida muito estranho e pouco saudável. Eu passei algumas noites na sala a ler e a escrever. Foi nessa sala que eu escrevi um poema intitulado “A Sala”. Um poema que, numa noite dum desejo abrasador do ter o Tété nos meus braços tive de desabafar, verter esse grande amor sobre o papel indefeso.

Havia também, no corredor, frente à cozinha, um outro pequeno quarto, onde dormia o Manuel, um garoto que ela tinha adoptado da Casa Pia quando o marido dela tinha pedido o divórcio e levado consigo o seu filho, o Nuno, que vivia com os avós paternos, mas que vinha sempre passar um dia com a mãe, de vez em quando. O Manuel era uma espécie de criado para todos os serviços. Ele era um mocetão um tanto pilante, mas muito apetitoso. Tudo correu muito bem até que um dia a Maria, que andava a trabucar com o Manuel, começou também a querer fazer umas horas extraordinárias comigo. O Manuel apercebeu-se das manobras da Maria e, uma manhã, pôs-se a correr atrás de mim com um facalhão da cozinha. Como o corredor era longo e logo ao fundo havia a porta de entrada que do interior era a porta de saída, pus os pés a caminho e só parei no Tique-Taque. Foi a única maratona que ganhei nos meus Jogos Desolímpicos!

Desesperado, sem saber onde arrumar os ossos nessa noite, lembrou-me de ir a uma Papelaria ali na Praça de Londres, onde costumavam pôr anúncios para vender ou alugar montanhas de pequenas coisas. Dei lá um salto, percorri todos os anúncios e dei com uma quarto para alugar numa casa particular, na Avenida de Madrid, mesmo por trás do Cinema Roma. Bati à porta da senhora. Ela mostrou-me o quarto, um quarto muito aprazível com janela para a rua. O quarto agradou-me e eu agradei à senhora. Paguei um mês adiantado e foi o Tété que no dia seguinte me trouxe os meus tarecos de casa da Maria de Lurdes.

A SALA

De que me vale estar inerte na carpete
Ao canto da sala em ébria prostração
Como alguém tentando desesperadamente
Alhear-se da sua própria solidão?
De que me vale que a luz seja irreal
E as velas amarelas
E que a lua penetre diáfana pelo cortinado
A encher a sala de um belo tom azulado
Se em nada me ilumina esta imensa escuridão?
Que me importa que a música seja de sonho
E que chegue até mim numa carícia
Se não tenho ninguém a meu lado
A quem possa transmitir
Este frémito do meu corpo masturbado?
De que me valem cigarros ardendo mansamente
A crepitarem docemente junto aos meus ouvidos
Se tudo é ermo e vácuo em meu redor
Um redor onde me perco
Sem sequer tentar encontrar em mim
O que há em mim de melhor?
De que me vale recordar noites e noites sem fim
Uma voz que deixei de ouvir
Se não consigo deter em mim
Este desejo de partir?
Vou deitar mais vinho no meu copo
E pôr outro disco a girar
Acender outro cigarro e encher de fumo a sala
Falar sozinho para crer que estou acompanhado
E cobrir meus lábios sequiosos
Com meus próprios pulsos
A fingir que alguém me veio beijar.

Soprem as velas abram todas as janelas
Deixem o fumo sair e a noite alagar-me
Apaguem-me os cigarros e levantem-me do chão
Quebrem-me todos os discos e todas as garrafas
E beijem-me longamente para eu adormecer.
Mas não pensem que vou assim esmolar
Pela vida fora -aqui ali e mais além -
Não!
E se o telefone tocar se o telefone tocar
Eu não estou não estou para ninguém!
Rogério do Carmo
Lisboa, 16/10/1953

Aucun commentaire:

Enregistrer un commentaire