lundi 30 novembre 2009
Paris Sob a Neve
Era Dezembro. Fazia um frio de rachar e eu não tinha aquecimento no meu quarto. Deus tinha-me providenciado a mais sublime de todas as braseiras: Heinz passou a dormir todas as noites comigo para me aquecer e para que eu o aquecesse. De manhã tomávamos o nosso pequeno almoço e depois íamos quase de mãos dadas até ao Metro Jasmin apanhar o nosso combóio. Ambos descíamos em Havre Caumartin. Eu apanhava a Rue Scribe para a Swan e ele, para o seu jornal, o Boulevard Haussmann.
Na boutique fazia menos frio porque tínhamos o aquecimento central do prédio todo. Durante muito tempo deixei de me exibir à porta, pois que, por um lado eu tinha agora o Heinz que me descongelava e, por outro lado, porque a neve cobria Paris toda de branco e me coagulava o sangue nas veias. Moshé aquecia-se no primeiro andar com as suas contas correntes e eu, em baixo, aquecia-me a ler os anúncios dos jornais em busca duma saída da butique e começar uma nova vida longe do Moshé.
Numa dessas gélidas manhãs escrevi uma carta ao Pat a quixar-me da neve e do frio, e que não tinha aquecimento na minha água furtada. Claro que não mencionei a presença do meu alemão para me aquecer o corpo e a alma. Na butique, os únicos momentos humanizados que tinha eram as visitas do Melo e do porteiro do Hotel Scribe a pedir-me um cigarro para ter a certeza que eu os tinha. Outros momentos agradáveis, quando tinha dinheiro, eram as minhas idas ao Self-Service almoçar. Aí comecei a ter boas relações com o pessoal e a fazer novos conhecimentos com certos clientes que faziam questão de comer à mesma mesa que eu. Por outro lado, na butique, encantava-me estar de pé por detrás da porta a ver a neve cair e as pessoas todas encapuchadas, cabeça baixa, mãos nos bolsos, a fugirem aos etéreos flocos na sua efémera brancura .
Um certo fim de semana sou bafejado pela visita do Pat e do Peter que me vieram trazer um pedaço do nosso apartamento na Ainger Road. Tratava-se do pequeno aquecedor a petróleo que tínhamos no hall para aquecer a casa toda. Como Pat se fazia abençoar pelo aquecedor a gaz que havia na lareira da sala, teve a doce e brilhante idéia de me trazer o nosso aquecedor a petróleo que se aprumava apagado e silencioso no seu reduzido canto sem qualquer uso. Para mim foi uma grande alegria ter a visita deles, mas a visita do aquecedor ainda foi muito mais bem-vinda! Depois duma rápida troca de beijos, a primeira preocupação foi descer e ir a correr à drogaria comprar uma botija de petróleo para por o meu aquecedor a abrigar-me com a sua divina azulada chamazinha. Nesse fim de semana fui mostrar ao Pat e ao Peter o pouco que eu conhecia de Paris, os três sob o mesmo chapéu de chuva que milagrosamente se transformava em chapéu de neve. Cada vez que entrávamos num Café para tomar um bebida bem quente, tínhamos que o fechar e sacudi-lo à porta, antes de entrar, a libertá-lo da brancura imaculada desses interruptos flocos caindo mansamente das cinzas dum céu dum cinzento assustador. Foram apenas duas noites que tive aquele grande prazer de ter a companhia do Pat e do Peter. Pusémos o colchão do meu divã no chão e, eu e o Pat dormimos na cama, e o Peter no colchão no chão. Nessas duas noites não sei com quem nem onde dormiu o meu Heinz com o seu morno corpo de róseo veludo!
Os dias foram passando sob aquele manto de neve. Graças ao Pat eu tinha o meu aquecedor e o Heinz para me libertarem um pouco dos horrores que o frio sempre me causaram. Heinz continuou a subir todas as noites para jantarmos e, depois dum filme na televisão, irmos para a cama fazer amor antes de nos entregarmos a um sono profundo. O aquecedor também ia dormir, pois que receávamos deixá-lo a carborar a noite toda. De resto, durante a noite, eu era o aquecedor do Heinz e ele o meu. Tudo isto tinha começado a entrar numa muito agradável rotina, mas sem grandes novidades. O Moshé continuava a proteger-se por detrás daquele alto muro que ele construira à volta da sua pessoa, para não ser incomodado pelos problemas dos outros. Heinz entretanto foi transferido para a Suissa e propos-me eu apanhar o seu estúdio ali no seu rés-de-chã, dizendo-me que lá em baixo fazia menos frio e que me via livre das penosas escadas de caracol até ao meu sexto andar. Mas a renda era de 500 francos e eu não tinha meios para tal promoção do conforto. Continuei na minha água furtada à espera de melhor emprego e melhores dias. Longe do Moshé!
