mercredi 26 août 2009

A Cervejaria da Esquina












No dia seguinte sou acordado pela Dona Alice, que eram horas de me levantar, que o pequeno almoço estava à minha espera em cima da mesa. Visto o meu roupão e vou ao encontro da minha carcaça com manteiga e a velha chávena de café com leite. A dona Alice senta-se a meu lado e bombardeia-me com perguntas. Como se tinham passado as coisas no Odeon? Contei-lhe tudo o que se passara, excepto o ter caído nas mãos da Polícia logo no primeiro dia! Quando lhe disse que eu tinha feito trinta e tal escudos de gorjetas ela ficou radiante!

Depois fui vestir-me e desci à barbearia mesmo em frente, onde o Zé Barbeiro trabalhava, para fazer a barba, cortar o cabelo, e roçar o meu cotovelo esquerdo pela bandarilha do Zé Toureiro, que muito rapidamente ficava bem afiadinha para a enfiar no arcaboiço do animal. Ele ficou contente de saber que tudo se tinha passado bem e quando lhe disse que eu tinha feito aquela soma em gorjetas ele aconselhou-me a agarrar bem esse emprego com ambas as mãos! Que era giro e que eu tinha feito mais dinheiro com gorjetas num dia do que ele numa semana inteira! Quando ele acabou o seu trabalho eu paguei-lhe e quis dar-lhe uma dessas famosas gorjetas, mas ele recusou, dizendo que connosco era diferente! Nós éramos bons amigos! Depois tirou-me o babete e foi sacudi-lo à rua. Ele parecia-me um belo “matador” com o seu tradicional generoso enchumaço no lado esquerdo do seu “traje de luces”, abrindo a sua rubra capa a atiçar os meus bandarilhados fantasmas condenados ao decisivo final golpe de misericórdia! Acompanhou-me depois até à saída, e quando eu ia a atravessar a Sacadura Cabral para voltar ao Gavião Branco, oiço a sua bela voz muito tauromaquicamente gritar:

- É pá! Tás cada vez mais “guapo”!

Virei-me e, com muito “salero”, gritei:

- Òlé!!!

Chegado a casa meti-me debaixo da torneira de água fria para me ver livre dos cabelos nas costas, pois que banhos quentes, na banheira, só aos domingos! Aperaltei-me e desci para dar uma volta pela Avenida de Roma para ver gente e talvez comprar umas camisas brancas para acasalar com as minhas fardas, para a Dona Alice lavar e engomar como ela tão bem o fazia. Fui a uma camisaria e comprei duas novas camisas brancas para a Dona Alice se entreter. Passei pela “Anastásia”, que entretanto tinha sido trespassada pela Maria de Lurdes, e que agora era uma boutique de cosméticos e roupa interior para senhoras. Dei um salto ao Cinema Roma para ver os cartazes e saudar a Dona Margarete, e evitei debruçar-me sobre o muro para ver o meu macaquinho, temendo fazê-lo ainda mais infeliz. Também me apeteceu ir dar uma vista de olhos pelo Tique-Taque mas resisti à tentação, temendo ser eu desta vez a ser mais infeliz com a falta do Tété. Também não fui ver se o Rui estava nas Pipocas, pois que tinha decidido esquecer o Rui e todas as frustrações que dele me ficaram.

