mardi 4 août 2009

O Alberto
















A minha vida não era só trabalho. Também conseguia, com um pouco de imaginação, inventar coisas novas para enfeitar os meus dias.

O Café Estrela era o meu ganha-pão mas, ao mesmo tempo, procurava tirar das minhas actividades profissionais algum alento, algo que me fizesse acreditar que eu era feliz.
Depois das obrigações diárias, um passeio até ao Jardim do Cerco, da parte da tarde, para algumas inesperadas aventuras na selva, na parte do jardim não tratada pelo senhor Marques, o jardineiro da parte real desse indescritível jardim em cujas matas quase virgens muita gente perdeu a sua virgindade.

No Piquenique frequentemente fazia de Tarzan, a saltar de árvore em árvore, em busca duma Jane ou duma Chita. Frequentemente eram cadetes ou cabo-milicianos que eu tinha de salvar de certas agonias.
Muito por acaso, algumas vezes encontrava a Zinha no nosso banco preferido ali ao pé do pequeno lago habitado por bonitos peixes de todas as cores, limitados a nadar à volta do mesmo lago dia e noite, como eu fazia à volta da vida, em busca duma saída airosa.
Os peixes nem sequer se apercebiam, que eu amava uma mulher e o meu corpo apenas me pedia machos.

Nos dias mais bonitos ia até à Ericeira molhar os pés e outras coisas. Gostava de ir para a Foz do Lizandro para o meu pequeno paraíso sobre a terra, a minha gruta do abre-te sésamo, tomar banhos de sol todo nu. Amiudadamente haviam outros vindouros que se juntavam a mim. Uns para gozar o sol, outros para gozarem a minha nudez.

O melhor de tudo era, enquanto aguardava a camioneta do Gaspar para voltar a Mafra, meter-me no Café Morais a tomar uma cerveja e ver gente a passar. Era essa gente a passar que me fascinava. Em cada um eu via um destino, uma solidão, tédios e alegrias, tudo só muito deles. Cada qual à sua maneira acartava a sua sorte e a sua morte. Eu, na minha dolorosa adolescência, carregava com os meus medos do futuro, medo das más línguas, medo de não ter nascido para nada de especial.

Era sempre a mesma pergunta:

Que vim eu cá fazer a este mundo?

Por outro lado, quando não fazia estas fugas, gostava de ir até casa dos meus pais, ali na Rua Bombeiros Voluntários de Mafra, número 2, ver como iam as coisas com o Alberto que continuava sempre acamado, cada vez com mais hemoptises e cada vez mais debilitado. Nessa altura morávamos no rés-de-chão e em frente da nossa porta e da única janela que tínhamos, havia um alto muro que tapava a vista que se poderia ter tido sobre o Poço do Rei. O Alberto detestava esse muro. Que era como se estivesse numa prisão! Da sua cama, além da sua querida telefonia, apenas aquela janela para deitar os olhos e tentar adivinhar quem eram os passantes.

Além do quarto do Alberto, mal se passava a porta de entrada, havia a casa de fora, com uma mesa e quatro cadeiras, um aparador e uma cómoda. Nas traseiras havia a obscura cozinha e uma arrecadação da qual os meus pais fizeram o quarto das suas inquietas noites, muitas delas em branco, por causa da tosse do Alberto que muito mais o atacava durante a noite.
O quarto do Alberto era realmente uma permanente cadeia que o cortava do resto do mundo. Eu tinha muita pena dele e ia lá vê-lo sempre que podia e trazia-lhe jornais para ele ler, e “Damas de Chá”, que eu sabia ele muito apreciar. Ele, sempre que me via entrar, os seus olhos iluminavam-se de uma passageira alegria. Sempre me perguntava como se passavam as coisas lá fora, onde estava este ou aquele dos seus muitos amigos que nunca se deram ao trabalho de o visitar e trazer-lhe um pouco do ar lá de fora e, sobretudo, alguma amizade! Era sobretudo de amizade e companhia que ele andava sempre faminto! Perguntava-me porque não vinham eles visitá-lo? Nunca ousei dizer-lhe que eles não vinham visitá-lo porque tinham medo do contágio. Inventava uma série de piedosas mentiras para tentar não tornar ainda maior o seu isolamento. Às vezes abria a sua janela para fumarmos um cigarro. O Dr. Passos tinha-o proibido de fumar, mas ele dizia, e com muita razão, que era um prisioneiro daquele quarto, um escravo da sua doença e dos seus remédios, que o deixassem, ao menos, fumar como dantes. Aqui, esta pequena frase “como dantes”, empurrava-me silenciosamente até à retrete, a ocultar dos seus olhos as minhas irreprimíveis lágrimas. Afinal de contas, era eu quem lhe trazia os cigarros. Ele fumava Português Suave e eu também. Bem no fundo de mim mesmo eu sabia que ele não ia durar muito tempo e, dentro de mim, secretamente, eu pensava naquele rifão da minha mãe:

“Morra marta, morra farta”!

Sempre que me despedia dele dava-lhe um beijo na face e perguntava-lhe o que era que ele queria que eu lhe trouxesse no dia seguinte. Ao sair do seu quarto olhava para trás para ver aquele belo pálido rosto, aquelas belas translúcidas mãos, aqueles dedos tão longos que pareciam querer tocar o infinito, aqueles lindos e transparente olhos da cor dum glorioso céu de Primavera que o Inverno brutalmente ameaçava.

Eu adorava o meu irmão Alberto! Ele era duma beleza divina naquela sua palidez de morte. Eu olhava-o, cada vez que o deixava, como se fosse a última vez que o veria ainda vivo. Por vezes receava perguntar-lhe o que ele queria que eu lhe trouxesse amanhã, pois que para mim, para ele cada dia que passasse, talvez não houvesse um outro amanhã.

