mercredi 5 août 2009

De Porta em Porta

Estigmatizado pele morte do Alberto, uma outra vida começava! Teria agora de cumprir a minha promessa feita ao meu querido irmão! Tinha de viver muitos anos, viajar muito, conhecer muitos países, fornicar com quem me aparecesse pela frente, dar as tantas fodas que nunca lhes fora dado dar!

Rir, cantar, chorar, amar, escrever, ler, desenhar. Sobretudo AMAR!

“Amar este, aquele, o outro, e toda a gente! Amar só por amar e não amar ninguém!” Florbela Espanca

Amar a poesia, amar a Florbela Espanca como ela tanto desejou ser amada!

Dela fiz o seu retrato que pus na parede em frente da minha cama. Todas as manhãs a primeira coisa que via era aquela bonita cara tão carente de ser amada! Amei-a como nunca ninguém a amou! Amei-a tanto como amei o Alberto! Esse que por causa do medo dos contágios perdeu todos os amigos e aqueles que ele tanto amava. Ele perdera a Maria José, a mãe da sua filha! Até ela, a Maria José fugiu dele com a sua filha nos braços. Tudo por causa dos contágios. Até eu fui empurrado para a Pedra Amassada. Todos fugiram dele! Era a Adília Maria, a sua filha, que ele mais lembrava no seu abandono. O Alberto, esse irmão que tanto amei! Esse irmão que tanto desejei beijar a sua boca quando ele tristemente mirava aquele muro que lhe roubara todo e qualquer contacto com o mundo exterior! Tanta vez senti um desejo tal de o estreitar nos meus braços e dizer-lhe à boca cheia que o amava. Que me estava cagando para os contágios! Que a mim ele sempre me teria a seu lado! Que por ele eu iria viver e gozar a puta da vida que também lhe fugia!

Tinha a minha e a sua vida a viver! Vivamos pois, até que a morte nos reúna!
***
Eu passava a maior parte do tempo em casa a ler livros que o meu pai tinha na sua estante no seu escritório onde ele recebia os seus clientes para partilhas, compras e vendas de terrenos. No seu escritório havia uma porta pregada com pregos que dava para um dos quartos da nossa senhoria, que ela alugava a cadetes. Era pelo buraco da fechadura que espreitava para ver se conseguia topar algum cadete todo nu. Um dia vou à caça de cadetes, nesse quarto, através do buraco da fechadura, na sua intimidade. Nesse dia vislumbrei um, simplesmente sentado a uma pequena secretária, a estudar ou escrever uma carta. Ele era, como quase todos os cadetes: um belo homem! De repente eles ergue-se, sacode-se e enfia o seu bivaque. Percebi que ele se preparava para sair. Decidi também sair! Eu queria vê-lo mais de perto! Assim, no vão da escada, esbarrávamos um contra o outro. Depois dos mútuos pedidos de desculpa pelo brutal e inesperado encontrão, veio mais tarde o tão desejado grande encontro!

Depois de alguns casuais encontros por acaso no Café Esplanada, um dia ele convida-me para um café e assim começámos a descobrirmo-nos um perante o outro. Era evidente que, depois de eu me ter descoberto intimamente por dentro, ele procurava agora tentar descobrir-me por fora. Eu era seu vizinho e aparentemente fisicamente desejável. Apresentou-se como sendo o Ávila, que era de Guimarães, que frequentava uma Universidade do Porto onde cursava Letras Modernas. Que tinha sido enviado para Mafra para fazer o seu serviço militar mas que detestava a tropa e que tinha procurado quarto em casa da nossa senhoria, para fugir à caserna, onde todos dormiam à sua maneira e que, a maioria, ressonavam a fazer tremer as tarimbas!

Eu falei-lhe de mim, que escrevia poesia, que tinha feito um retrato do D. João V. que estava exposto numa das paredes da Biblioteca Municipal no Convento, que estava desempregado e que andava à procura de trabalho. Que o meu maior desejo era de ir viver para Lisboa e ser actor. Ele aconselhou-me a fazê-lo, que eu podia vir a ser um belo “galã”! Que gostaria de ler os meus poemas, para ele analisar o meu estilo, que para isso andava a estudar Letras Modernas. Que gostaria de ver o meu D. João V.!

