lundi 31 août 2009
A Dona Carmen
Nessa inesquecível manhã, sou o primeiro a levantar-se no Gavião, o primeiro a abrir a torneira de água fria naquela inóspita casa de banho ali entre a cozinha da Dona Alice e o quarto do Tomás (agora lembrei-me do seu nome) e do seu irmão, os tais dois tipos do Norte que trabalhavam nas obras. Quando saí da casa de banho já a Dona Alice estava na cozinha a preparar o café. Perguntei-lhe se ela queria que eu fosse à padaria comprar o pão, ela disse que sim com a cabeça, e põe-me aquele seu saco de pano com duas borlinhas numa mão e cinco escudos na outra e pede-me para lhe trazer uma dúzia de carcaças. Fui à mexa pelas escadas abaixo até à padaria, ali na Sacadura Cabral, e volto esbaforido com o saquinho a rebentar de papo-secos ainda quentinhos. A Dona Alice serve-me o café e a carcaça toda besuntada de manteiga, que engoli num ápice! Os outros “rapazes” começaram pouco a pouco a correrem para a casa de banho para acordarem com aquele jacto de água fria e a puxarem o autoclismo. Eu abri a janela para fumar o meu primeiro cigarro do dia, pois que a Dona Alice só autorizava “fumaças” nos quartos de cada um ou na marquise, que não queria a sua casa toda enfumarada como se fosse o túnel do Rossio! Sempre que eu abria a janela da casa de fora para fumar, infalivelmente ela me gritava da cozinha para eu fechar a gaita da janela, que fazia corrente de ar!
Depois do pequeno almoço olhei para o relógio e eram apenas oito e meia da manhã, cedo demais para ir bater à porta da Dona Carmen. Como ela morava ali numa rua em frente da Praça dos Touros, ali a dez minutos a pé da Sacadura Cabral, decidi deitar outra olhadela no espelho do corredor para ver se eu estava bem penteadinho, e desci para comprar o meu Diário de Notícias e ir para o Café do Campo Pequeno tomar a minha bica, escutar o meu “Love is a many Splendored Thing”, e espiolhar os meus anúncios todos e assinalar os mais prometedores com uma estrela encarnada que eu fazia com um lápis de cor que eu trazia sempre no bolso. Nesse dia não haviam muitas estrelas encarnadas no meu DN, apenas um anúncio a pedirem mulheres a dias para fazerem limpeza no Cinema Eden. Roguei uma grande praga e disse a mim mesmo que bastava de cinemas. Agora, cinema, só se fosse como actor! Já tinha feito os cinemas todos ali dos Restauradores, só me faltava o Politiama e o Coliseu dos Recreios! Basta!
Olhei milhentas vez para o relógio de pulso que eu tinha, com uma correia de plástico a imitar pele de cobra, e o diabo dos ponteiros só o dos segundos avançava desenfreadamente! Ainda não eram dez horas e eu não queria acordar a Dona Carmen cedo demais! Levantei-me, paguei a minha bica, e fui por aí abaixo até ao Saldanha para ver os cartazes do Monumental, esse teatro onde eu ia tanta vez a uma matiné, e sonhar com a Laura Alves e o Vasco Morgado, e esse meu grande sonho de subir um dia a um palco e gritar à multidão:
- Sou o Rogério do Carmo! Eu existo! Estou aqui na vossa frente! Preciso do vosso aplauso!
Olhai gente,
Toda a gente, olhai!
Não me fixem de soslaio
Discretamente,
Olhai-me bem nos olhos,
Frente a frente,
Para além de todas as regras
E convenções,
E digam-me
se acharam qualquer resposta
Às vossas dúvidas,
Às vossas suposições!
Não!
Os meus olhos vão fechados
E vão desfeitos!
E não há moiros na minha costa
Nem portas secretas
Nem dissimulados alçapões!
Procurai ler a minha história
No livro aberto da noite
Onde as letras sejam estrelas!
Tentai juntá-las
E procurai compreendê-las!
Um dia
Pensei escrever a minha história
Com o fumo enrolado e negro dum vapor
Na linha do horizonte,
Sobre o mar!
Mas ao iniciar a história verifiquei
Que além de amor,
Amor, muito amor,
Eu nada mais tinha para contar!
Por isso nada contei!
Assim deixei o fumo subir
Deixei o barco seguir
E ao mundo as costas virei!
Aplausos! Aplausos! Preciso de aplausos!
***
Entrei no Monte Carlo e tomei mais um café! Eu precisava de café para me dar a coragem necessária de ir fazer face à Dona Carmen, essa mulher da qual eu nunca tinha ouvido falar! Seria que ela me aceitaria como aluno? Seria que ela me levaria muito caro? Seria que ela era jovem e bonita, ou velha e feia como uma bruxa de Sálem? Que me reservava o Destino?
Chegado àquela morada que a Dona Carmen me tinha simpaticamente concedido, abro a porta da escada e entro. Sento-me uns minutos sobre o segundo degrau da escada para me preparar psicologicamente para enfrentar essa desconhecida que ao mesmo tempo me atraía e me apavorava. Degrau a degrau subi até esse quarto andar. Parei em frente dessa porta desse quarto andar, direito, e pousei o meu indicador sobre a campainha (ou bati com as nozes dos dedos?) aguardei uns momentos para recuperar uma vez mais o meu fôlego e ganhar coragem para perturbar a tranquilidade de alguém que eu não conhecia de parte alguma. Estava com uma ânsia enorme de ver a sua cara pela primeira vez, mas a tal vozinha que me vem de lá muito longe me sussurrava: avança! E eu avancei! Apoiei sobre essa campaínha e disse a mim mesmo: seja o que Deus quiser! E Deus quis que esse dia fosse um dos mais felizes da minha vida!
Uma voz muito musical, uma voz que já tinha ouvido antes, pergunta antes de abrir:
- Quem é?
- Sou o Rogério...
...a porta abre-se e uma mulher linda surge ante os meus olhos deslumbrados! Aquela cara era-me, afinal de contas, uma cara que eu tão bem conhecia! Num muito breve espaço de meia dúzia de segundos, a minha infância, a minha meninice, tomaram-me de assalto! Ela era aquela mulher que eu tinha idolatrado, ela era a Teresa de Albuquerque! Uma força também vinda de lá muito longe, me impediu de lhe cair nos braços, de a aconchegar ao meu peito! Ela convida-me a entrar na sala e aponta-me um sofá e senta-se na minha frente, mãos entrelaçadas sob o queixo, cotovelos fincados sobre os joelhos, com uma grande interrogação naqueles seus enormes e bonitos olhos - não sei se pretos se castanhos - de que eu tanto gostava desde pequenino, quando eu ia ao cinema de Mafra ver todos os filmes onde ela entrava, e pergunta-me:
- Ora bem! Diga-me lá então o que o traz por cá?
Troquei-lhe tudo por miúdos acerca do meu grande sonho de ser actor, que tinha sido enviado pelo senhor Armando Marques Ferreira, que precisa de alguém que me ensinasse a dicção, a colocar a voz, a estar em cima dum palco. Não sei se ela, entretanto, tinha falado com o Marques Ferreira, mas a verdade é que esse nosso encontro foi muito rápido! Ela assegurou-me que andava muito ocupada com uma peça de teatro que andava a ensaiar - não sei que peça, não sei que Teatro - que não tinha tempo a dispensar-me, mas aconselhou-me a que fosse falar com uma Grande Dama do Teatro Dona Maria II, que se tinha aposentado depois da morte do seu marido, o imenso Alves da Cunha! Ela deu-me a sua morada ali a Campo de Ourique e, ao fechar a porta sobre mim, desejou-me boa sorte!
Não recordo como cheguei até às mãos dessa outra Grande Senhora do Teatro. Não recordo se lhe telefonei antes de a procurar, se lhe escrevi primeiro mas, uma coisa é certa, nesse dia em que ela me abriu a sua porta em Campo de Ourique e a vi, pequena e frágil ante os meus humildes olhos, beijei-lhe a sua magra e macilenta mão, para não lhe cair aos pés e beijar-lhe aqueles seus diminutos velhos sapatos de trazer por casa! Eu tinha na minha frente, sorrindo-me e convidando-me a entrar, a pequena Grande Berta de Bivar que uma vez tinha visto no Dona Maria II, não sei em que peça, mas quase certo que contracenara com o Alves da Cunha e a Grandíssima Palmira Bastos, que como altiva árvore, um dia morreu de pé, deixando um imperecível grande vazio no Teatro Português! Expus-lhe o meu problema de dicção e voz, das preocupações do Marques Ferreira que me tinha enviado à Dona Carmen, mas a Dona Carmen estava muito ocupada com uma peça que andava a ensaiar. Ela põe-me à vontade e disse-me que para ela era um grande prazer, que ela tinha os dias todos só para pensar no seu passado, que agora, ensinar-me, seria um prazer abençoado por Deus! Perguntei-lhe quanto me custariam as lições e ela, pondo uma das suas trémulas mãos sobre um dos meus ombros, diz-me que não precisava de dinheiro, que tinha uma boa pensão que a confortaria para o resto dos seus dias! Falei-lhe dos meus horários no Olympia, e ela propôs-me duas vezes por semana (não me lembro que dias) das dez da manhã até ao meio-dia, que assim teria tempo de almoçar e chegar ao Olympia a horas. Que começaríamos na semana seguinte, porque ela precisava de se preparar. Depois, essas duas manhãs por semana passariam a ser como uma abençoada gota de água no deserto escaldante dos meus infortúnios!