Despedia-me da minha mãe, ali escondida na sua arrecadação, a calar a sua imensa dor. Ela era a nossa Mãe Coragem, à qual muitas vezes lha faltava a dita para ter a dita! Depois eu voltava à minha vida, às minhas ocupações no Estrela, aos meus desenhos, aos meus sonetos, ao meu medo do futuro, à minha gana de ir para a cama fosse com quem fosse, para tentar esquecer o meu medo de o perder, pois que era evidente que a vida aos poucos lhe fugia.

Outros dias vieram a consentir o definhamento do meu tão querido irmão Alberto. A única coisa que eu podia fazer por ele era vir vê-lo e mentirosamente sorrir-lhe como se ele tivesse a sua vida à sua frente. Eu era um grande actor! Fingindo ser o mais feliz dos mortais, abria a sua janela, acendia-lhe um cigarro, e contava-lhe as últimas anedotas que tinha ouvido essa mesma manhã no Estrela. O som das nossas gargalhadas abafavam os soluços da Mãe Coragem, escondida nas trevas da sua lúgubre arrecadação, onde nem sequer uma fresta se abria à luz do dia ou às noites de luar.

Ele lamentou-se um dia que detestava aquele muro que o impedia de ver um pouco mais além, mais um bocadinho de Mafra. Nesse dia prometi-lhe que ou deitaria esse muro abaixo com os meus próprios punhos ou arranjaria maneira de mudar de casa, para um sítio onde se pudesse ver o Horizonte! Ao sair do seu quarto disse-lhe, com uma imensa falsa convicção:

- Alberto! Vou fazer tudo o que puder para te tirar deste buraco! Vamos procurar uma casa onde a janela do teu quarto dê para o mar ou para a montanha!

Saí sem me me despedir da minha mãe. Passei à frente do seu silêncio, tentando ignorar aquela auréola por detrás da sua cabeça, como se ela tivesse deixado de ser Mãe Coragem para apenas ser Nossa Senhora das Dores! Da rua dos Bombeiros Voluntários até ao Estrela, através das minhas lágrimas, mal distinguia quem por mim passava. Até o Convento me pareceu do tamanho dum brinquedo!

No entanto, parece que Deus ouviu as minhas preces, pois que, dias depois, minha mãe me disse que os vizinhos de cima iam mudar-se para uma casa maior e que nós nos mudaríamos para o andar superior. Para mim isso foi um verdadeiro milagre! Não sei se Deus escutou as minhas orações ou aquelas da Nossa Mãe Nossa Senhora das Dores, se as de ambos!
Mesmo descrente como eu era, antes de regressar ao Estrela, entrei nessa bela marmórea Catedral que é a Basílica do Convento. Ajoelhei aos pés não sei de quem a agradecer-lhe com as minhas lágrimas esse grande milagre. Para mim, poder dar ao Alberto um quarto com uma janela com Horizonte era o mais esplendoroso de todos os milagres que podiam acontecer! Aproveitei para pedir a Santa Rita, a Santa do Impossível, que curasse o meu querido irmão. Ajoelhei, acendi-lhe uma velinha, rezei, implorei ajuda, mas a Santa Rita, no seu nicho de pedra fria, naquele seu ar ausente, nem sequer baixou seus olhos sobre mim!

Era sempre uma tristeza ir a casa ver o meu irmão mas, ao menos, ele agora tinha estrelas que cintilavam nos seus olhos ao olhar lá ao longe o seu tão desejado Horizonte através da sua janela aberta de par em par! Sentado na borda da sua cama, agarrei a sua mão, e olhei esse mesmo Horizonte que se reflectia naqueles olhos dum azul deslumbrante e deslumbrado. De repente ele aperta a minha mão, olha-me intensamente nos meus olhos prestes a transbordar, e perguntou-me:

- Rogério! O que é o Horizonte? O que é o Infinito? O que há para além dessa linha onde a terra toca o céu? O que há para além do Infinito?

INFINITO

(Ao meu falecido irmão Alberto)


O que era o infinito tinhas-me perguntado
O infinito sou eu tenho-o nos braços
Rasgá-lo de meio a meio disseste angustiado
Mas como se está feito em mil pedaços?

O infinito com teus olhos tentavas abranger
E eu infinito maior me sentia - sem fim!
Mas o infinito nunca o poderás compreender
Pois se nem eu me compreendo a mim!

Pudesse eu reduzir-me e teus olhos saciar
Pudesse eu desprender-me e em tuas mãos poisar
Nessas mãos tísicas que beijo a toda a hora.

Mas eu - pobre infinito pelos escombros-
Perdido e só em busca dos teus ombros!

Escuta! Não ouves? O infinito chora!



Rogério do Carmo
Mafra, 19/9/1953


No dia em que, a pé, da Rua dos Bombeiros Voluntários, acompanhei o meu tão querido irmão Alberto até ao Cemitério da Vila Velha, quando pousaram o seu modesto caixão perto daquela campa rasa que o meu outro tão querido irmão Elmiro tinha comprado para o nosso querido Alberto, quando abriraram o caixão e levantaram o lençol para o cobrirem de cal, eu olhei aquela tão lívida e serena face, olhei-o bem dentro do seu olhar fechado, e jurei-lhe:

“Alberto! Vai em Paz! Eu prometo-te viver por ti todos esses anos que tão infamemente te foram roubados! Vou viver o mais que possa, ser feliz o mais que possa, viajar o mais que possa, rasgar esse inacessível Infinito que a ti te foi tão injustamente negado. Por ti o farei!”


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