Claro que, depois de termos tomado o nosso café e fumado uns tantos cigarros, levei-o ao Convento, à Biblioteca Municipal, e ele ficou pasmado com o meu talento para o desenho. Que devia continuar! Ele era um pouco como o Rogério Paulo, mas com uma diferença: Não era apenas o meu talento para o desenho que o interessava! Era evidente que também queria descobrir quais seriam os meus inimagináveis talentos noutras actividades, tais como , quem sabe, na cama! Ele não era louro como tanto do meu agrado. Era moreno, cabelos de azeviche, muito lisos e, sobretudo, uns olhos negros e sombrios como uma densa noite onde apenas brilhavam algumas estrelas de quando em quando.

Uma noite, de regresso a casa, depois de, tal predador, ter dado umas voltas pelo largo em busca de possíveis víctimas da minha insaciável libido, muito desanimado, porque as minhas presas já tinham todas regressado a penates, pois que chuviscava e o frio vento cortava as nossas faces, ao subir a minha escada dou com o Ávila atabalhoadamente tentando abrir a sua porta nas densas trevas do vão de escada, mas não dava com o almejado buraco da fechadura.

Subo, abro a minha porta que estava sempre no trinco, acendo a luz da casa de fora, para ajudar o pobre Ávila a encontrar o seu buraco. Porém, nessa noite, quem iria encontrar o seu tão desesperadamente procurado buraco, seria eu!

Ele agradeceu muito a minha amabilidade e aproveitou para me convidar para um whisky no seu quarto. Claro que aceitei! Tinha, acima e abaixo, durante horas, procurado em vão, no Terreiro, agasalho para a minha desventurada luxúria, mas a minha tão ansiosamente desejada odalisca dessa noite, aguardava-me, não sei por que mágico destino, no escuro vão da minha escada.

Foi sentado na sua cama que saboreámos esse whiky. A conversa era quase inexistente. Talvez para esquivar essa inoportuna situação, ele fala-me dos seus estudos, que adorava todas as literaturas, com uma predilecção pelos clássicos. Pediu-me então para eu fosse buscar alguns poemas meus para ele analisar. Trouxe-lhe alguns sonetos meus, os quais ele leu atentamente. Depois levanta o seus olhos dessas folhas de papel amarelecidas pelo tempo, fixa-me longamente, e declara que eu estava muito influenciado pela Florbela Espanca, que me trouxesse outro tipo de textos meus. Fui buscar mais alguns e novamente ele mergulha na sua leitura e sem pestanejar confessa que preferia o meu estilo próprio. Poesia livre, sem preocupações de contagem de sílabas, boas rimas e muito ritmo na minha escrita. Que os meus poemas tinham cadência, que as palavras pareciam correr umas atrás das outras com pressa de chagar. Como se os poemas tivessem pressa de nascer. Daí talvez alguns abortos!

Depois dessas análises ele espalmou uma das suas mãos sobre uma das minhas coxas e perguntou-me se eu tinha namorada. Disse-lhe que não! Perguntei-lhe depois se era também esse o seu caso? Embaraçadamente responde-me que também não tinha, que sexualmente preferia outros homens... se eu gostaria de fazer amor com ele?

Saltei-lhe em cima como uma fera faminta e devorei-lhe aquela boca muito rubra, entreaberta, ansiosa de se apoderar da minha. As preliminares foram muito curtas. Rapidamente se despiu inteiramente e se deitou sobre o seu ventre. Nos seus olhos havia uma súplica lancinante. Galguei-lhe em cima e penetrei-o a seco. Ele deu um pequeno grito mas depois, no meu frenético copular, ele esvaía-se em gemidos de intenso gozo. Depois de eu ter ejaculado retiro-me de cima dele e digo-lhe friamente até amanhã, que já era bastante tarde e que ele tinha que se levantar cedo para ir para o quartel.

