samedi 5 septembre 2009

A Pensão da Rua da Prata











Chegado à pensão com as minhas duas malas, a Dona Amália abriu-me a porta e desejou-me as boas-vindas! Apontou-me a porta do meu quarto e disse-me para me pôr à vontade, que fizesse da sua casa a minha casa! Comecei a desemalar as minhas coisas e a organizar a minha cómoda e guarda-roupa quando, discretamente, alguém bata à minha porta. Abri. Era a Dona Amália a trazer-me as duas chaves, uma da porta da escada lá em baixo, a outra do agora o nosso lar. Explicou que eu só pagaria ao fim da semana, mas que as chaves só as entregava aos seus hóspedes depois de eles terem trazido as suas malas. Que era a única garantia que ela exigia! Antes de se afastar para a cozinha, ali mesmo em frente do meu quarto, disse-me que o jantar era das sete às nove da noite, que me pusesse à vontade, e que a casa de banho estava ali às minhas ordens para um duche sempre que eu quisesse.

A Dona Amália causou-me muito boa impressão!

Depois de ter arrumado as minhas gavetas deitei-me sobre a minha cama para descansar um pouco. Que prazer celestial deitar-me de costas sobre uma cama fofa e limpa que parecia ter estado ali à minha espera desde que as camas tinham sido inventadas! Que prazer ter sobrevivido aquele calvário de duas semanas a arrastar as minhas desditas pelas ruas de Lisboa! Como era bom ter uma mesa cabeceira com um candeeirinho eléctrico com um botão à espera do meu indicador! Como era bom ter deixado para trás as minhas degradantes enregeladas noites pelo Cais do Sodré! Como era bom ainda estar vivo, ter a vida quase toda à minha frente! Que bom, talvez, um dia, ser um grande actor! Senão, ao menos vir a ser alguém! Alguém que um dia viesse a dizer ao mundo inteiro que tinha valido a pena ter nascido! Poder um dia vir cantar esse fado: “Valeu a pena ter sofrido o que sofri, ter amado quem amei, ter beijado quem beijei, ter vivido o que vivi!”! Agora, depois de tantos fados que por esse mundo cantei, “cantarei até que a voz me doa”!

Depois dum longo duche sob aquela água quente à minha disposição, depois de duas dolorosas semanas de vagabundagem pelo putedo do Cais do Sodré, após duas semanas de apenas ter lavado a cara naqueles repuxos públicos da cidade, para os transeuntes matarem a sede, que bom estar d’olhos fechados sob aquele chuveiro generosamente aberto sobre a minha cabeça de quase suicida! Que bom estar vivo e acreditar que a vida ainda me ofereceria muito boas razões para um dia dizer que valeu a pena ter nascido! Eu, que sempre me perguntei: que diabo vim eu cá fazer a este mundo! Quem decidiu tal absurdo? Para quê nascer se todos um dia teremos de morrer? Quem, ou o quê, teria inventado esse mais absurdo de todos os absurdos? Como me disse um dia a minha mãe: “quem tem unhas é que toca guitarra”! Eu tinha as unhas! Agora era preciso encontrar já, urgentemente, uma guitarra que eu pudesse dedilhar, provar ao mundo que eu era bom para qualquer coisa, quanto mais não fosse para dedilhar o meu fado, o meu destino, a minha sorte, dedilhar a minha vida!

Enquanto aguardava as horas do jantar, olhei em derredor e comecei logo a, imaginariamente, decorar o quarto todo. As primeiras coisas que teria de comprar, logo que pudesse, era um despertador para por em cima da mesa de cabeceira, ao pé do candeeirinho, uma jarrinha para eu pôr em cima da cómoda com algumas flores. Talvez também, sobre uma das paredes, um quadro, um cartaz qualquer que viesse acrescentar àquela calmaria um pouco de cor, de calor! Talvez um desenho que eu eventualmente fizesse a lápis de cor? Talvez uma foto do Tété em cima da minha mesa de cabeceira? Um pequeno transístor para ouvir os discos “pedidos”? Algo que me lembrasse que eu ainda existia e que tinha direito à vida? Sim! Algo que me dissesse em surdina que eu tinha direito a viver o meu futuro, fosse o que ele viesse a ser! Para quê viver? Só para provar a mim e aos outros que me valeu a pena ter nascido!