Voltei a casa para almoçar e depois lá fui, aveniadas abaixo, a caminho do Odeon. Levei a minha garrafa para o bagaço, uma camisa branca bem engomadinha, e uma gravata preta que o Zé Barbeiro me tinha emprestado. Chegado ao Odeon subi ao meu segundo andar e preparei as coisas como se tivesse feito isso toda a minha vida. O dia decorreu como o antecedente. Intervalos, clientes, gorjetas, lava copos e, como já muito esperava, café e bagaço para o Joãozinho. Ele estava apetitoso que nem um figo na sua farda de acordar os meus mais secretos fantasmas um tanto sonolentos. Depois do intervalo o João passou em frente do meu bar, olhou-me, sorriu-me e, com a cabeça, convidou-me a segui-lo além cortinas... Obedientemente o segui. Mal lá cheguei o meu polícia já tinha o seu cacetete desembainhado, o mesmo aconteceu como no dia anterior. O cacetete rapidamente deu uma cacetada na cortina mas, como bom polícia que era, revistou-me para ver se eu estava armado e estava! Amor com amor se paga! Pagou-me com a mesma moeda! O problema foi que a minha arma não disparava aos primeiros toques, tinha de ser bem manejada e bem procurar-lhe o gatilho. Balas não faltavam, mas eram balas ao retardador. Não disparavam logo, era preciso ir lá buscá-las ao carregador! Ele, cansado de estar de cócoras, olha-me por baixo da sua pala e previne-me que o intervalo já vinha a caminho. Ele voltou à carga para acabar com o serviço e quando disparei agarrei-lhe a cabeça com ambas as mãos e disparei –lhe na sua cavidade bocal para evitar mais estragos sobre a maltratada cortina. Ele engasgou-se um pouco mas, para meu grande espanto, engoliu a pólvora. Depois lambeu as talhadas de melancia e garantiu-me que era a primeira vez que tal coisa lhe acontecia. Ficou talvez um tanto surpreendido e chocado mas, depois de mais uma vez lamber as talhadas, pôs-se de pé, pôs uma mão sobre o meu ombro e confessou que eu era muito “gostoso”!

Os dias foram passando no bar do segundo andar como a repetição doutras repetições. No bar, aos intervalos era sempre a mesma balbúrdia, e o Joãozinho, tinha gostado da receita e, enfim, talvez tenha compreendido a razão pela qual ele não queria casar-se com a prima mais nova e, não sei com que linhas se cosia, mas estava lá todas as tardes e todas as tardes ele queria mais umas goladas. Mas quando era a sua vez de despejar os cartuchos, eu desviava a cara, e quem pagava as favas era a coitada da pobre indefesa cortina.

Uma das arrumadoras um dia deu com os estragos e desconfiou que ali havia gato! Que haviam certamente espectadores que não se limitavam a ir ao cinema só para ver o filme, e começou a pôr-se à coca. Uma tarde, estava eu a tratar da saúde ao Joãozinho, e ela apanha-me com a boca na botija. Certamente que ela foi fazer queixinhas ao Sr. Rosa, pois que o Sr. Rosa, depois do segundo intervalo da sessão da noite, veio ter comigo ao bar do segundo-andar antes que eu partisse, e declarou que a partir do dia seguinte eu passaria a trabalhar na sua cervejaria ali no mesmo edifício do Odon, a fazer esquina com as Portas de Santo Antão, que era também um outro dos seus negócios! Não protestei pois que tinha sido apanhado com a mão na massa e não valia a pena ir à procura de advogados de defesa! Muito circunspectamente, o Sr. Rosa repetiu-me que eu devia estar no dia seguinte na cervejaria. Que agora os meus horários seriam das nove da manhã até às cinco da tarde durante uma semana, e que depois, semana sim, semana não, trabalharia das cinco da tarde até à uma da manhã. Que podia guardar as quartas-feiras como dia de folga, e que o eu ordenado seria 500 escudos por mês, gorjetas, e duas refeições! E até amanhã!

Nessa noite fui para casa com cara de cavalo cansado. A trote, não a galope! Cheguei ao Gavião por volta da meia-noite e dou com a malta toda na casa de jantar a festejarem o aniversário de casamento da Dona Alice e do Camaradinha. Estavam todos muito animados e eu não quis estragar a festa. Quando a Dona Alice foi à cozinha buscar mais bebidas, fui atrás dela e disse-lhe que eu tinha sido promovido, que agora passaria a trabalhar na cervejaria com um bom ordenado, 600 escudos, duas refeições, e com horários irregulares, mas sempre com camisas brancas! Ela olha-me um tanto desconfiada e resmunga-me que eu certamente me tinha metido em alhadas, mas que eu, a despeito de comer fora, os 600 escudos tinham que aparecer todos os meses! Depois de ter pedido à Dona Alice para no dia seguinte me acordar às sete da manhã, fui para a cama, mas só consegui adormecer quando todos se foram deitar e a algazarra terminou. Nessa noite tive pesadelos e jurei nunca mais me meter com polícias por muito passivos que eles fossem! Passivos? Quem me daria ser preso já no dia seguinte por ter escarrado no passeio!