Chegado a casa - bastara-me atravessar aquele estreito vão de escada mergulhado em trevas - atirei-me para cima da minha cama completamente vestido. Antes de adormecer, porém, ainda tive tempo de me dizer a mim mesmo que as voltas à noite pelo largo se tinham acabado! Tinha agora ali mesmo à mão o que eu constantemente procurava: Um bom cu!

Meu pai veio a aperceber-se que eu andava sempre metido no quarto do vizinho do lado e indagou quem era esse tão distinto rapaz. Respondi-lhe que era um cadete que andava a estudar Letras Modernas e que era um conversador muito interessante. Como o meu pai também escrevia poesia mostrou uma certa vontade de eventualmente o conhecer pessoalmente para lhe mostrar os seus trabalhos, para saber a sua opinião.

Contei este desejo do meu pai ao Ávila e ele disse estar disposto e interessado em ver qual estilo de escrita o meu pai tinha. Assim, uma tarde, quando o meu pai estava a trabalhar no seu escritório e o Ávila estava no seu quarto, disse ao meu pai que ia buscar o Ávila, que ele se preparasse alguns poemas seus para lhe mostrar. E assim fizemos. Enquanto o meu pai se preparava para o receber eu fui buscar o Ávila ao seu quarto. Quando lhe apresentei o Ávila, meu pai mostrou-se muito sensibilizado com a sua visita. Depois das apresentações ambos se instalaram numa longa conversa e eu fui tratar da minha vida e deixei-os sós com as suas dissertações.

Na noite seguinte, quando fui novamente assinar o ponto com o Ávila, ele diz-me que o meu pai era um homem muito interessante e que ele sim contava as sílabas, o que era muito importante para o seu estilo, que era um poeta da velha guarda! Que eu não contava as sílabas e que o meu estilo era muito mais moderno. O mesmo me diria mais tarde o meu pai acerca do Ávila: Que ele era um homem muito culto e frequentável. Que não sabia exactamente quais eram as relações me uniam a esse rapaz, mas que, em qualquer dos casos, que o guardasse como amigo porque o Ávila era um homem muito digno. Depois, a arrematar os seus conselhos paternais, disse que se por acaso havia entre nós relações físicas muito íntimas, que isso era absolutamente natural entre gente nova, e que cada qual tinha que viver a vida que lhe tinha sido destinada. Aí ficou o caso arrumado. Compreendi que o meu pai estava ao corrente das minhas tendência sexuais e que ele me aceitava tal como eu era. Por outro lado, aconselhou-me igualmente a que eu aprendesse com o Ávila as técnicas básicas da escrita de poemas, que eu escrevia demasiado livremente, que várias vezes ele tinha tentado ensinar-me, mas que eu era teimoso que nem um burro e que só fazia aquilo que eu queria e que não ligava nenhum às suas sugestões de contar as sílabas e tantas outras coisas mais. Que eu fizesse como quisesse!

Foi precisamente o que fiz! Assim o meu estilo é livre como o vento e o meu pai um escravo de certas regras e obrigações literárias que aprendera nos seus altos estudos.

Assim a vida se prolongou por mais uns tempos. Eram os meus serões com o Ávila para a habitual rápida estocada depois de um ou dois whiskies e algumas altercações mais ou menos intelectuais, e a minha busca de emprego. A certa altura o Ávila passava mais tempo com o meu pai e suas muito importantes discussões políticas e literárias, do que comigo com as minhas rápidas estocadas mestras!

Eu passava as tardes no escritório do meu pai a ler os livros que o meu pai tinha na sua estante. Ele tinha uma biblioteca bastante bem fornecida de autores portugueses clássicos e outros estilos, como pesquisas científicas e outras coisas que nenhum interesse me despertava, sempre tão ocupado a viver a minha vida em cheio, como tinha prometido ao Alberto.

Um dia, andando à procura doutro livro para ler, entre os muitos que ele lá tinha muito bem alinhados nas suas prateleiras, dou com um magro livro de capa amarela, sobre a qual estava escrita em grossas letras muito pretas, uma única palavra:

Aushwitz

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