A minha vida de porteiro do Olympia engrandeceu-se com as minhas idas a casa da Berta. À porta do Olympia comecei a cortar bilhetes como quem corta por um atalho para chegar mais depressa a subir a um palco de Lisboa! No Gavião, a Dona Alice parecia recuperar um pouco das atenções do passado. Ela, nas minhas costas, estou certo, quando falava de mim, chamava-me o “rapaz”, mas a partir dessa altura, não sei por que cargas de água, começou a chamar-me o Senhor Rogério! Isso não me agradou mesmo nada e um dia contestei-lhe que eu não era o Senhor, que o Senhor estava no céu, e que eu estava na merda, e a labutar que nem escravo para dela sair! Ela baixou os olhos, mas, para ela, continuei a ser o senhor Rogério, como ela para mim a Dona Alice, a dona duma casa muito séria, a esposa do Camaradinha, a mãe da Menina Luisa, a patroa do Gavião!
Até ao fim do mês, quando terminei o meu contrato com o Olympia, continuei a fazer de vez em quando figurações para a RTP, e as minhas lições com essa terna mulher que me ensinou tudo ou quase tudo que ela aprendera todo ao longa da sua longa vida de teatro! Eu amava essa mulher como se ela fosse uma Deusa pelos céus a mim enviada! Além das lições ela também procurava sempre saber um pouco mais de quem eu era. Muitas vezes as lições de dicção foram feitas com poemas meus que eu sabia de cor e salteado. Ela apreciava os meus escritos e, quando ela me corrigia e repetia os meus versos, aquilo era como se os meus versos, saídos da sua boca, ganhassem inesperadas dimensões, outra luz, outra música, outro fulgor! Tal como quando, um dia, muitos anos depois, quando a Amália me leu um poema meu que ela queria cantar, o meu poema parecia chegar-me doutra galáxia, de para além das estrelas! Tal como a Dona Carmen, a Carmen, a Carmen Dolores, quarente e nove anos mais tarde, quando do lançamento do meu livro de poemas “Vagas”, numa emissão da RCM - a rádio de Mafra - no programa “Disto é que eu Gosto”, do Rogério Batalha, telefonicamente, nos recitou aquele meu poema de que ela gostou, o “Cais do Sodré”, e que, enquanto ela o recitava, lágrimas ameaçaram tombar dos meus olhos!
E aquele dia, quando deixei Portugal a caminho de Israel, quando me fui despedir da Berta de Bivar, ela, segurando-me ambas as mãos, me disse, lágrimas nos olhos e um soluço na voz:
- Rogério! Você tem tanto talento! Desejo-lhe boa sorte e que chegue um dia a mostrar ao mundo tudo o que você tem a dar! Seja feliz!
Essa frase ainda ecoa na minha alma, e aquelas lágrimas ainda me afogam de saudade! Fui, ou sou, um homem que foi bafejado com essas honras que essas três maravilhosas mulheres me concederam!
Bem hajas Berta de Bivar! Bem hajas Carmen Dolores! Bem hajas Amália Rodrigues! Bem hajas Vida!
Valeu a Pena ter vindo ao mundo, valeu a pena ter nascido!
samedi 29 août 2009
O Olympia
A minha vida em Lisboa começou a tornar-se numa espécie de naufrágio ao qual eu queria sobreviver! Olhava em redor em busca duma bóia, uma tábua onde me pudesse agarrar! No Gavião o ambiente deteriorava-se dia após dia! A Dona Alice ignorava-me, como se eu fosse uma potencial ameaça ao equilíbrio da sua casa de gente séria, estabelecida, organizada, e com os pés na terra. Todas as manhãs, depois da minha carcaça, lá ia eu à caça de não sabia muito bem o quê! Mas sair era já quase um conforto! A minha conta na Caixa Geral começava a afundar-se a olhos vistos. Mal tinha dinheiro para comprar os meus jornais matinais para aquela diária busca dum quase milagre. Eu rebuscava ansiosamente todos os anúncios, mas todos esses anúncios nunca estavam ao meu alcance. Não tinha os estudos necessários. Normalmente ia até ao Palladium tomar um café e mergulhar nos jornais como um arqueólogo mergulha nas suas escavações em busca de milenárias civilizações. Cheguei a pensar que a solução seria ir até às margens do Tejo, atirar-me de cabeça, e ser atropelado por um barco a caminho de Cacilhas!
Uma manhã, tão desesperado me senti, que fui até ao Odeon falar com o porteiro, o único que me tinha desejado coragem e boa sorte quando dele me despedi. Esqueceu-me o seu nome. Ele era um homem muito metido consigo, sempre com os olhos abertos para ver o que se passava à sua volta. Os seus olhos imanavam uma doçura e um sincero interesse pelos outros que o rodeavam. Ao ver-me ele acenou-me, convidando-me a dele me aproximar. Acedi com um sorriso certamente bastante desanimado, e imediatamente ele compreendeu que eu andava à deriva, em busca dum apoio. Estendeu-me a mão e perguntou-me como iam as coisas, se tinha já encontrado outro emprego. Angustiadamente lhe confessei que andava à tona em Lisboa como numa selva virgem em busca dum abrigo. Expliquei-lhe as minhas dificuldades no Gavião e dificuldades de encontrar outro emprego. Ele dirige os seus olhos ao teto (ou seria o céu?) como que à procura dum emprego para mim. Por fim, os seus olhos desceram e aterraram sobre os meus. Desanimadamente, ele admite que não sabia de nada, excepto no Olympia, ali mesmo em frente, que o porteiro dessa sala - que era seu amigo - ia passar um mês à terra dele lá para os lados do Porto, e que a direcção desse cinema procurava alguém que o substituísse. Que esse trabalho para mim seria apenas temporário e não uma solução definitiva, mas que, enquanto o pau vai e vem folgam as costas! Sugeriu-me que desse lá um salto e pedisse à bilheteira para falar com o responsável. Foi o que fiz!
Atravessei a Rua dos Condes e entrei no átrio do Olympia, dirigi-me à bilheteira e pedi para falar com o patrão acerca do trabalho por um mês para substituir um porteiro. Como o filme já ia a meio, já não havia bichas. As “bichas” já tinham todas entrado!. Ela pede um momento e afasta-se. Passados dois minutos volta acompanhada dum senhor um tanto impertinente, porque o tinham interrompido, não sei em que “função”. Ele olha-me de “alto abaixo” e pede-me para entrar. Entrei, passei talvez pelo porteiro que eu iria eventualmente substituir, e acompanhei essa embirrenta criatura que me arrastou a um canto do vestíbulo. A primeira coisa que ele me participa é que era um trabalho só por um mês. Tranquilizei-o, dizendo-lhe que estava ao corrente. Ele achou-me demasiado jovem e frágil para esse posto mas, mesmo assim, aceitou os meus serviços, visto que era apenas por um mês, para desenrascar, pois que o porteiro partiria dentro de dias. As condições propostas foram 800 escudos, sem dias de folga, que tinha que estar a postos entre as duas da tarde e a meia-noite e, sobretudo, nada de muitas confianças nem afabilidades com os espectadores. Que eu estaria ali apenas para cortar os bilhetes, e era tudo! Que em vez de olhar para os fregueses, que olhasse muito mais para os bilhetes, para ver se eles estavam em ordem e, sobretudo, nada pechinchas para os meus amigos pessoais, que o seu gerente estava ali sempre à coca do que se passava! Concordei com as condições expostas e pedi-lhe para ficar descansado quanto a entradas de borla para amigos, pela simples razão que eu não tinha amigos nenhuns!
Voltei para casa um nadinha mais tranquilo. Ao menos tinha mais um mês à minha frente para procurar outro trabalho! Chegado a casa dei com a Dona Alice a cavalo na sua telefonia a escutar a “coxinha”, ou lá o que era. Nem bom dia, nem boa tarde! As desgraças da “coxinha” eram-lhe muito mais importantes do que as minhas! À hora do jantar informei todos os presentes que ia trabalhar para o Cinema Olympia, a ganhar 800 escudos. A Dona Alice deu um suspiro de alívio! Nem sonhava que tudo isto era para apenas por um mês que voaria em duas curtas semanas!