Por volta das sete a Dona Amália bate docemente à minha porta para me anunciar que o jantar estava pronto. Agradeci, levantei-me para ir jantar. Deitei uma olhadela aos meus restos mortais no espelho do guarda-roupa, para ver se eu estava decente para ser apresentado aos outros hóspedes, todos eles perfeitos desconhecidos. Entretanto começara a ouvir passos e vozes no corredor. Pensei que eram os tais outros hóspedes que começavam a chegar. Abri uma greta da porta do meu quarto para ver sem ser visto, mas através dessa greta só conseguia abranger a escancarada porta da cozinha da Dona Amália. Havia um grande reboliço nessa cozinha com alguns tachos e panelas a fumegarem em cima dum grande fogão numa enorme chaminé. Enchi-me de coragem e avancei até à casa de jantar donde já me vinham algumas vozes e risotas. Entre portas, disse “boa-noite”. As vozes calaram-se todas e alguns olhos me fitaram em silencio! A Dona Amália apareceu com uma grande terrina de sopa e uma concha nas mãos e indica-me onde eu me iria sentar.O que passaria a ser o meu lugar à volta daquela longa mesa que mais tarde, ao vê-la de longe, com todos à sua volta, lembrou-me aquela famosa tela de Leonardo da Vinci: A última Ceia! Eu passaria a ser um dos apóstolos? Judas não queria ser! Nem o Nazareno! Queria ser eu na minha integridade, na minha autenticidade!

Ao pousar a terrina em cima da mesa muito bem adornada, Dona Amália apresenta-me aos outros seus três hóspedes como sendo o... que coisa - admite ela alegremente - nem sequer sei o seu nome! Apresentei-me como sendo o Rogério. Os outros três rapazes, soerguendo um nadinha as nádegas da cadeira, apresentam-se, um de cada vez: um era o João, um moçambicano que tinha vindo para Lisboa para tentar a sorte, um outro era o Cabrita que - parece-me - andava a estudar jornalismo. O terceiro, santo Deus, era certamente o princípio duma outra pequena paixoneta. Ele era o Nunes, um rapaz encantador, com uma voz acariciante e uns olhos azuis que me trespassavam como setas. Durante o jantar cada qual contou a sua história. Eu não contei a minha porque era para maiores de cem anos! Disse apenas - para botar figura - que trabalhava no Aeroporto da Portela.

Depois do jantar fomos todos tomar uma bica ao Café Gelo. A Dona Amália, café, só de manhã para o pequeno almoço. Cada qual falou dos seus projectos, de estudos, de ocupações que gostariam de ter num futuro muito próximo. O Nunes já estava arrumado, trabalhava como guarda-livros numa grande firma na Rua Augusta. Depois desse longo café cada qual foi à sua vida. Eu e o Nunes voltámos para casa. O Nunes deu-me um doce “até amanhã” e deixou-se engolir pelas treavas do seu quarto, fechando a sua porta muito mansamente. O seu quarto era mesmo ao lado do meu. Eu despi-me e acomodei-me naquela bela caminha feita de lavado com lençóis muito brancos que cheiravam a alfazema. Apaguei a luz, fechei os olhos para, enfim, dormir como um ser humano, pois que no dia seguinte teria de estar às nove horas da manhã no Aeroporto! Mas não conseguia conciliara o sono! Eu tinha vontade de me ir meter na cama com o Nunes e dar-me todo, entregar-me todo naquele intenso desejo do seu corpo. Dele receber milhares dos seus gemidos de gozo, não uma maquia! O que eu mais queria era mergulhar a minha boca na sua, sentir o seu corpo vibrar sob o meu, penetrá-lo impiedosamente até ao último estertor do meu corpo tão sedento doutro corpo que se me desse inteiramente, um corpo onde eu pudesse desaguar em tumultuosas cheias, não para apenas obter vinte paus para matar a fome e o frio. Por fim acabei como muitas vezes na vida, solitariamente, guardando só para mim essa diabólica explosão dum satânico orgasmo. Depois dormi que nem um anjo depois de ter retirado as suas asas. Coisa que eu já não tinha feito há muito! Então, mesmo sem asas, eu podia voar, sobrevoar essa Lisboa então já toda iluminada e um tanto adormecida. Nessa noite eu não dormi só, dormi com alguém que muito amava. Uma mulher que me fez sofrer, mas que nessa noite me abriu os seus braços para que eu adormecesse tranquilamente no seu regaço: Lisboa!

