mercredi 2 septembre 2009

O AMARO & MOTA







Depois dessas duas penosas e degradantes semanas a calcurrear as ruas e os vãos de escada de Lisboa, de embuscada em embuscada, graças a Carmen Dolores e seu consorte, consegui um emprego estável no Aeroporto da Portela! Foi nesse Amaro & Mota, rodeado de gente boa, que consegui finalmente recuperar a minha dignidade e viver uma vida mais ou menos normal, sem as afrontas de propostas a 20 paus e tantas coisas mais, como o frio e a fome, e o ser olhado de esguelha como se eu fora um Marciano!

Olhai gente, toda a gente, olhai! Não me fixem de soslaio, discretamente!

Este meu emprego - que seria o último a ter em Portugal - foi realmente a redenção da minha alma em pedaços. Enfim eu podia olhar-me num espelho e ver-me tal como eu era! Um sonhador que um dia alguém trataria de poeta, um poeta que queria ser mais forte do que as ciladas da vida! Um talvez poeta que queria mostrar ao mundo a sua inventiva criatividade! Que a minha boca podia também beijar, dizer poesia, cantar, assobiar, sorrir! Que as minhas mãos podiam também amar, desenhar, pintar, esculpir, acariciar, dar e receber! Que os meus olhos podiam ainda ver alvoradas e moribundos poentes sobre as montanhas adormecidas! Dar o meu corpo a todos aqueles que o desejassem, em troca de paixão, não de moedas! Que eu, apesar de todas as vicissitudes, continuava puro como dantes, a despeito das máculas duma vida cheia de emboscadas!

Na Amaro & Mota a vida raiou novamente, a, pouco a pouco, apagar da minha memória esse calvário que acabava de atravessar! Tive realmente muita sorte. Recomecei a lidar com pessoas, não com depravados que atravessaram o meu caminho, não de perdição mas unicamenete de perdido! O posto que me deram foi o de assistente do responsável dos operários. Ele chamava-se Guilherme e era para mim como um amigo, alguém que certamente se apercebeu das provações que eu vinha de atravessar. Nos seus olhos havia uma luz que me enchia a alma de ternura. No escritório onde me instalaram havia também a secretária do engenheiro Amaro, um belo homem cheio de bondade e deferências. Ele era irmão do grande patrão, o Sr. Amaro, que era um homem um tanto inacessível, mas respeitoso e respeitado. O Sr. Mota era, por outro lado, um homem afável que se respeitava com prazer e amor. Um outro personagem que nunca esquecerei, instalado no escritório mesmo ao lado, era o engenheiro Taínha, um homem que soube descobrir em mim grandes qualidades de trabalho e quase de admiração pela minha pessoa. Ele sentiu que eu era um homem sensível e cheio de talentos, cujos deviam ser aproveitados. Não fiquei muito tempo como assistente do Guilherme, esse discreto homem a quem, num curto espaço de tempo, tanto me afeiçoara. O engenheiro Taínha ajudou-me a sair da lama! Quando lhe falei do meu problema finaceiro, que estava nas lonas e que precisaria de dinheiro para poder procurar alojamento, ele imediatamente se dirigiu ao escritório do senhor Mota e, minutos depois, reaparaece, agitando um cheque com a metade do meu salário - que era de 1.500 escudos - como avanço, dizendo-me:

- Por hoje está dispensado! Vá ao Banco depositar o seu cheque e procurar uma pensão onde possa viver dignamente!

Mais tarde, quando lhe falei do meu problema de, se possível, ter as quartas-feiras livres para estar com o Nuno Fradique na RTP, ele, com uma grande palmada nas costas, com os olhos a transbordarem de afecto, diz:

- Rogério, a partir dagora, você tem todas as quartas feiras livres para ir para a RTP! Você é um artista e merece que o ajudem a vencer! Com o Nuno Fradique você está em boas mãos!

Depois saca da sua carteira uma nota de 50 escudos e, pondo-a no meu bolso, disse-me ternamente:

-Aqui tem para as passagens e os seus cigarros. Paga-me quando puder!

Dias mais tarde, antes da minha primeira quarta-feira, o engenheiro Taínha transferiu-me para o laboratório, apercebendo-se que eu tinha qualidades e ambição de aprender e avançar. Que eu tinha mais futuro e mais facilmente poderia ser dispensado às quartas-feiras, para eu estar livre para os meus primeiros passos na arte para a qual eu pensava ter nascido: O Teatro!


Amaro & Mota era um empresa contratada pelos dirigentes do Aeroporto, para alargarem as pistas para o último grito da tecnologia aeronáutica desses tempos: os aviões a jacto! O meu trabalho era, com uma pequena equipa, irmos de jipe até às pistas em contrução, coleccionar amostras dos terrenos a serem utilizados, transportado-os para o laboratório da empresa, e analisar o solo. Verificar a humidade e a consistência para a vialibilidade do projecto de abrir pistas para os jactos, que teriam uma aterragem e descolagem muito mais violentas do que os aviões antecedentes. O trabalho fascinava-me! Primeiro, a colheita de amostras de terreno era para mim quase uma aventura. Ir de jipe com outros bons colegas era quase como fazer um excursão. Era uma grande camaradagem e alegria! Só faltava a melancia e o acordeão! Depois da colheita das amostras, voltávamos ao laboratório para fazermos as análises. As análises eram feitas duma maneira científica que muito apreciei aprender. Sempre gostei de aprender! Aprender, para mim, é, sempre foi e sempre será, o mais glorioso verbo da língua de Camões! Sempre detestei marcar passo. A minha ambição era avançar, aprender novas coisas, descobrir, criar, provar a mim mesmo e aos outros que viemos a esta terra por razões precisas, não apenas para crescer, fazer a tropa, casar, procriar! Havia algo mais: Viver!