Depois do jantar meti-me no quarto com o Zé Barbeiro e o Guilherme a falar do grande problema de desemprego então (e sempre) em Portugal! Portanto esse problema não me preocupava grande coisa, o que me preocupava era o desemprego em Lisboa! O Guilherme, o belo galã dessa casa de gente séria, tinha muitas namoradas, mas como as não podia fazer subir, ele descia, nunca cheguei a saber aonde. O Zé era muito mais pacato e caseiro, e ali ficámos ambos nas nossas muito subtis e platónicas entregas. Algumas vezes me perguntou se eu não tinha uma miúda... Eu quase sempre lhe dava a mesma resposta: Miúdas há muitas, mãe há só uma! Como ele, para chatear a Dona Alice, tinha comprado um transístor, ficávamos ali sentados na sua cama a ouvir os discos pedidos ou algumas palestras, ao que se chama agora, “debates”! Uma dessas noites ele deitou a sua bela cabeça de cabelos muito pretos e encaracolados sobre uma das minhas coxas. Uma vontade louca de lhe saltar em cima e comer-lhe aquela sua carnuda boca de toureiro me acometeu, mas nunca me atrevi, pois que ali era uma casa de gente séria! Estou certo que a ele também o assaltavam idênticos desejos mas, a Dona Alice estava ali mesmo ao lado a cavalo naquela sua telefonia onde ninguém podia tocar nem com um dedo enluvado! Algumas vezes, depois do Guilherme ter descido, nós também dávamos um salto a um novo estabelecimento que tinha acabado de abrir na Avenida de Roma, onde se podia comer e beber e, melhor do que tudo, jogar ao “Bowling”! Apanhámos uma espécie de vício por esse jogo. Eu cheguei a ser quase um campeão! O Zé, nem por isso. Era muito mais, segundo ele me disse, destro nas faenas, nas aulas de tauromaquia onde ele ia todos os domingos de manhã. Nunca o acompanhei pois que sempre detestei touradas e largadas de touros em Vila Franca de Xira. A única coisa que eu gostava nas touradas que às vezes se via na televisão no Café na Avenida de Roma quando lá íamos para ver algum programa que nos interessasse, eram as colhidas! Sempre que um boi enfiava um corno na “peida” do toureiro eu gritava: olé! A Dona Alice nunca ia a Cafés. Cafés não eram para senhoras sérias! Só lá ia quando havia um pequeno filme onde eu aparecia aí uns tantos segundos. A despeito de todos os meus problemas, a RTP continuava a convocar-me de vez em quando para uma figuração naquelas curtas-metragens que eles realizavam de tempos a tempos. As filmagens eram quase sempre aos domingos, e muito frequentemente fora de portas. Já eram para mim grandes viagens! Ir do Lumiar até Loures para mim era já quase como o primeiro passo sobre a lua, coisa que nunca foi dada, senão já por lá haveriam agora muitos hotéis de cinco estrelas, para os milionários irem lá passar as suas férias!
O meu primeiro dia como porteiro do Olympia foi um pouco intimidante. Era a primeira vez que eu fazia tal serviço. Lembrei-me dos meus tempos de criança, em Mafra, quando eu entrava, duma maneira ou doutra, sem pagar. Se ali no Olympia me aparecesse um puto com olhos cheios de luar a querer entrar, estou quase certo que eu fecharia os meus. Mas não. Esse cinema parecia ser apenas frequentado por homens já adultos, muitos deles muito bem arreados, distintos homens de negócios, com aspecto de serem homens casados, que deixavam as suas mulheres e filhos, em casa, a verem televisão, e eles iam ali, como eu o já tinha feito muitas vezes, para, como eu costumava dizer, para um “alfinete”. Quando eu lá ia sentava-me sempre que podia na última fila lá atrás, para ficar mais à vontade. Eu costumava chamar a esse cinema “A Joalharia”, pois que andavam por lá muitos joalheiros a fazerem alfinetes, mas não de gravata! Quando olhava para os espectadores nas filas à minha frente, muito rapidamente haviam cabeças que desapareciam como que por milagre. As muitas outras cabeças que não desapareciam deitavam-se muito languidamente sobre as costas das cadeiras, em sufocados gemidos. Penso que a maioria iam lá para porem as suas contas em dia, pondo as suas jóias à vela, para que o vizinho do lado as areasse. Algumas vezes, cavalheiros muito bem postos e talvez respeitáveis chefes de família de altas hierarquias vinham sentar-se a meu lado com um delicado “perdão!”, quando baixavam a cadeira ao lado da minha. Minutos depois começava a invasão! Primeiro era o joelho que procurava o meu! Depois, muito de mansinho, era a suave mão com uma grossa aliança de ouro no anelar, que começava, a medo, a subir pela minha coxa acima,e quando chegava lá à gruta do Ali Bábá, era o “abre-te sésamo”! Então a cabeça do senhor muito distinto descia a pequenas doses, cautelosamente, para uns dez minuto de apneia.
Uma vez, na fila logo ali à minha frente, estava um espectador a fazer um “milk-shake” ao seu vizinho, mas ao contemplado nunca mais lhe saltava a rolha! Constantemente lhe implorava: Muda de mão! Muda de mão! Mas o pior era que o barman tinha algumas escravas num dos seus pulsos, e as escravas começavam a tilintar. Então o contemplado segredava ao barman: Cuidado com as escravas! Este martírio durou alguns minutos e a rolha por saltar. Até que um outro cavalheiro ao lado, molestado pelo tilintar das escravas, quando, da última vez que o seu vizinho pediu para mudar de mão, ele diz alto e bom som: Caga nas escravas! Muda mas é de sultão!
No Gavião o dia a dia era sempre o mesmo. A Dona Alice parecia ter cortado relações comigo. Penso que ela pensava que tinha feito um mau negócio comigo. Ela vivia para a manutenção do seu Gavião, e os “rapazes” - como ela lhes chamava - eram todos pessoas estabelecidas, com um futuro à sua frente. Eu, o que tinha, era um vai e vem como um yo-yo ou como uma bola de “ping-pong” que continuamente falhava a raquete! O que me valiam eram os “rapazes” que eram realmente meus amigos e procuravam ajudar-me no que podiam. O único que me podia ajudar na minha droga era o Zé Barbeiro. Se eu jogasse com as bolas dele estou certo que a minha raquete nunca falharia. Jogar yo-yo com elas, não muito obrigado. Gosto delas apertadinhas! O que ainda mais me valia era eu levantar-me cedo e, depois da gaita da carcaça, sair! Ir para a rua! Comprar o Diário de Notícias e o Século, e ir sentar-me no Café do Campo Pequeno e pôr uma moeda na máquina e ouvir “Love s a Many Spledored Thing”, pelo “Four-Aces”! Sonhar ainda e cada vez mais em pirar-me de Portugal! Ir em busca de outras paisagens, outras mentalidades, fugir de mim mesmo e de todos aqueles que me olhavam com desdém!
Uma bela manhã, nesse pitoresco Café ali por detrás da Praça de Touros, ao folhear o meu Diário de Notícias, espiolhando os anúncios, cuidadosamente esmiuçando-os um a um, esbarro com um que foi para mim como um relâmpago, uma estrela cadente! O título era: “Procuram-se jovens actores com talento para leitura de poesia” – Contactar Armando Marques Ferreira – Avenida António Augusto Aguiar, das 10 ao meio dia. Referências não exigidas! - Este “referências não exigidas” ainda me subjugou muito mais do que palavras como “actor” e “poesia”! Eram aí umas onze horas, e como para chegar a essa morada era só descer até ao Marquês de pombal e depois voltar à direita, pus os pés a caminho e fui por aí a baixo numa quase correria, como se eu fora Mercúrio e tivesse doiradas asas nos pés a cortarem o azulino céu de Lisboa!
Cheguei lá esfalfado, mal podendo respirar. Subi vagarosamente para recuperar o fôlego e, ao mesmo tempo, não parecer tão interessado como isso, que tinha lá ido apenas curiosidade! Entro e sou conduzido à cabine de som onde o Armando Marques Ferreira se encontrava nas suas funções na companhia duma mulher adorável que eu ouvia na telefonia e que muito admirava. Quanto ao Armando Marques Ferreira, eu considerava-o a mais bonita voz masculina de todos os tempos. Ele era um homem bonito e com um charme de fazer ressuscitar a morgue toda, duma ponta à outra! Quando o vi fiquei logo emprenhado pela sua sedução. Como era hábito, ele olha-me de alto a baixo e pergunta-me a minha idade e qual a minha experiência. Falei-lhe da RTP e Nuno Fradique. Ele sorri e mandibula para a sua companheira: Nuno Fradique? Já é bom sinal. Depois diz-me que queria dar-me uma data para eu prestar provas, que não tinha ali à mão nenhuns poemas. Quase indiferentemente - ou para assim o parecer - digo-lhe, como quem não quer a coisa, que eu escrevia poemas, que podia recitar um dos meus de cor! Ele olhou-me um tanto estupefacto e murmura: Isso é muito mau sinal. Os poetas não sabem recitar poesia. Ou poucos... Então diga-me lá o seu poema! Não é muito longo, espero! Respondi-lhe que não e recitei-lho com aquela determinação de obter o “job”, olhando-o firmemente nos seus lindíssimos olhos:
Ninguém nota
Nos meus lábios magoados
A sede de beijar!
Ninguém nota
Nos meus dedos enclavinhados
O desejo de reter!
Ninguém nota
Nos meus passos apressados
A ânsia de chegar!
Ninguém nota
Nos meus olhos apagados
O susto de viver!
Ninguém nota
Nos vincos do meu rosto descorado
O cansaço de lutar
Num campo de batalha descampado
Sem tréguas nem troféus a conquistar!
Ele olha-me fixamente e, um tanto aturdido, vira-se para essa mulher adorável que o assistia e murmura-lhe:
- Ele não tem voz e tem uma péssima dicção, mas lá poeta é! É a primeira vez que oiço um poeta dizer um dos seus poemas com tal paixão!
Depois vira-se para mim e diz-me que eu tinha de ir aprender dicção com um profissional que, a mesmo tempo, me colocasse a voz. Depois vira-se para a sua assistente e pergunta-lhe:
- Achas que a Carmen estaria disponível para lhe dar uns toques?