Na meteórica passagem pela cervejaria, imediatamente percebi que aquilo não era trabalho para mim. Era um pequeno estabelecimento só com um longo balcão e uma porta ao fundo, sobre a qual estava escrito em grandes letras: W.C. Por detrás dessa porta havia um pequeno saguão com um lavatório e um espelho, e duas portas, uma de cada lado. Uma das portas tinha um boneco dum cavalheiro de chapéu e bengala, e a outra porta tinha uma senhora muito distinta, de cabelo ao alto. O problema era que os cavalheiros só entravam para um fino num só trago, pagar, sair a correr, e gorjeta, nem vê-las! E as Damas não frequentavam tabernas! Apenas aquelas que passavam na rua e entravam de foragida, a correrem direitinhas às retretes das senhoras para aliviaram a bexiga e que, depois de terem lavado as mãos e terem passado a mão sobre os cabelos, frente ao espelho, saíam à carga, sem sequer olhar para o balcão, pois que cervejarias não eram para senhoras sérias! E quando havia alguma senhora que entrava cabisbaixa e se metia na retrete das senhoras, logo seguida dum cavalheiro muito macambúzio, era sabido que aquilo não eram problemas de bexiga mas muito mais vaginais e testiculares!

Aguentei uns dias mas detestava estar ali por detrás daquele balcão como se fora um autómato com a mãozinha em cima da alavanca para tirar finos uns atrás dos outros, com o mais de espuma possível, pois que quanto mais espuma tivesse mais os clientes gostavam, e o patrão, esse, adorava! Meio copo de cerveja pelo preço dum cheio até às bordinhas! Muito mais rentável! Por outro lado detestava aquele burburinho permanente de cavalheiros a entrarem e a saírem continuamente, só para molharem a goela, sem uma palavra dar! A única palavra que eu ouvia todos os cinco minutos era: Quanto devo! E isso já fazia duas palavras! Depois aquele barulho infernal que nos vinha da rua, de carros a passarem e a apitarem, de vendedores ambulantes aos berros para venderem cautelas, melões, canetas e lapiseiras, jornais, atacadores, relógios de pulso e de bolso, engraxadores, eu sei lá que mais! Uma coisa era certa, eu é que já não podia mais! Tinha ouvido dizer que no Cinema condes procuravam um arrumador e, como no Condes estavam a exibir “E Tudo o Vento Levou”, um filme que eu anadava há tanto tempo com vontade de ir ver, nessa mesma noite disse ao Sr. Rosa que eu me pirava, que aquilo não era trabalho para mim, que aquilo não era o Tique-Taque! Ele, sem sequer levantar os olhos, disse-me que fosse pela sombra! Fez as suas contas, pagou-me o pouco que me devia, e desejou-me boa sorte!

Saí a correr para apanhar o eléctrico. Eu queria meter-me na cama o mais rapidamente possível. Nessa noite detestei Lisboa e toda aquela multitude de bebedores de cerveja à pressão! Chegado a casa já estavam todos na retranca. Meti-me cama ainda vestido e cheguei a desejar adormecer e nunca mais acordar! Nessa noite sonhei que era milionário e que andava sempre em cruzeiros através do mundo inteiro a ver outras coisas além do meu seca e Meca dum emprego para o outro!

Porém, ao acordar, pensei no Cinema Condes e novos projectos invadiram a minha mente. Projectos dum melhor futuro, de um dia ser alguém, viajar, conhecer outras civilizações, outros horizontes, outras raças!

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