mercredi 2 septembre 2009

O Café Chave d'Ouro
















Durante esse tão duro período da minha vida, em possessão de alguns patacos, dei-me ao luxo de ir ao Café Chave d’Ouro, ali no Rossio, tomar um galão e uma sandes e abrigar-me do frio.

Estava muito bem sentado a uma mesa, fumando talvez o último cigarro do dia, quando subitamente passam pela minha mesa dois jovens, muito bem arreados, muito felizes da vida, a falarem das “vicissitudes da vida”!

Eles seguiam alegremente de regresso a casa para uma certamente boa jantarada com os seus, e eu acabava de ter passado o Natal num vão de escada a sós com os meus medos, isto depois do Guarda Nocturno ter regressado à sua vida!

Uma indomável raiva subiu por mim acima!

Afastei os pratos que estavam sobre a toalha de papel que cobria a minha mesa e, com uma caneta que o criado me emprestara, escrevi este poema duma só assentada!

CONVERSA AMENA

Pobre menino rico que passas bonito todo risonho enfatuado
Dentro do teu fato novo flutuante e garrido como um balão
E que levas na testa um curso completo e as chaves do carro mostradas
na mão!
Teus lábios rosados cultos saciados sem nenhuma vibração
Atiram pesporrentos: As vicissitudes da vida… Numa larga exibição!

Tu que emergiste de um ventre sem fome e sem gritos lauto e repousado
Que tombaste num berço amplo e macio ridiculamente engalanado
E que a vida te surgiu através de uma lente diáfana e colorida
Diz-me: Que sabes tu da vida? Sim! Que sabes tu da vida?

Essa miséria chocante que num insulto apregoas alto e tolamente
Com esse teu falso e intolerável ar pretenciosamente adulto
Foste colhê-la em livros que nem sequer acabaste de ler enfastiado!

Sabes que não há nada pior - Não! Não há nada pior!
Do que nos entregarmos ao que não pertencemos nem nunca pertenceremos?
Que não há nada pior do que recusarmos e negarmos categoricamente
A secreta verdade que dentro de nós dia a dia vamos acalentando?

Alguma vez reparaste naquela prostituta tão idêntica a tantas outras
A passear à noite o olhar ansioso pelas ruas numa constante interrogação?
Reparaste nos seus lábios rodela informe de um vermelho barato
Num sorriso apertado intencional em triste e permanente leilão?
Alguma vez te ocorreu que esses lábios debochados e sem recato
De que lúbrico te utilizas tão vilmente num erotismo desvairado
Outrora foram puros e sedentos palpitantes palpitantes e de ninguém!
E que um dia esboçaram o seu primeiro sorriso deslumbrado
Como a tua como a minha como a mãe de toda a gente?

Reparaste nos homens que não vão asquerosos num rictus chocarreiro
Que passam e que se viram a fazer chocalhar a porcaria do dinheiro
No fundo sujo dos bolsos numa insinuação sórdida boçal e repelente?
E que até o vento da noite parece chincalhar nos seus cabelos crespos?

Alguma vez andaste descalço por não teres sapatos nem chinelos de trança
Por sobre um asfalto cortante de frio como vidros quebrados no inverno
E a arder implacavelmente pelos tórridos Agostos de um verão sem esperança?
Alguma vez caminhaste na sombra cosido às paredes quase rastejando
A dissimular dos teus parentes a humilhação de um fato já decrépito?

Alguma vez -tão criança!- foste disfarçado e receoso àquele quartel
Em busca dos restos do rancho e do casqueiro dispersos pelas mesas desoladas
Aquelas mesas longas muito longas de pedra raiada fria e degradante
Para onde eu esticava vorazmente estas mesmas mãos famintas e vexadas?
Depois quando a casa tornavas com os bolsos repletos de duras côdeas
Amargamente irada e deprimida a tua mãe não te dizia:

-Não quero! Não quero que voltes mais! Nunca mais! Não quero!

E não haviam lágrimas nas côdeas que em migas ela de seguida te fazia?
Sabes o que é ouvir a minha mãe soluçando toda a noite sufocadamente?
Sabes o que é querermos acima de tudo e de todos nesta maldição de vida
A essa criatura admirável terna e corajosa que me sorri compungida
A única coisa de realmente bom que Deus ainda me não açambarcou
E cá de longe aquela saudade imensa de onde venho e para onde vou
A alastrar em nós como chama crepitante como chaga redentora
Que nos alimenta e ao mesmo tempo nos cansa nos aniquila e nos devora?

Alguma vez te dobraste discretamente na rua como um vulgaríssimo ladrão
A colher na borda conspurcada de um passeio uma ponta de cigarro pelo chão
Para enganar aquela estranha sensação de vácuo na tua boca sequiosa e renitente
A quem tu em vez de cigarros brancos longos e roliços davas pontas requeimadas?