Ela respondeu que não fazia a mínima idéia! Olha, telefona-lhe! Ele pegou no telefone, discou, mas não havia ninguém em casa. Escreveu-me num papelinho um número de telefone, pedindo-me que telefonasse a esse número e que pedisse un “rendez-vous”. Diga à Dona Carmen que vem da parte do Armando Marques Ferreira. Ela que me telefone! Desci a correr! A minha vontade era entrar na próxima cabine e telefonar-lhe de seguida. Não sabia quem seria essa Carmen, mas certamente que ela seria a pessoa ideal para me ajudar a subir um pequeno degrau que me ajudasse a subir a um palco ou, melhor ainda, descer esse degrau que me afastasse para sempre desse degradante Olympia!
Essa tarde e o resto do dia, no Olympia, eu estava impaciente que chegasse o amanhã! Queria afastar-me a passos largos daquela pouca vergonha de cinema onde só exibiam filmes como o “Maciste”, onde os actores, todos belos atléticos corpos meio desnudos, acartavam com todos ou quase todos pseudo-heterosexuais lisboetas, afim de, discretamente, satisfazer os seus mais indizíveis fantasmas! Nesse dia eu tinha vontade de deixar entrar toda a gente de borla! Eu rasgava os bilhetes sem sequer olhar para eles, e os meus pés batiam nervosamente nas lajes do átrio, como se estivesse a dar pontapés no tempo para que ele passasse mais depressa! Ali não havia mais aquela tirada do “se precisar de mais alguma coisa, estou às suas ordens!” Agora o que me apetecia dizer era: “Despachem-se! Mexam-me esses pés! Tenho mais que fazer!
No outro dia de manhã, depois duma noite muito mal dormida, ainda acordei antes da Dona Alice. Fiz a barba com água fria e lavei a cara e penteei-me o melhor que pude. Aperaltei-me à pressa e, entretanto, a Dona Alice tinha feito o seu café de saco e ido à padaria comprar os seus papo-secos, enquanto eu me tinha feito todo janota! A Dona Alice logo percebeu que algo se passava comigo. Nessa manhã eu não tinha mesmo nada cara de suicida! Nesse belo começo de soalheiro dia lisboeta, havia uma voz chegando até mim de muito longe dizendo-me que a minha vida ia finalmente mudar! Que não perdesse mais uma vez o comboio! Que não ficasse em terra! Que me afastasse dessa gare sem nenhum futuro para mim, que era Lisboa e seus preconceitos!
No outro dia de manhã, a primeira coisa que faço depois da carcaça, foi pedir à Dona Alice que me deixasse telefonar. Ela foi buscar a chave que escondia numa caixinha no seu quarto, abriu o cadeado, e deixou-me discar o número da Dona Carmen. Desta vez a Dona Carmen estava em casa e respondeu. Perguntei-lhe se era a Dona Carmen?! Ela disse que sim, que era eu? Disse-lhe que lhe falava da parte do senhor Armando Marques Ferreira, que precisava de falar com a Dona Carmen pessoalmente, logo que ela me pudesse receber. Ela atirou-me, quase alegremente:
- Hoje estou em casa o dia todo. Como se chama você?
- Rogério do Carmo!
- Venha quando quiser!
- Posso estar aí dentro de meia hora?
- Claro! Sem qualquer problema!
- Qual é a sua morada?
A Dona Alice que, como sempre, ficava sempre ali a bisbilhotar a conversa sempre um rapaz pedia para utilizar o telefone, quando me ouviu pronunciar o nome do seu locutor preferido, ficou em pulgas! Logo que eu pedi a morada à Dona Carmen, ela foi a correr buscar um papel e uma caneta para eu tomar nota. Agradeci, pus os cinco tostões da chamada sobre o móvel e parti correndo escada abaixo, ao encontro da minha Carmen que não conhecia de parte alguma, mas que, talvez, pudesse ensinar-me a declamar e, sobretudo, a colocar a minha voz!!
jeudi 27 août 2009
O Condes
Nessa mesma manhã, depois da minha carcaça com manteiga, desarvorei e vou até ao Condes ver onde paravam as modas. Cheguei à bilheteira e perguntei se era verdade que eles andavam à procura dum arrumador. A senhora volta-se para trás e grita a uma moça que estava a escriturar sabe Deus o quê:
-Ó Filomena! Vai dizer ao senhor Antunes que está aqui um rapaz interessado na vaga do arrumador!
Fez sinal ao porteiro para me deixar passar e que eu esperasse ali ao pé da entrada. Passados momentos sou interpelado por um rapazote fardado que me pergunta se eu era a pessoa que indagara acerca da vaga para arrumador. Disse que sim e ele pede-me que o acompanhe até ao escritório do Sr. Antunes. Lá chegado depara-se-me um homem já duma certa idade, muito anafado que, por cima dos óculos, me inspecciona dos pés à cabeça, esse hábito ao qual eu já me tinha gradualmente habituado. Para tudo o que eu quisesse fazer na vida, primeiro era vasculhado de alto a baixo. Mesmo quando, na rua, eu pedia lume a um passante bem apresentado, que depois me perguntava se eu morava ali perto! O Sr. Antunes não perdeu muito tempo comigo. Perguntou-me o nome, idade, morada, e número de telefone, que anotou num caderno e, depois, sem tirar os olhos do seu precioso caderno, disse-me que os horários eram das duas da tarde à meia-noite, que não havia ordenado, apenas as gorjetas! Que me concedia esse posto apenas um mês à experiência, e que depois logo se via! Se eu podia começar no dia seguinte? A minha resposta foi afirmativa. Depois tocou uma campainha e logo a seguir o mesmo rapazote entreabre a porta e pergunta:
- Sim, Sr. Antunes?!
O Sr. Antunes pede-lhe que ele me leve até à Dona Carmesinda, para tratar do assunto das fardas! A Dona Carmesinda, que certamente tinha acabado de chegar do cabeleireiro que lhe tinha feito aquela horrorosa permanente de ouriço caixeiro, olha-nos de revés e pergunta o que nos trazia?! O rapazote diz-lhe era o Sr. Antunes que me tinha enviado para obter fardas de arrumador. Ela, como todos os outros, olha-me de alto a baixo e pergunta-me quais as minhas medidas. Eu sabia lá quais eram as minhas medidas! A única coisa que eu na vida tinha medido no meu corpo, só acusara dezoito centímetros! Ela pega numa fita métrica e, silenciosamente, enforca-me o meu corpo todo à procura das minhas medidas todas, especialmente as mais recônditas! Depois desapareceu por detrás dum biombo e volta com duas fardas azuis escuras nos braços, e pede-me que eu, por detrás desse mesmo biombo, as ensaiasse para ver qual delas me enchia melhor as medidas. Um tanto trémulo, dispo-me e ensaio a primeira farda que, “de alto a baixo”, me encaixava que nem uma luva! Triunfalmente, reapareci, usando o biombo como pano de fundo e, mesmo sem “spot-lights” vim mostrar-me à Dona Carmesinda. A Dona Carmesinda, uma vez mais olha-me de alto a baixo e declara que me assentava muito bem, que estava perfeito. Que eu precisava de trazer de casa camisas brancas e gravata preta. A seguir pede ao rapazote que me mostre o caminho para os vestiários dos homens, pondo-lhe uma pequena chave na mão. Antes de eu partir ela diz-me que depois ela trataria de encontrar mais uma outra farda com as mesmas mediadas, que depois eu a encontraria no meu cacifo, no vestiário dos homens.
O rapazote acompanha-me ao vestiário dos homens, entra sem bater, e damos com um gajo qualquer de cuecas e peúgas a vestir-se ou a despir-se, nunca o saberei. Pensei cá com os meus botões: isto começa bem. O vestiário, que era apenas um sombrio cubículo, ia certamente ser o meu campo de batalha onde iria ganhar e perder alguns assaltos à castidade de alguns desprevenidos! O rapazote abre-me a porta dum cacifo de ferro ao lado de muitos outros, pede-me que deposite a minha farda num dos cabides e, depois, fecha a porta, e põe-me aquela pequena chave na mão, dizendo-me que era a minha chave, que a não perdesse!
Saí para a avenida e sentei-me num banco a retomar o fôlego. Como já tinha enviado o Sr. Rosa para o raio que o parta, dei-me ao luxo de ser livre mais umas horas, pois que começaria no dia seguinte. Subo a avenida até ao Campo Pequeno, e a Dona Alice é informada que eu tinha um novo emprego. Ela, um tanto exasperada, diz-me que eu não paro em parte alguma! Que era péssimo para mim e para os outros! Ela estava tão chateada que nem sequer me perguntou quanto é que eu ia ganhar. Foi para a cozinha tratar do jantar e eu fui para a cama descansar os ossos!
No dia seguinte lá fui, avenidas abaixo, até à Rua dos Condes com a minha camisa branca muito bem engomada, e uma gravata preta que me emprestara o Zé Barbeiro. Antes de abrirem as portas para a primeira matiné, fui estudar a sala, ver como estavam numeradas as cadeiras e as filas, que porta de entrada na sala me seria atribuída. O Daniel, a quem chamavam o Dádá, um jovem aí dos seus vinte anos, alto, magro, com olhos pretos como azeitonas, parecia-me bastante pronto a ajudar-me “naquilo” que pudesse. Ele mostrou-me como funcionavam duma forma geral as funções de arrumador, no qual eu era então um noviço. Depois mostrou-me os bastidores, incluindo alguns camarins e outras tantas retretes. O seu último conselho foi, para obter uma gratificação, acompanhar o espectador até à sua cadeira e, antes de voltar-lhe as costas, dizer-lhe, o menos hipocritamente possível:
- Se precisar de mais alguma coisa, sempre às suas ordens!
