dimanche 2 août 2009

Rogério Paulo
















Rogério Paulo foi seguramente o cadete que mais me marcou na minha já tão longa vida! Um dos muitos que não deram por mim apenas para satisfazerem a sua libido, mas muito mais pelas minhas qualidades artísticas e intelectuais. Ele viu-me desenhar e apreciou os meus desenhos. Ele viu-me escrever e gostou dos meus poemas. Ele viu-me triste, viu-me alegre, viu-me ausente, estava sempre receptivo. Algo se passou entre nós sem sabermos exactamente o que se passava. Qualquer coisa nos atraía reciprocamente, mas que nos levou algum tempo a descobrir o que era. Ele era um cliente como tantos outros mas algo de único emanava da sua pessoa que logo me prendeu. Claro, antes de mais nada, ele era um homem atraente e distinto. Depois ele reparou em mim talvez por eu ser um tanto especial. Como ele me disse um dia:

- Rogério, tu não és nem mafrense, nem português. Tu és Universal!

Ele viu em mim o Poeta, o Artista. Eu vi nele um cadete que não tinha nada a ver com os demais que me corriam atrás apenas para satisfazerem a sua luxúria . Era o artista que eu adivinhava nele que me seduziu. Eram as suas conversas profundas e filosóficas que imediatamente me conquistaram.

Todos os dias ele vinha ao Estrela tomar o seu café e fumar o seu cigarro. Ele não sabia que eu me chamava Rogério. Sabia que eu era o criado de mesa porque eu trajava um casaco branco. A primeira vez que nos vimos, para me chamar a atenção, ele bateu palmas. Acorri e, sorridente, muito amavelmente, ciciei-lhe:

- O meu nome é Rogério! Palmas só aprecio quando em cima dum palco!

Ele, primeiro ficou um pouco atónito, talvez ofendido, mas depois deu uma grande gargalhada e alegremente respondeu:

- Eu também me chamo Rogério! E, para mim, palmas, também só em cima dum palco. Como vê, já temos algumas afinidades. Podemos vir a ser bons amigos!

E fomos! Cada dia que passava algo de ainda muito indefinido nos aproximava. Pouco a pouco começámos a conhecermo-nos melhor. Além duma amizade sempre crescente, algo de ainda não muito bem compreendido nos aproximava irresistivelmente! Falávamos de tudo e de nada. Tudo parecia fazer sentido nas nossas conversas. Discutia-se literatura, poesia, Pessoa, Espanca, e muitos mais que agora não recordo. Trocávamos impressões acerca de filmes que tínhamos visto recentemente no Cine-Teatro de Mafra. A propósito de Cine-Teatro, uma vez perguntou-me se não havia algum Teatro em Mafra. Disse-lhe que sim, o Cine-Teatro, ali na Avenida Nova, mas que nunca vinham companhias de Teatro de Lisboa apresentar as suas obras nesse recinto. Ele achou isso lamentável! Que o Teatro era a Arte mais importante da vida, do mundo! Por essa razão falávamos horas e horas acerca de teatro. Ele contou-me que tinha feito o Conservatório em Lisboa e que andava a tentar a sorte no Dona Maria II, com a Amélia Rey-Colaço e o Robles Monteiro. Falei-lhe do meu gosto por leitura em voz alta para os outros alunos da minha classe, de dançar ao som de certas músicas na telefonia. Que uma vez, no Cacém, na grande sala onde havia uma grande telefonia no chão, tinha dançado o Bolero de Ravel do princípio até ao fim, para o resto da família. Que a minha prima Maria do Rosário me tinha dito que eu devia frequentar uma escola de dança e ser bailarino profissional! Que, sobretudo, amava a Arte em geral. Que a pintura também chamava por mim, e que por essa razão começara a fazer retratos a lápis de actores e actrizes. Que tinha também feito o retrato da Florbela Espanca, do Eça, do Camilo, do Júlio Dinis, e até do Cristo. Que o retrato que eu tinha feito do D. João V., que tinha executado quando eu tinha apenas 14 anos, estava então exposto no Convento, ali numa das paredes da Biblioteca Municipal! Assim como o retrato de sua esposa, Dona Mariana de Áustria. Rogério disse-me que também apreciava muito todas essas artes, mas que o que mais o obcecava era o Teatro. Para mim, a minha obsessão era o Cinema! Que estava então com 17 anos e a vida quase toda à minha frente. Que queria ser actor de cinema e, quem sabe, talvez um dia ir ao cinema ver um filme comigo como cabeça de cartaz. Melhor ainda, ser um dia uma grande vedeta de Hollywood. Ele protestou, que eu era demasiado ambicioso, que ele se contentava com o Teatro. Para ele, Hollywood era o Dona Maria II! Fazer cinema não lhe interessava verdadeiramente. Mas que, talvez - nunca se sabe - um dia fizesse Cinema:

- Olha, talvez um dia façamos um filme juntos!


Os dias em Mafra decorriam tranquilos como habitualmente. Pela minha parte, era o Estrela, o Correio, o Cine-Teatro, o Jardim do Cerco, saltos ao Piquenique de vez em quando, e pouco mais. Quanto ao Rogério Paulo era, penso, também uma rotina trivial: O Quartel, aprender a utilizar as armas, coisa que ele detestava; as manobras na Tapada de Mafra; o rancho do refeitório que ele abominava; as idas ao cinema; as idas ao Estrela e ao Cerco e, sobretudo, as nossas grandes discussões acerca dos cabeçalhos do Diário de Notícias; do dia a dia das suas obrigações militares; de algum livro que tivéssemos lido ou um filme que se tenha sido visto, e assim por diante. Mas o mais importante era falar de peças de teatro que ele tinha lido na Biblioteca Municipal. Que tinha visto o meu D. João V., que um dia eu seria um grande artista. Que pensasse mais seriamente em frequentar as Belas Artes do que o Conservatório! Que não desperdiçasse o meu grande talento para o desenho e, eventualmente, a pintura!

Os meus encontros com o Rogério Paulo tornaram-se numa quase droga quotidiana. Mal ele entrava a porta e se acomodava a uma mesa, eu vinha a correr com a sua bica, que era a única coisa que ele tomava. Nem tinha de bater palmas! Quando o via já sabia que era o seu cafezinho o mais importante. Depois de o servir, sentava-me à sua mesa e logo começavam os nossos intercâmbios de sonhos por realizar, desacordos com certas coisas que, politicamente, se passavam no país e, por vezes, para desanuviar um pouco a atmosfera, de certas mediocridades que infestavam a Sociedade. Punhamo-nos a imaginar o que seria ver o Papa a masturbar-se ou a Rainha de Inglaterra sentada na pia, de manhã ao levantar-se. Seria que ela, a primeira coisa que fazia, quando acordava, seria pôr a coroa na cabeça antes de enfiar as chinelos? A que ele ainda mais divertida julgou, foi quando lhe disse que se um dia nós fizéssemos apenas um filme filme juntos, que "mais valia ser raínha um dia do que Pia toda a vida!" Isto, por vezes, negligenciando os outros clientes que não me batiam as palmas, mas que gritavam o meu nome, o nosso nome, para obterem alguma atenção!

Gostávamos muito de ir ao cinema. Íamos normalmente às Quintas-Feiras, pois que ao Domingo havia muita gente e grande burburinho. Depois eu voltava para casa e ele para o quartel, caminhando vagarosamente para fazer render o tempo. Discutíamos o filme acabado de ser visto. Então dávamos largas à nossa imaginação e senso crítico. O que, quanto a nós, estava certo ou errado no filme, o trabalho dos actores, e o que nós teríamos feito se tivéssemos sido os intérpretes do filme. Claro que nós teríamos sempre feito melhor do que esses actores, mesmo quando se tratava de fabulosos artistas tais como Charles Laughton e Henry Fonda!