E mais! Alguma vez amaste louca e verdadeiramente uma mulher entristecida?
Alguma vez sentiste húmidos os teus olhos baços e enxutos húmidos de felicidade!
Por a sentires pequena e toda entregue na mísera escassez dos teus braços?
E nota bem! Alguma vez morrendo aos poucos renunciaste ao amor dessa mulher
Pura e simplesmente porque os outros abusivamente assim o decidiram?

Alguma vez palmilhaste meia cidade em busca de um emprego que tarda em vir
Um emprego quantas vezes deplorável asfixiante mas que nos permite subsistir?

Alguma vez passaste uma noite em claro imensa que parecia não ter fim
Num quarto de dormidas económicas pestilento em promiscuas e fétidas exalações
Onde todos dormiam à sua maneira menos tu em horríveis convulsões
Ou pernoitaste no patamar da escada de uma pensão num imundo e febril arrepio
Como um cão raivoso sem dono nem coleira sem tigela nem barraca num desvario?

Alguma vez mascaraste de humildade um ódio grandioso ao esmolar uma parca refeição?
Alguma vez para o bilhete do eléctrico te faltou um denegrido e ridículo tostão?
Alguma vez perverso e aviltado com um desprezo enorme pela humanidade inteira
Alugaste miseravelmente o sexo para pagar uma prestação e calar uma hospedeira?
Alguma vez te masturbaste para conseguir conciliar o sono e não endoidecer ainda?
Alguma vez sentiste nojo um nojo atroz irreparável e viscos de ti próprio?
Alguma vez amando profundamente a vida aquela outra vida que te não foi dado viver
Estiveste à beira de um precipício para te despenhar e não te despenhaste?
Alguma vez choraste de raiva por te saberes impotente para valer a um desgraçado?
Alguma vez soluçaste sobre o cadáver já hirto de um gato todo branco ensanguentado
Que parecia encerrar em seus olhos estranhos e longínquos dum esfíngico mistério
Toda a indiferença e insensibilidade que eu de alto a baixo gostaria de sentir
Por toda essa humanidade com um pouco desse teu ar de estúpida superioridade?
Alguma vez sentiste respeito pelos que num declive gradualmente vão descendo
Porque não têm mais forças nem apoio para resistirem com brio e orgulho combatendo
Para lutarem contra aquela força indecifrável que fatalmente os arrasta e os impele?

Mas depois uma lâmpada acesa por detrás dos foscos vidros de uma janela
Não exercia sobre ti o místico fascínio do brilho cintilante duma intangível estrela?

Alguma vez contrariaste uma tendência ou debelaste um vício menino vicioso?
Alguma vez escreveste um poema mesmo porco lamentável menino intelectual?
Ao menos alguma vez leste um poema até ao fim bom ou mau mas sempre mensageiro?
Alguma vez estiveste desprotegidamente horas e horas sob uma chuva torrencial
Por ser na rua o único processo de escutares aquela música sortílega e necessária
Para te ergueres das trevas obsecadas e medonhas de uma loucura quase magistral!

Depois de tudo isto te ter acontecido a rasgar impiedosamente uma efémera juventude
Aqueles breves anos que deveriam ser belos leves e felizes para toda a gente
Quando tu fortemente aprisionada na garra furiosa de uma verdadeira vicissitude
Cheio de um remorso alucinado no rasto do desespero aniquilado e ausente
Esmagado pelo cansaço sem ânimo sequer para esboçar um movimento de revolta
Então acerca-te de mim e fala-me longamente de tua angústia do teu medo torturado
Podes mostrar-te confiadamente e gritar e chorar até sobre o meu ombro já tranquilo
E podes apertar a minha mão como se ela fosse o último apoio consistente que te resta
Porque eu saberei escutar-te até ao fim num balsâmico silêncio afagador.

Depois então dar-te-ei essa mesma mão esquálida no fundo bem erma e bem vazia
Chamar-te-ei homem amigo poeta irmão com amizade com ternura e gratidão.
Contar-te-ei uma longa história autêntica bruta descoberta sem nenhuma simetria
E levarte-ei vida fora já liberto a mostrar-te as ruas tal como elas são!


Rogério do Carmo
Lisboa, 29/12/1959
Café Chave d’Ouro

1 commentaire:

  1. Este último texto, "Conversa Amena" é de uma força e humanidade fabulosas!
    E quando se ouve a tua voz a declamá-lo Rogério, transforma-se numa explosão de emoções que emergem em lágrimas incontidas, que afloram do mais profundo da nossa alma!

    Gosto de ti.
    Beijo

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