Depois ainda tivemos tempo de ir ao vestiário pentear os nossos cabelos, ajustar o nó da gravata frente ao espelho e, ele, para minha grande surpresa, molhou as pontas dos dedos na sua saliva e passou-os pelas belas grossas sobrancelhas de azeviche, assim como, voltando a meter um dos seus dedo na sua boquinha de carmim, para bem o molhar, alisou para cima as suas belas pestanas que quase lhe chegavam às ditas sobrancelhas. No fundo, foi a única coisa que o Dádá me ensinou! E pu-lo logo em prática! Eu também, eventualmente, lhe viria a ensinar outras manhas para se fazer bonito e atrair as atenções dos outros. Uma delas, saber bem como armazenar aquilo que de melhor a sua mãe lhe tinha dado, dentro das calças, do lado direito, para que ficasse mais em evidência o seu belo enchumaço, um enchumaço que viria a enchumaçar todos aqueles que gostavam de enchumaços! A partir desse dia as minhas pestanas começaram a ser bem reviradinhas para cima com a minha saliva. Depois de bem ajustarmos as nossas fardas saímos para a sala. Já eram quase horas de abrir as portas! Depois ele indicou-me onde seria a minha porta, para eu estar sempre perto do porteiro, e imediatamente propor aos recém chegados os meus serviços. Se eles recusassem irem tomar imediatamente o seu lugar na plateia, indicar-lhes onde eram os bares e as casas de banho, usando a pilha que eu teria sempre bem apertada na mão, em vez do indicador!
Às quinze horas as portas foram abertas e os espectadores que aguardavam no átrio assaltaram os porteiros como lobos esfaimados sobre pobre lebres desprevenidas. Eu, à minha porta, apertando bem a minha pilha na minha mão direita, comecei a tentar dispensar os meus serviços aos acabados de entrar, mas o pior foi que eles pareciam já conhecer o Condes muito melhor do que eu, pois que se lançavam à conquista dos bares ou dos seus lugares na plateia sem quaisquer hesitações! Fiquei um tanto inquieto, pois que se tudo se ia passar assim eu ficaria tramado! Quando teria eu oportunidade de obter um gorjeta? A resposta foi-me dada quase logo a seguir quando a sineta tocou e as luzes começaram a baixar. Aí eu acendi a minha pilha como se fosse a Tocha Olímpica, pronto a mostrar a meta aos retardatários. Aí já as gratificações começaram a serem plantadas na palma da minha mão esquerda, depois de chegados aos lugares, e eu ter balançado a minha tirada, não de Shakespear, mas do Dádá: Obrigado! Sempre às suas ordens! Se eram casais ainda muito jovens eu não ousava mas tinha uma vontade louca de acrescentar: gozem mas é a puta da vida! Forniquem! Pó caneco os desperdícios de tempo! Tempo não é dinheiro! Tempo é uma fracção de Eternidade, essa grande senhora que não abre a porta a ninguém! A Obra de Camões e alguns outros podem vir a ser eternas, mas o Camões e esses alguns outros, eles mesmos, agora são apenas Nada!
Durante todo esse primeiro dia tudo correu bem. Fiz umas coroas e vi “E Tudo o Vento Levou” uma vez e meia, pois que o filme era tão longo que só deram duas sessões! Mesmo assim fiz boas gorjetas e até tive tempo de ir ao Gavião jantar. A Dona Alice continuava casmurra, sem me dirigir a palavra! Certamente, com o seu instinto feminino e maternal, previu que eu nunca acertaria o passo em parte alguma, e isso não era para uma casa de gente séria! O jantar foi rápido e rapidamente estava de volta ao Condes para as minhas funções, e assim ver “E Tudo o Vento Levou” pela segunda vez. Voltaria a rever esse fabuloso filme mais algumas vezes por detrás das cortinas, frequentemente com o Dádá à minha beira. Um dia ele chegou-se tanto a mim que não resisti à tentação de verificar se o seu enchumaço estava bem arrumado. Como já dum certo modo esperava, o seu enchumaço tinha mudado de posição, estava a trepar-lhe pela barriguinha acima! Apertei-o na minha mão. Dádá vira-se para mim e sorri-me cumplicemente e segreda-me:
- Enfim! Apanhei-te! Levou tempo mas estava certo que mais dia menos dia nos viríamos a encontrar... e tu encontraste-me de pau feito!
Respondi-lhe que os homens morrem de pé mas que teríamos, antes disso, encontrar meio de nos deitarmos ambos na mesma cama para tratar de assuntos em suspenso, mas o pior era que os nossos assuntos estavam ambos bem de pé! Uma inoportuna urgência me leva a murmurar muito baixinho, ao seu ouvido, apalpando-lhe as suas maciazinhas nádegas:
-Dá-dá!!!
E ele respondeu:
- Dou! Dou!!!
Aquela tremenda frustração acerca do Rui agarrou-me de tal forma pelas minhas azeitonas que era preciso comê-las antes de deitar fora os seus caroços, que agarrei-o por uma manga e arrastei-o até à retrete “Homens” do Pessoal e aí, como o filme era muito longo, tivemos tempo de ler a cartilha quase até ao fim. Fomos, de um certo modo interrompidos, pois que um outro “arrumador” de intestino grosso a pedir despejo, tentou abrir a porta, mas ao aperceber-se que a catedral estava ocupada, e ele morto de fazer as suas preces, começou a quase arrancar a maçaneta, ao mesmo tempo que implorava:
- Despacha-te! Despacha-te! Tou à rasquinha! Tou à rasquinha!
Porém, o grande sobressalto dessa vítima dessas outras urgências sem possíveis adiamentos, foi que ele devia ter dito “despachem-se” e não “despacha-te”! Quando saímos ambos, embaraçadamente apertando os cintos, ele não queria crer nos seus olhos! Abriu a boca até os queixos tocarem o nó da sua gravata, e foi a correr sentar-se numa pia ainda bem quentinha de certas quenturas passageiras. Mas, claro, o assunto não ficaria por aí! Dias mais tarde, ele tanto badalou a grande descoberta, que um dia fomos chamados ao escritório do Sr. Antunes, e fomos ambos postos na rua! Eu, não era problema, pois que tinha sido aceite um mês à experiência, mas o pobre do Dádá também deu o que tinha a dar! Nesses tempos ainda não haviam contratos a respeitar e, assim, os grandes patrões punham e dispunham como lhes dava na veneta! Nessa noite ainda fizemos a sessão da noite, mas no outro dia, tínhamos sido informados, os nossos serviços estariam dispensados! De novo eu me encontrava sem emprego, mas já começava a estar habituado a esse caminho por mim já tão trilhado. O Dádá, por seu turno, como já lá tinha trabalhado uns anos, debulhou-se em lágrimas nos meus braços, num dos corredores.
Nessa noite, depois do segundo intervalo, fomos mudar de roupa ao vestiário, perto do arrumador que nos tinha lixado a vida, mais outros que nos olhavam de esguelha para bem observarem os fenómenos. O Dádá, provocou o traidor e ameaçou partir-lhe a cara. Agarrei no Dádá, uma vez mais pela manga, e fomos até ao Palladium tomar um café. Aí aprendi a conhecer o Dádá e as suas origens. Ele era filho dum grego que tinha emigrado da Grécia por razões políticas, e que fora a sua mãe, empregada num Banco, que o tinha alojado e, por fim, depois de se saber grávida do seu protegido, se tinha casado com ele, para que ele pudesse perfilhar o seu pequeno Daniel. Que ele era para ele um bom pai e que era igualmente um bom marido. Que ele agora receava magoar os seus pais se jamais a verdadeira razão pela qual ele tinha sido despedido chegasse um dia ao seu conhecimento. Claro que nós não estávamos apaixonados um pelo outro, tudo aquilo tinha sido apenas manipulações da natureza que nos tinha empurrado nos braços um do outro. Claro que essa nossa aventura chegara ao fim. Eu não podia convidá-lo para o Gavião, que era uma casa de gente séria, e ele não podia convidar-me a sua casa por causa dos pais que eram muito caseiros e dependentes de controversos princípios. Nessa noite despedimo-nos um do outro à saída do Palladium. Ele ainda enxugou uma outra pequena lágrima e depois apanhou o Elevador da Glória, pois que os seus pais viviam na Rua da Rosa. Eu segui a pé para casa um tanto entristecido pela desventura que tinha causado ao Daniel, pronto a tudo esquecer e começar de novo à procura de outro emprego.
Chegado a casa comi a refeição que a Dona Alice me deixava numa espécie de termos, bebi a minha ração de tinto naquele pequeno canjirão de barro e, depois, fui para a caminha perguntando a mim mesmo para que raio de coisa tinha eu vindo a este mundo! Eu não andava nem desandava, o meu destino encontrava-se prisioneiro de certas convenções que eu mal entendia, e as quais eu nunca poderia cambiar. Eu não podia mudar as minhas inclinações sexuais, e muito menos ainda essas velhas tradições portuguesas, arreigadas a milenários dogmas transmitidos de geração em geração!
mercredi 26 août 2009
A Cervejaria da Esquina
No dia seguinte sou acordado pela Dona Alice, que eram horas de me levantar, que o pequeno almoço estava à minha espera em cima da mesa. Visto o meu roupão e vou ao encontro da minha carcaça com manteiga e a velha chávena de café com leite. A dona Alice senta-se a meu lado e bombardeia-me com perguntas. Como se tinham passado as coisas no Odeon? Contei-lhe tudo o que se passara, excepto o ter caído nas mãos da Polícia logo no primeiro dia! Quando lhe disse que eu tinha feito trinta e tal escudos de gorjetas ela ficou radiante!