Ao sair da Amaro & Mota, nesse primeiro dia de contacto com aqueles para quem e com quem iria trabalhar, fui apanhar o autocarro ali mesmo em frente da porta das traseiras. Apanhei o primeiro que passou para uma curta viagem até à Praça da Figueira. Ao descer do autocarro comprei o Diário de Notícias a um vendedor ambulante e fui-me sentar no Café Gelo, ali perto das cabines telefónicas, no caso de precisar de fazer chamadas. Tomei a minha velha bica enquanto percorria a coluna de anúcios “Quartos Alugam-se”. Um dos primeiros anúcios oferecia quarto e pensão completa, ali na Rua da Prata. Nem foi preciso telefonar, foi só ir a pé até à morada indicada, subir ao segundodo andar e pedir para falar com a Dona Amália. Foi ela que me abriu a porta e me pede para entrar e me mostrar o quarto que tinha disponível. Era um pequeno quarto com uma fresta para as traseiras. A mobília reduzia-se a uma pequena cómoda e um pequeno guarda-roupa, mas havia algo de muito ítimo e pacato que muito me agradou. Assim como a Dona Amália com o seu vasto e generoso sorriso. Depois mostrou-me a casa de banho com chuveiro, água quente e fria nas duas torneiras. A casa de jantar, com janela para a Rua da Prata, e a outra para a Praça da Figueira, era vasta. Havia uma longa mesa ao meio com cadeiras à volta, que podia acomodar uma dezena de pessoas. Disse-me que quartos só tinha três, mas que tinha mais alguns hóspedes que vinham apenas almoçar. Como ela disse, rapaziada que trabalhava ali na Baixa e que viviam fora de Lisboa. Perguntei quanto me custaria pensão completa por mês. Ela responde-me que ela não fazia ao mês, fazia à semana, que uma semana, cama, mesa, e roupa lavada, me custaria 200 escudos, que era um pouco caro por causa da renda da casa ali na Baixa! Digo-lhe que tinha de ir ao Banco levantar dinheiro, que voltava já para lhe pagar a primeira semana. Ela retem-me, que lá em casa não se pagava adiantado, que se pagava ao fim de cada semana. Saí dizendo-lhe que ia buscar as minhas malas, que voltaria dentro de algumas horas. Ela pede-me para estar de volta o mais tardar antes da meia-noite! Desci a correr para chegar ao Banco antes que ele fechasse. Depositei o meu cheque e apanhei o eléctrico até ao Campo Pequeno para ir ao Gavião Branco buscar as minhas malas.

A Dona Alice recebeu-me bem. Ficou radiante quando lhe disse que tinha arranjado emprego no Aeroporto, a ganhar 1.500 escudos por mês, que agora se tinham acabado os saltos dum cinema para o outro! Agora que eu ganhava bem a vida, em vez de Sr. Rogério, ela quase que me tratou por Vossa Excelência, que as minhas malas estavam no meu quarto, ao pé da minha cama, e que a minha cama estava lá à minha espera! Ficou pesarosa quando lhe disse que já tinha alugado um quarto na Rua da Prata. Tomámos um café juntos, conversámos imenso. Ela contou-me que o Camaradinha estava quase na reforma, que a Menina Luisa tinha voltado para o marido, que o Guilherme se ia casar, e que o Zé Barbeiro tinha-se deixado de touradas depois duma grande cornada que apanhara, e que o Antánio continuava sozinho no seu quarto desde que eu e o meu irmão Fernando tínhamos partido. Que o António andava sempre a perguntar quando era que eu voltava, que eu era um gajo porreiro, que era uma pena eu andar por aí perdido por essa Lisboa, que voltasse para casa! Sorri a todo aquele carinho que tanto me faltou durante essas duas semanas que andei à tona pelo Cais do Sodré, mas que agora me tinha compremetido com a senhora da Rua da Prata, que voltaria se por acaso essa pensão me não agradasse. Quando manifestei desejo de pegar nas minhas malas, ela telefona para os táxis para encomendar um que me viesse buscar lá em baixo à porta. Se eu precisava de dinheiro, se tinha dinheiro para o táxi?

Quando o táxi apitou, ela desceu comigo para me ajudar com as malas, e ao despedir-se de mim disse-me que eu era sempre bem-vindo, se um dia quisesse voltar. Disse-lhe que sim, com muto gosto, se a ocasião se proporcionasse, que tinha saudades do Zé Barbeiro e do Camaradinha.

E realmente tinha!

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