Os nossos encontros e as nossas divagações sobre milhentas coisas que formavam a vida de todos e obrigações de cada um, tornou-se, para mim, quase como uma necessidade diária. Quando ele ia dois ou três dias a Lisboa, era como se o Café não valesse a pena abrir nessas manhãs. Até mesmo a minha gula sexual parecia perder aquela importância obsessiva. O Rogério, sem querer nem disso se aperceber, indicou-me caminhos mais largos, mais luminosos, do que apenas ir para a cama com todo o bicho-careta com quem esbarrasse na rua. Que no meu corpo haviam braços e pernas, entre as quais algo que pendia e que muito frequentemente trepava por mim acima, mas que havia também umas tantas gramas de massa encefálica que era preciso tomar em consideração. Que além de sexo tínhamos ainda a nossa sensibilidade, uma alma, e dar largas ao nosso poder criativo! Inventar a vida, um futuro, uma carreira, a realização dum destino! Não sermos apenas vítimas dos nossos instintos quase canibais! Eram muito mais emocionantes os nossos passeios pelo Jardim do Cerco, falando dos nossos projectos, das nossas frustrações, dos nossos sonhos ainda por realizar, do que ir para a cama com estranhos, só por dá cá aquela palha! Por vezes, nos nossos passeios pelo Jardim do Cerco, ele pedia-me para nos sentarmos sobre um daqueles bancos de mármore e recitar-lhe alguns poemas meus, ali sentados à sombra das acácias. Como nessa altura andava a escrever sonetos muito influenciados pela Florbela Espanca, eu sabia-os de cor, e recitava-os com todo o meu fervor. Ele achava que, afinal de contas, à parte as Belas-Artes, eu devia também seriamente pensar no Conservatório e fazer teatro, pois que eu sabia dizer um poema já com o talento de um actor experimentado. Simplesmente, que procurasse criar o meu próprio estilo não me deixar influenciar por quaisquer outros poetas ou homens de letras. Esses passeios para mim foram como uma chapada de luz nas minhas trevas. Era ele quem me incutia a vontade de trabalhar, de planear, ousar, ambicionar coisas que me pareciam para mim não merecidas, mas que devíamos lutar para as conseguir, para as obter! Que era precisamente nisso que se encontrava o gosto pela vida e pela aventura. Aventurar-me a ir para a frente, encontrar um alvo no qual eu pudesse apontar as minhas setas.

Como tudo o que nos é importante, tudo um dia se acaba! Uma manhã o Rogério Paulo entra-me pelo Café adentro com a sua mala pendurada na mão, dizendo-me que deixava a tropa para continuar a sua carreira como actor. Que o Arthur Duarte o tinha contratado para o papel principal do filme “A Garça e a Serpente”, com a Teresa Casal, a Carmen Dolores, Raul de Carvalho, Alves da Cunha, João Vilaret, e tantos outros. Fiquei triste de o perder, mas satisfeito de o ver avançar na vida e realizar um outro, afinal, tão cobiçado sonho.

Ao despedir-se de mim desejou-me muita sorte, que deixasse Mafra, que viesse para Lisboa para frequentar as Belas-Artes e aproveitar o meu talento para a pintura. Que ingressasse no Conservatório, que aprendesse e mostrasse ao mundo todos os meus talentos que em mim eram apenas embriões, embriões que eu tinha a obrigação de dar à luz, de dar ao mundo! E que talvez um dia ainda nos encontraríamos juntos, sobre o palco, em Lisboa, semi-vergados, agradecendo frenéticos aplausos, e não palmas batidas nos Cafés a chamarem os criados de mesa. Isto foi em 1952, tinha eu 17 anos e ele 25!

Muitos anos mais tarde, para nossa grande surpresa, encontrar-nos-íamos lado a lado num filme de Arthur Duarte: “O Encontro com a Vida”! E esse título de filme foi-nos, dum certo modo, um augúrio, um presságio!

Só que a Morte, traiçoeiramente, nos espreitava por detrás do espesso cortinado desse imenso palco que se chama a efemeridade duma Vida!

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