Depois fui vestir-me e desci à barbearia mesmo em frente, onde o Zé Barbeiro trabalhava, para fazer a barba, cortar o cabelo, e roçar o meu cotovelo esquerdo pela bandarilha do Zé Toureiro, que muito rapidamente ficava bem afiadinha para a enfiar no arcaboiço do animal. Ele ficou contente de saber que tudo se tinha passado bem e quando lhe disse que eu tinha feito aquela soma em gorjetas ele aconselhou-me a agarrar bem esse emprego com ambas as mãos! Que era giro e que eu tinha feito mais dinheiro com gorjetas num dia do que ele numa semana inteira! Quando ele acabou o seu trabalho eu paguei-lhe e quis dar-lhe uma dessas famosas gorjetas, mas ele recusou, dizendo que connosco era diferente! Nós éramos bons amigos! Depois tirou-me o babete e foi sacudi-lo à rua. Ele parecia-me um belo “matador” com o seu tradicional generoso enchumaço no lado esquerdo do seu “traje de luces”, abrindo a sua rubra capa a atiçar os meus bandarilhados fantasmas condenados ao decisivo final golpe de misericórdia! Acompanhou-me depois até à saída, e quando eu ia a atravessar a Sacadura Cabral para voltar ao Gavião Branco, oiço a sua bela voz muito tauromaquicamente gritar:
- É pá! Tás cada vez mais “guapo”!
Virei-me e, com muito “salero”, gritei:
- Òlé!!!
Chegado a casa meti-me debaixo da torneira de água fria para me ver livre dos cabelos nas costas, pois que banhos quentes, na banheira, só aos domingos! Aperaltei-me e desci para dar uma volta pela Avenida de Roma para ver gente e talvez comprar umas camisas brancas para acasalar com as minhas fardas, para a Dona Alice lavar e engomar como ela tão bem o fazia. Fui a uma camisaria e comprei duas novas camisas brancas para a Dona Alice se entreter. Passei pela “Anastásia”, que entretanto tinha sido trespassada pela Maria de Lurdes, e que agora era uma boutique de cosméticos e roupa interior para senhoras. Dei um salto ao Cinema Roma para ver os cartazes e saudar a Dona Margarete, e evitei debruçar-me sobre o muro para ver o meu macaquinho, temendo fazê-lo ainda mais infeliz. Também me apeteceu ir dar uma vista de olhos pelo Tique-Taque mas resisti à tentação, temendo ser eu desta vez a ser mais infeliz com a falta do Tété. Também não fui ver se o Rui estava nas Pipocas, pois que tinha decidido esquecer o Rui e todas as frustrações que dele me ficaram.
Voltei a casa para almoçar e depois lá fui, aveniadas abaixo, a caminho do Odeon. Levei a minha garrafa para o bagaço, uma camisa branca bem engomadinha, e uma gravata preta que o Zé Barbeiro me tinha emprestado. Chegado ao Odeon subi ao meu segundo andar e preparei as coisas como se tivesse feito isso toda a minha vida. O dia decorreu como o antecedente. Intervalos, clientes, gorjetas, lava copos e, como já muito esperava, café e bagaço para o Joãozinho. Ele estava apetitoso que nem um figo na sua farda de acordar os meus mais secretos fantasmas um tanto sonolentos. Depois do intervalo o João passou em frente do meu bar, olhou-me, sorriu-me e, com a cabeça, convidou-me a segui-lo além cortinas... Obedientemente o segui. Mal lá cheguei o meu polícia já tinha o seu cacetete desembainhado, o mesmo aconteceu como no dia anterior. O cacetete rapidamente deu uma cacetada na cortina mas, como bom polícia que era, revistou-me para ver se eu estava armado e estava! Amor com amor se paga! Pagou-me com a mesma moeda! O problema foi que a minha arma não disparava aos primeiros toques, tinha de ser bem manejada e bem procurar-lhe o gatilho. Balas não faltavam, mas eram balas ao retardador. Não disparavam logo, era preciso ir lá buscá-las ao carregador! Ele, cansado de estar de cócoras, olha-me por baixo da sua pala e previne-me que o intervalo já vinha a caminho. Ele voltou à carga para acabar com o serviço e quando disparei agarrei-lhe a cabeça com ambas as mãos e disparei –lhe na sua cavidade bocal para evitar mais estragos sobre a maltratada cortina. Ele engasgou-se um pouco mas, para meu grande espanto, engoliu a pólvora. Depois lambeu as talhadas de melancia e garantiu-me que era a primeira vez que tal coisa lhe acontecia. Ficou talvez um tanto surpreendido e chocado mas, depois de mais uma vez lamber as talhadas, pôs-se de pé, pôs uma mão sobre o meu ombro e confessou que eu era muito “gostoso”!
Os dias foram passando no bar do segundo andar como a repetição doutras repetições. No bar, aos intervalos era sempre a mesma balbúrdia, e o Joãozinho, tinha gostado da receita e, enfim, talvez tenha compreendido a razão pela qual ele não queria casar-se com a prima mais nova e, não sei com que linhas se cosia, mas estava lá todas as tardes e todas as tardes ele queria mais umas goladas. Mas quando era a sua vez de despejar os cartuchos, eu desviava a cara, e quem pagava as favas era a coitada da pobre indefesa cortina.
Uma das arrumadoras um dia deu com os estragos e desconfiou que ali havia gato! Que haviam certamente espectadores que não se limitavam a ir ao cinema só para ver o filme, e começou a pôr-se à coca. Uma tarde, estava eu a tratar da saúde ao Joãozinho, e ela apanha-me com a boca na botija. Certamente que ela foi fazer queixinhas ao Sr. Rosa, pois que o Sr. Rosa, depois do segundo intervalo da sessão da noite, veio ter comigo ao bar do segundo-andar antes que eu partisse, e declarou que a partir do dia seguinte eu passaria a trabalhar na sua cervejaria ali no mesmo edifício do Odon, a fazer esquina com as Portas de Santo Antão, que era também um outro dos seus negócios! Não protestei pois que tinha sido apanhado com a mão na massa e não valia a pena ir à procura de advogados de defesa! Muito circunspectamente, o Sr. Rosa repetiu-me que eu devia estar no dia seguinte na cervejaria. Que agora os meus horários seriam das nove da manhã até às cinco da tarde durante uma semana, e que depois, semana sim, semana não, trabalharia das cinco da tarde até à uma da manhã. Que podia guardar as quartas-feiras como dia de folga, e que o eu ordenado seria 500 escudos por mês, gorjetas, e duas refeições! E até amanhã!
Nessa noite fui para casa com cara de cavalo cansado. A trote, não a galope! Cheguei ao Gavião por volta da meia-noite e dou com a malta toda na casa de jantar a festejarem o aniversário de casamento da Dona Alice e do Camaradinha. Estavam todos muito animados e eu não quis estragar a festa. Quando a Dona Alice foi à cozinha buscar mais bebidas, fui atrás dela e disse-lhe que eu tinha sido promovido, que agora passaria a trabalhar na cervejaria com um bom ordenado, 600 escudos, duas refeições, e com horários irregulares, mas sempre com camisas brancas! Ela olha-me um tanto desconfiada e resmunga-me que eu certamente me tinha metido em alhadas, mas que eu, a despeito de comer fora, os 600 escudos tinham que aparecer todos os meses! Depois de ter pedido à Dona Alice para no dia seguinte me acordar às sete da manhã, fui para a cama, mas só consegui adormecer quando todos se foram deitar e a algazarra terminou. Nessa noite tive pesadelos e jurei nunca mais me meter com polícias por muito passivos que eles fossem! Passivos? Quem me daria ser preso já no dia seguinte por ter escarrado no passeio!
Na meteórica passagem pela cervejaria, imediatamente percebi que aquilo não era trabalho para mim. Era um pequeno estabelecimento só com um longo balcão e uma porta ao fundo, sobre a qual estava escrito em grandes letras: W.C. Por detrás dessa porta havia um pequeno saguão com um lavatório e um espelho, e duas portas, uma de cada lado. Uma das portas tinha um boneco dum cavalheiro de chapéu e bengala, e a outra porta tinha uma senhora muito distinta, de cabelo ao alto. O problema era que os cavalheiros só entravam para um fino num só trago, pagar, sair a correr, e gorjeta, nem vê-las! E as Damas não frequentavam tabernas! Apenas aquelas que passavam na rua e entravam de foragida, a correrem direitinhas às retretes das senhoras para aliviaram a bexiga e que, depois de terem lavado as mãos e terem passado a mão sobre os cabelos, frente ao espelho, saíam à carga, sem sequer olhar para o balcão, pois que cervejarias não eram para senhoras sérias! E quando havia alguma senhora que entrava cabisbaixa e se metia na retrete das senhoras, logo seguida dum cavalheiro muito macambúzio, era sabido que aquilo não eram problemas de bexiga mas muito mais vaginais e testiculares!