Esses enregelados dias em Paris foram-se arrastando e o Natal aproximava-se. O porta-moedas a definhar e o Moshé a engordar. Cada vez que lhe pedia pagamento dos meus 1.200 francos que ele me devia ele fechava-se em copas, alegando que não era culpa sua se eu não sabia fazer render o meu excelente ordenado. O Moshé virava-me as costas e o meu aquecedor também! Um dia tentei acendê-lo mas ele, talvez morto de frio, recusou-se! Tudo o que tentei nada resultou. Enraivecido, abro a minha janela e lá foi ele pelos ares. Espero que não tenha aterrado sobre ninguém! Nos momentos de cólera não consigo dominar-me e pensar duas vezes antes explodir!
O Melo e a Rita tinham-me convidado a jantar com eles nessa noite de Natal, mas como eu não tinha dinheiro para comprar prendas para todos os três, esquivei-me, alegando que já tinha aceite um outro convite com os amigos de Boulogne Billancourt. Comecei a entrar numa depressão que me comia por dentro e por fora! O Heinz tinha partido, o Pat estava em Londres com o seu Peter, o Moshé com a sua mulher e filho, e eu comigo só, sem dinheiro nem aquecedor, e sem vontade de viver! Eu não tinha sequer dinheiro para comer, festejar o meu Natal e, sobretudo, eu não tinha um cigarro nem dinheiro para os comprar! Nesse momento percebi que o mundo era apenas um aquário onde os tubarões se alimentavam do peixe miúdo, e que o peixe miúdo estava condenado a ser devorado sem poder fugir às redes e carnívoros dentes bem aguçados!
Num dos meus muito característicos arremessos de raiva, abri a janela e empoleirei-me no telhado. Olhei lá para baixo e vi apenas uma rua sem viva alma, toda coberta de neve, como se apenas eu existisse sobre a terra. Essa terra inóspita que parecia insensível à minha solidão e desespero. Os meus pés escorregaram ligeiramente sobre o gelo que se tinha criado sobre as telhas e, para não cair, agarrei-me ao parapeito da janela. Nesse momento, ao agarrar-me ao parapeito, comreendi que bem no fundo eu não queria morrer, ir ter com o meu querido Alberto. Eu queria viver para o Pat, para o meu futuro, para pagar a minha promessa de viver os anos e as alegrias e tristezas que ao Alberto tinham sido recusado, e saltei! Não lá para baixo, mas sim lá para dentro! Enquanto sobre o telhado, falei com Deus e ele pareceu dizer-me que não saltasse, que continuasse a viver o meu destino, que a vida ainda tinha muito que me dar, além desse dificel momento que eu estava a passar! Obedecendo à voz de Deus, vesti o meu sobretudo que tinha um grande capuz e desci as minhas escadas a correr! Eu queia chegar lá fora, pisar a neve, tentar a minha sorte para sobreviver e pagar a minha sagrada promessa ao Alberto. Mal pus os pés sobre essa espessa neve cobrindo literalmente toda a rua René Basin, baixei-me para acariciar a neve, sentir a sua gélida frieza. Ao tocar a neve, como por um divino milagre, uma nota de 50 francos discretamenta me espreitava. Arranquei essa nota prisioneira da branca neve, sacudi-a, beijei-a, ergui os olhos aos céus e sussurrei: Obrigado, meu Deus! Afinal não estou tão só como pensava!
Agarrei nos meus enregelados pés e escorreguei sobre o gelo até chagar aquele meu tão querido Café ali a fazer esquina com a avenida Mozart. Entrei, pus-me na bicha para comprar os meus cigarros e, depois, sentei-me a uma mesa, como sempre, na montra! Pedi uma meia de leite e uma meia baguette com manteiga, queijo, e fiambre! O Café estava aquecido de tal modo que tive de despir o sobretudo. Fumei aí uns três cigarros um atrás dos outros, enquanto procurava decidir o que fazer com aquela vida que me tinha restado depois de ter saltado para dentro. Cheguei à conclusão que a melhor coisa que eu podia fazer era encontrar um melhor emprego e um melhor ordenado e, depois, decidir o meu futuro. Voltar para Londres, para o meu Pat, o meu Peter, o meu ninho de amor? Voltar para Israel e converter-me ao Judaismo para me legalizar e viver e morrer no país que tanto amava? ou simplesmente voltar à minha água furtada e desta vez realmente saltar? Desta vez para baixo!
Ao fim de tantas perguntas compreendi que a melhor coisa seria comprar o jornal e catar os anúncios. Certamente que, assim como nessa dolorosa manhã eu tinha tido um sinal de Deus que me tinha posto 50 francos ali na neve, à minha espera, talvez também tivesse posto um anúncio no jornala a oferecer-me emprego. Foi o que fiz! Levantei-me, comprei um jornal, abri a página dos anúncios e ele ali estava à minha espera! O tal anúncio que Deus tinha posto por mim nesse jornal, nessa pungente manhã de inverno:
“Hôtel Claridge, aux Champs-élysées, cherche standardiste male multi langue pour faire les nuits. Se présenter personnellement entre 10 heures et midi » !
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