Na manhã seguinte, a Dona Amália acorda-me para o pequeno almoço que, como ela me tinha dito, seria servido entre as sete e as nove da manhã. A esse pequeno almoço éramos apenas eu e o Nunes e a Dona Amália. Durante a refeição pergunto ao Nunes se havia um autocarro directo da Baixa até ao aeroporto. Ele disse que sim, que haviam dois, que os apanhasse ali naquela paragem em frente da Pastelaria Suíça. Deu-me os números desses autocarros, que agora não recordo! Que haviam muitos de manhã, por serem as horas de ponta! Apanhei o primeiro que chegou e ao pedir o bilhete ao condutor, disse-lhe que queria até à porta das traseiras do Aeroporto. Ele estendeu-me um bilhete, cobrou o preço, sem dizer uma palavra. Deduzi que tinha apanhado o autocarro que me levaria ao meu destino. Lá chegado, atravesso aquele pequeno portão, frente ao qual se encontrava o laboratório. Os meus colegas já tinham chegado. Depois das matinais saudações organizámo-nos todos para a minha primeira expedição até às pistas, para a recolha de amostras de terra. A viagem foi curta e divertida. Lá chegados descemos todos e o chefe (esqueceu-me o seu nome) com o Mário e mais o chofer. Descemos e todos começamos a laborar. O meu chefe chama-me de parte e explica-me como obter as tais amostras, fazendo com um pequeno tubo um buraco no solo, extrair o tubo, e o conteúdo desse tubo seria uma das amostras. Tive de repetir essa mesma operação umas tantas vezes, em alguns tantos outros sítios diferentes. Tinha de ser, entre cada buraco, uns vinte metros de distância. Haviam outras operações a executar, mas para mim, nessa manhã, tudo ficou por ali. Depois de termos comido umas sandes à laia de piquenique, bebido umas pingas que cada qual tinha trazido de suas casas numa pequena lancheira, deitámo-nos uns minutos de costas sobre a relva a fazer uma pequena sesta e a fumar uma cigarrada. Nessa manhã os meus colegas compartilharam comigo os conteúdos das suas lancheiras, e informaram-me que eu também tinha de trazer uma lancheira de casa ou ir almoçar àquela casa de pasto, ali mesmo à saída do portão, em frente da paragem dos autocarros. Mais um problema que eu teria de resolver, pedir à Dona Amália que me preparasse um lanchezinho para eu levar para o emprego. Problema esse que ela muito maternalmente resolveu. A comida não era problema, mas que não tinha lancheira, que fosse comprar uma ali à Rua dos Fanqueiros, o que fiz, ainda com parte dos 50 escudos do Taínha!

A tarde depois desse piquenique, foi passada no laboratório a aprender a fazer as análises. O Mário, um loirinho muito compincha, que já conhecia bem esse trabalho, ensinou-me tudo num instante. Para mim foi tudo uma grande descoberta que, depois, com o tempo, passaria a ser apenas uma monótona tarefa diária. Mas esse Mário foi, para mim, sobretudo, o que eu mais precisava: um amigo! Foi ele quem me amparou em todos os problemas iniciais dessa minha nova actividade! Ele era aquele a quem eu podia contar as minhas anedotas, assim como venturas e desventuras do meu dia a dia. Felizmente, para ambos, ele não me acordava o corpo sempre em busca de novas sensações. O único que me preocupou nesse sentido foi o Engenheiro Amaro, o irmão do grande patrão, pois que era um daqueles loirinhos que sempre tanto me abriram certos apetites. Assim como aqueles olhos dum azul muito transparente que me diziam: Não! Nem pensar nisso! E ele ficaria a ser a maçã que a Eva um dia mordeu. Com ele, a minha serpente não tinha funcionado. Assim ficámos ambos com os pés sobre a Terra! O Paraíso seria para talvez um dia...

Duma forma geral, os dias foram passando, e eu cada vez mais à vontade no Amaro & Mota. Sobretudo, dentro da minha pele. Para mim foi como uma ressurreição dessas malditas noites no Cais do Sodré. Foi como se me tivessem deitado ao lixo, e uma mão divina me tivesse recuperado, sacudido da porcaria, ter lavado, engomado, dobrado, e posto numa gaveta sob um raminho de alecrim. Mas eu não era para estar fechado dentro duma gaveta. Eu era para abrir as minhas asas e voar, voar! Ir, a cada voo, pousar nos sítios mais inverosímeis. Eu queria viver, viver! Sobretudo queria esquecer aquele meu ter andado de rastos pelo Cais do Sodré mendigando uma sopa quente, um colchão onde deitar a minha fadiga, um cobertor que me resguardasse daquele cortante e húmido frio dum então Natal já quase à porta. Esse Natal de 1959!