Aguentei uns dias mas detestava estar ali por detrás daquele balcão como se fora um autómato com a mãozinha em cima da alavanca para tirar finos uns atrás dos outros, com o mais de espuma possível, pois que quanto mais espuma tivesse mais os clientes gostavam, e o patrão, esse, adorava! Meio copo de cerveja pelo preço dum cheio até às bordinhas! Muito mais rentável! Por outro lado detestava aquele burburinho permanente de cavalheiros a entrarem e a saírem continuamente, só para molharem a goela, sem uma palavra dar! A única palavra que eu ouvia todos os cinco minutos era: Quanto devo! E isso já fazia duas palavras! Depois aquele barulho infernal que nos vinha da rua, de carros a passarem e a apitarem, de vendedores ambulantes aos berros para venderem cautelas, melões, canetas e lapiseiras, jornais, atacadores, relógios de pulso e de bolso, engraxadores, eu sei lá que mais! Uma coisa era certa, eu é que já não podia mais! Tinha ouvido dizer que no Cinema condes procuravam um arrumador e, como no Condes estavam a exibir “E Tudo o Vento Levou”, um filme que eu anadava há tanto tempo com vontade de ir ver, nessa mesma noite disse ao Sr. Rosa que eu me pirava, que aquilo não era trabalho para mim, que aquilo não era o Tique-Taque! Ele, sem sequer levantar os olhos, disse-me que fosse pela sombra! Fez as suas contas, pagou-me o pouco que me devia, e desejou-me boa sorte!
Saí a correr para apanhar o eléctrico. Eu queria meter-me na cama o mais rapidamente possível. Nessa noite detestei Lisboa e toda aquela multitude de bebedores de cerveja à pressão! Chegado a casa já estavam todos na retranca. Meti-me cama ainda vestido e cheguei a desejar adormecer e nunca mais acordar! Nessa noite sonhei que era milionário e que andava sempre em cruzeiros através do mundo inteiro a ver outras coisas além do meu seca e Meca dum emprego para o outro!
Porém, ao acordar, pensei no Cinema Condes e novos projectos invadiram a minha mente. Projectos dum melhor futuro, de um dia ser alguém, viajar, conhecer outras civilizações, outros horizontes, outras raças!
lundi 24 août 2009
O Odeon
Após os grandes fracassos com o Rui: o “pop-corn” e aquela oportunidade excepcional de ter caído nos seus braços, a minha luta pela minha sobrevivência subsistia. Tive de novo pôr os pés a caminho para encontrar outro emprego, outro ordenado que me permitisse viver como toda a gente que se preza. Ao princípio de cada mês eu tinha de apresentar 600 escudos à Dona Alice, sem ter de pedir esmola.
Uma manhã, observando a cara fechada da Dona Alice, reparei que aquele sorriso permanente de repente desaparecera como que por maldição. Depois do almoço, servido com uns certos maus modos, agarrei nas pernas e fui por aí abaixo até à Baixa para ver se um milagre me aconteceria.
Comprei o Diário de Notícias e sentei-me no Paladium, ali nos Restauradores, a fazer esquina com o Elevador da Glória. Sentei-me, pedi uma Bica, e comecei a folhear o jornal em busca dos anúncios. Perscrutei cuidadosamente cada um dos anúncios, mas nada! Apenas mulheres-a-dias e altos cargos eram propostos. Como o criado de mesa era um jovem muito simpático, quando o chamei para lhe pagar, ao mesmo tempo que ele me preparava o troco, falei-lhe do meu problema de desemprego, que era empregado de mesa, se no Palladium não precisariam dos meus serviços. Ele respondeu-me que não, que ele soubesse, mas que no Cinema Odeon eles andavam à procura dum empregado para o Bar. Que a prima dele trabalhava lá como arrumadora e que o bar do segundo andar estava fechado porque o senhor Rosa ainda não tinha encontrado ninguém para substituir um barman, que, há dias, tinha deixado o seu trabalho para cumprir o seu serviço militar. Ele aconselhou-me a ir ao Odeon e pedir para falar com o senhor Rosa, o responsável dos bares.
Atravessei a avenida, dirigi-me ao porteiro do Odeon e pedi-lhe para falar com o Sr. Rosa. Ele respondeu-me indiferentemente que o Sr. Rosa não estava, que só lá estava durante os intervalos. E virou-me as costas! Como a bilheteira estava ainda aberta fui comprar um bilhete para a geral e entrei. O porteiro olhou-me muito desconfiadamente, mas, claro, não me impediu de subir ao primeiro andar. Nem sei que filme estavam a mostrar nessa matiné.
Chegado ao primeiro andar a primeira coisa que vejo é o grande bar desse cinema. Estavam lá dois rapazes a lavar copos e a preparar tudo para o primeiro intervalo. Pedi para falar com o senhor Rosa mas o senhor Rosa tinha ido laurear a pevide. Que me sentasse ali naquele canapé, que ele não tardaria. Sentei-me e não esperei muito tempo. Vi um senhor de diminuta estatura subir as escadas e começar a dar ordens aos dois rapazes. Um deles segreda-lhe algo ao ouvido e esse quase anão dirigiu-se a mim e apresentou-se como sendo o senhor Rosa. Levantei-me e falei da minha necessidade de arranjar trabalho. Ele olhou-me dos pés à cabeça e, desconfiadamente, pergunta-me se eu tinha experiência do serviço de bares. Falei-lhe muito rapidamente do Cinema Roma, Tique-Taque... aí, Tique-Taque soou-lhe como uma prenda de Natal. Imediatamente se desfez em vénias, que me sentasse, que eu podia começar a trabalhar no bar do segundo andar, um bar muito mais pequeno, mas que logo que pudesse me transferiria para o bar de baixo. Falou-se de ordenado, horários, e dia de folga. O ordenado eram 300 escudos por mês, mais as gorjetas; os horários todos os dias das duas da tarde até quase à meia-noite, logo a seguir à sessão da noite, depois do segundo intervalo. Que tinha um dia por semana de folga. Qual o dia que mais me convinha? Imediatamente pensei no Nuno Fradique e pedi-lhe as quartas-feiras, explicando que nesses dias eu trabalhava na RTP. Perguntou-me que fazia eu na RTP? Respondi-lhe: “apenas figuração”, para não assustar a caça. Pediu o meu nome e morada. Quando lhe disse que morava na Sacadura Cabral ele garante-me que não era nada longe, que tinha eléctricos até quase à uma da manhã! E que se perdesse o último eléctrico, a caminhada também não era grande, bastava subir até ao Marquês de Pombal, depois o Saldanha, e o Campo Pequeno ali estaria de braços abertos à minha espera! Aceitei! Mais uma vez (que belos tempos!) nem contratos nem assinaturas.
Depois pediu-me para subir com ele ao segundo andar para me mostrar o bar lá de cima e, ao mesmo tempo, irmos ao grande armário em frente do bar, para ver se encontrava um casaco para o meu tamanho. Experimentei uns dois ou três casacos castanhos-escuros com uma lapela amarela e um deles assentava-me como uma luva! Depois mostrou-me uma gravata castanha que eu tinha de usar, que era obrigatório! Que eu tinha de vestir sempre camisas brancas, muito bem engomadas! Pediu-me para eu lá estar no dia seguinte às 14 horas, para me ensinar onde estavam as coisas todas desse minúsculo bar, e como funcionava a máquina de café de saco, e onde se encontravam as botijas suplementares de gás! Fiquei contente que nem um rato! Agradeci-lhe, apertei-lhe a mão e desci a correr, estando-me nas tintas para o filme que, agora me lembro, era com o Pedro Infante!
Ao chegar a casa disse à Dona Alice que tinha encontrado emprego no Odeon. Ela perguntou qual era o ordenado. Para a aquietar disse-lhe que eram 600 escudos. O seu meio sorriso murchou na sua muito desapontada cara e previne-me que isso não era nada, que eu tinha outras responsabilidades além do pagamento mensal da pensão. Disse-lhe para não se alarmar, que também ia ter muitas gorjetas! O seu sorriso, muito a medo, reapareceu vagamente, quase maternal, na sua receosa feição. Nessa noite o jantar foi muito mais animado. A malta estava satisfeia de eu ter encontrado uma ocupação, e que se eu precisasse de alguma coisa eles ali estariam para o que desse e viesse! A Dona Alice também nos amimou com uma bela torta de maçã para a sobremesa.
A seguir ao jantar, como muito frequentemente fazíamos, fomos todos tomar uma bica ao Café do Campo Pequeno. O Café da Avenida de Roma ficava apenas para quando eu aparecia na televisão, e isso nem sempre era com muita regularidade. Depois desse café, como pelo menos uma vez por semana, o Guilherme arrasta-nos todos a um bordel ali na Augusto Aguiar. Tanto eu como o António tentámos escapar, mas eles tanto insistiram, que eu e o António não tivemos outra alternativa senão mostramos que nós também éramos muito homens! Seguimos à pata até esse indesejável lupanar. Lá chegados, eles já conheciam bem o caminho de cor e salteado. Entrámos todos na sala das meninas que lá se encontravam sentadinhas de pernas cruzadas, sais muito curtas e decotes até ao umbigo, à espera da tesão da sua variada clientela. O Guilherme e o Zé Barbeiro foram direitos a duas delas que, aparentemente, já conheciam bem os seus serviços já prestados no passado. Depois deles terem acompanhado as meninas ao quarto delas, eu e o António discretamente deixámos a sala e procurámos a saída. Descemos as escadas a quatro e quatro e fomos para casa dormir ou, quem sabe, cada qual a sua silenciosa punheta, cada um na sua cama, às escuras, para não gastar muita electricidade à Dona Alice. Claro que eu não conhecia a táctica do António, mas a minha era o velho lenço para não sujar os impecáveis lençóis da Dona Alice, que a sua casa era uma casa séria!