Em casa da Dona Amália também comecei a sentir-me “chez-moi”! A estar inteiramente à vontade com os outros rapazes da Dona Amália. Havia o Nunes, o meu vizinho, o tal que dormia ali tão perto e tão longe de mim, O João, a quem chamavam o “preto”, coisa que eu detestava. Um dia lembrei a todos que s brancos também não estavam muito orgulhosos da palidez da pele que lhes cobria o esqueleto! Que eles, todos os domingos iam passar o dia na Costa da Caparica ou na Praia do Meco, para se fazerem pretos! Para mim o João era um homem, preto por fora, mas níveo por dentro. Ao passo que alguns brancos que são brancos por fora e que por dentro são tão negros como uma noite sem lua, onde nem uma só estrela se atrevia a cintilar! A cor da nossa pele é um caso de pigmentação, não algo que se aprende numa Universidade! Gosto muito de por o preto no branco, mas também, para variar, questões que paridades, por também o branco no preto! O Bíblico dar e receber, o melhor que se pode e se deve fazer!

A luminosa atmosfera em casa da Dona Amália, começou, porém, um dia, a ser um tanto ensombrada pela presença dum novo hóspede, daqueles que vinham apenas almoçar: o Silva! O Silva era um daqueles homens que não eram do tipo de pessoa que todas as mulheres gostariam de ter como genro, mas sim como amante. Ele era realmente um homem com tudo no seu lugar. Era alto e moreno, uma barba de tom azulado a circundar aquela sua boca de pecado, aquelas bocas que ao olharmos para elas nos dá vontade, não de as beijar, mas sim de as devorar! O seus olhos eram pretos e cortantes como lâminas bem afiadas. Caminhava como um sultão em busca de odaliscas e andava constantemente – um hábito bem português – a ajustar o seu enchumaço ou a enfiar as mãos nos bolsos das calças, sempre a amassar o seu pão nosso de cada dia. Só tirava as mãos dos bolsos de vez em quando para exibir a sua pequena levedura. Discretamente, mas pondo bem em relevo algo que ele tinha entre as pernas do qual obviamente muito se orgulhava. Certamente uma morcela bem aviada! Quando sentado à mesa, abria dois botões da sua branca camisa, por baixo das suas sempre muito garridas gravatas, acariciando os bicos do peito e a deixar os cabelos que cobriam literalmente os seus peitorais, espreitarem um pouco à janela. Claro que isso me excitava, mas eu não era o único a ser vítima desses seus rituais de sedução. A Dona Amália começou a ficar louca de desejo, escrava, como quase todos nós, dessa manipulação da natureza para garantir a continuação de todas as espécies, nos empurram para dentro desse prazer sobrenatural que é essa cilada da natureza de dois sexos que se buscam, se encontram, e se esfrangalham!

Com o correr dos dias o Silva começou, antes de almoçar, ir tomar um pequeno aperitivo no quarto da Dona Amália. A Dona Amália, para poder ter mais tempo de estar no seu quarto com o Silva, contratou uma criada, uma mulher muito ampla e aberta, que nos rodeava com carinhos como se fôssemos todos seus filhos. Todos, não! Menos o Silva! O silva ela também o queria mas era para a cama! Ela chamava-se Palmira e andava fula com a Dona Amália sempre enfiada no quarto com o Silva, e ela a servir os almoços! O que ela certamente teria preferido seria inverter as tarefas: ela no quarto com o Silva e a Dona Amália a servir os almoços! Despeitada, a Palmira começou a fazer rodar um boato: que a Dona Amália era um canastrão, e que o Silva ia para a cama com ela para almoçar de borla! Porém, o que a Palmira nem sequer lhe passava pela cabeça, era que o Silva morava ali mesmo ao pé, na Praça da Figueira, numa grande água-furtada onde eu comecei também a ir papar as amoras das silveiras do Silva! O Silva era aquele tipo de moscardo que fecundava as suas fêmeas durante o voo. Dizia-se em Portugal que “depressa e bem não há quem”, mas o Silva era uma gloriosa excepção! Moralidade da historia: eu era então um homem feliz! Tinha o Amaro & Mota que era um emprego de que muito gostava, tinha a pensão da Dona Amália onde se comia muito bem, tinha colegas maravilhosos no trabalho e na pensão e, como bela cereja sobre o bolo, tinha um machão de primeira apanha, que também gostava de se render a outras evidências: quem vai à guerra dá e leva! Que mais poderia eu querer então? Talvez um dia escrever as minhas memórias?

A RTP para iniciar a minha carreira de actor, ali nas mãos do Nuno Fradique, que muito apreciava os meus talentos de figurante e de assistente de encenação, começaram também a prolificarem-se a grande velocidade!

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