De manhã, ao acordar, o habitual chichi matinal, e o lencinho muito bem lavadinho debaixo da torneira. Naquela casa não podíamos levar mulheres ou “desconhecidos”, No cesto da roupa suja, apareciam depois lenços muito mais do que ranhosos. Pensava que a Dona Alice não devia ter muitos conhecimentos de causa, pois que certamente usava (se ainda usava) as velhas toalhinhas de mesa de cabeceira dos tempos das nossas castas trisavós que Deus tem!
Como previsto, no dia seguite iniciei a minha odisseia no pequeno bar do segundo-andar do Odeon. O Sr. Rosa lá estava, como prometido, para me explicar o andamento das coisas nesse vetusto cantinho a que ele chamava bar, que eu estava suposto a gerir, para que o Sr. Rosa fizesse mais umas coroas e, com um pouco de sorte, eu também! O Sr. Rosa enviou-me para dentro do pequeno bar passando por uma estreita passagem. Ele ficou do lado de fora para me dizer o que fazer para que tudo corresse bem. O Sr. Rosa parecia ter ainda minguado um pouco mais durante a noite. Eu, de cócoras, perto da botija de gás escutava as suas instruções para que eu, antes de mais nada, acendesse a chama sob a máquina de café de saco. Do Sr. Rosa, eu, agachado, só conseguia ver a sua cabeça como se ela tivesse sido cortada e posta sobre balcão. Por momentos pensei que eu era a Salomé e ele o São João Baptista! Deu-me vontade de rir mas estava demasiado ansioso para tal fazer. Limitei-me a escutar o São João Baptista, perdão, o Sr. Rosa, e tudo facilmente entrou nas calhas. Como fazer café de saco eu já o tinha aprendido no Café Estrela. Depois foi verificar o frigorífico e saber onde se encontravam escondidas as caixas de cervejas e outras bebidas. Nesse tempo a grande moda eram os Pirolitos! O que eu mais precisava de saber era onde encontrar as bebidas, e verificar que o frigorífico estava bem carregado e a funcionar como deve ser. Perguntei-lhe onde estavam as garrafas de bagaço e aguardente velha, e outras bebidas alcoólicas, mas o Sr. Rosa declarou muito patronal, que essas bebidas estavam à venda no primeiro-andar, junto da Plateia, que ali no segundo-andar era “apenas” a Geral! Havia apenas bagaço ali naquele garrafão no chão! Isto dito, ele agarra na sua cabeça e desce para, muito mais senhorilmente, tomar conta do Bar da Plateia, para onde se iam sentar os mais abastados! Quando ele desapareceu pela escada a baixo, fiz-lhe um grande manguito e mandei-o levar onde levam as galinhas! Agarrei no meu bar dos pobres lacaios e tratei da minha vida! Tratei de me aprontar a receber os coitados dos espectadores que viriam para a Geral. O café estava pronto, o frigorífico bem atulhado, e os copos e chávenas bem alinhados na longa prateleira aparafusada a ambas as paredes que faziam daquela sopa dos pobres uma espécie de cantinho modesto onde só faltavam os manjericos. Pus um pouco de leite que encontrei no frigorífico naquele pequeno depósito incorporado na máquina de café, no caso de alguém me pedir um “garoto” ou um “galão”, que agora se chama muito requintadamente, “meias-de-leite”! A propósito de “garotos” e de “galões”, como eu gostava muito de garotos e de uniformes, senti-me nas minhas sete-quintas!
Por volta dum quarto para as três comecei a ouvir ruídos ameaçadores. Eles tinham aberto as portas do cinema para a primeira matiné e a gente da alta começava a instalar-se para verem aqueles filmes muita merdice do Pedro Infante. As boas famílias “acomodaram-se” na plateia, depois de terem tomado uma taça de campagne ou um cházinho. Os pobres serviçais começaram a trepar até ao segundo-andar mesmo à última da hora. Se calhar lá em baixo o porteiro era um homem bem educado e as senhoras e os cavalheiros entravam primeiro. Talvez só depois da plateia bem alojada é que a escumalha podia afoitar-se a entrar e depois rastejar até a sua Geral.
Todas estas minhas previsões me saíram totalmente erradas. Logo os primeiros cinéfilos a virem ao meu bar eram rapazes e raparigas muito bem arreados - provavelmente estudantes, filhos de boas famílias – que tinham quase todos uma preferência pelas Fantas bem fresquinhas. Outros pediram uma Bica e todos se comportavam muito educadamente, e alguns dos garotos não tinham galões mas eram, mesmo assim, muito galardoáveis. Logo na minha primeira serventia, durante um pequeno quarto de hora, fiz mais negócio para o Sr. Rosa, do que para o meu belo Rui durante um mês! Era tudo uma questão de clientes que vêm até nós por sua própria decisão para obterem algo que lhes apeteceu, e não nós atrás de clientes que se estão nas reais tintas para o que nós temos a propor! O melhor da festa foi que cada consumidor das minhas vendas, pagavam e deixavam sempre uma gorjeta. Uns 20, outros 50 centavos. Uma mina! A Dona Alice iria ficar radiante quando soubesse que eu ia ter patacos que chegassem para lhe pagar a mesada e ir às putas uma vez por semana! Milionário não, senão alugaria um belo apartamento na Praça dos Estados Unidos, e ela perderia mais um rapaz! A cama do Fernando continuava às moscas, se calhar, também às pulgas! Eu ainda estava mais radiante do que a Dona Alice. Eu tinha ali a minha pequena registadora para os pequenos lucros do patrão, e uma grande algibeira para as minhas gorjetas bem tilintantes! Mas o melhor (ou o pior) ainda estava por vir!
Depois de ter soado a sineta a anunciar que a sessão ia começar, todos desarvoraram à cata dos seus lugares antes que a luz se apagasse, pois que na Geral não haviam arrumadores, e mal fiquei a sós com a minha tralha toda a pôr em ordem, lavar os copos, chávenas, pires, e colherezinhas das bicas (os tempos do Avis que eu não molhava as mãos para não dar cabo das unhas, eram coisas dum passado já distante!), aparece-me um polícia que me pediu “café-e-bagaço”. O café era só abrir a torneira, mas o bagaço era o cabo dos trabalhos! Pegar no garrafão e encher um pequeno copo, aquilo era realmente coisas do arco-da-velha! Eu tinha que pedir em baixo uma garrafa vazia para eu encher de bagaço! Mas... um polícia? Um uniforme? Nossa Senhora dos Pecados! E eu que andava esfaimado! Ele era um rapaz ainda muito jovem que - mais tarde vim a saber – se chamava João, que era da Beira Yalta e que tinha vindo para Lisboa para viver a sua vida longe das mentalidades tacanhas da sua aldeia, que queriam que ele casasse com a prima mais nova, que andava a família toda atrás dele, que até já tinham ido falar com o padre, que aquilo era uma verdadeira maratona, e que ele achava que ainda era muito novo para se enforcar!
Ele era muito campesino, amorenado pelo sol da sua terra, olhos muito pretos que me sorriam em inesperadas carícias... tinha uma boca que parecia duas talhadas de melancia sem pevides, ali fresca, pronta a matar a minha sede! Quando a sessão começou ele pagou e desapareceu por detrás da cortina que separava o bar da Geral.
Eu arrumei o meu bar muito rapidamente para estar pronto para o primeiro intervalo e, depois, pensei no meu belo Rui que me foi servido sobre uma bandeja e que nunca lhe fincara os dentes! Pensei com os meus botões: Aproveita rapaz! Não percas outra vez o comboio! Despacha-te! Para a frente é que é Lisboa! Agarrei no meu esfomeado corpo e vou até essa cortina que há momentos tinha engolido o meu fora da lei polícia. Os documentários e o Jornal Pathé não me interessavam, o Pedro Infante ainda menos, mas aquele raminho de flores do campo ali à espera de serem desfolhadas é que não! Eu tinha que ir ali bater à sua porta e ver se havia alguém em casa. Entreabri a cortina e ali ele estava à espera da merenda.
O mais curioso era que o bar era separado da Geral por um pequeno saguão onde, no outro lado, havia também uma outra cortina. Era pela greta que ele tinha aberto nessa outra cortina que ele via o ecrã da sala, lá em baixo. Entre essa cortina a cortina que eu acabara de entreabrir haviam para aí uns cinquenta centímetros de espaço. Entrei nessa saguão e esqueci completamente o meu bar, o meu trabalho, as minhas responsabilidades. Aconcheguei-me ao polícia e, como ele era mais alto do que eu, pus-me nos bicos dos pés para poder visualizar o ecrã por cima do seu ombro. Desequilibrei-me um bocadinho e, para não tombar, pus a minha mão direita sobre o seu ombro uma fracção de segundo. Ele virou-se um nadinha para trás para ver se era preciso sacar da pistola, mas quando me viu ali na penumbra com olhos em brasa, continuou a ver o seu Jornal. Eu, entre essas duas cortinas, estava tão próximo daquele pêssego a cair da rama, que o meu arado começou a ganhar terreno. E aquele terreno ali mesmo em frente, aquelas rústicas nádegas rijas que nem calhaus! Afastei-me um pouco para trás para não dar barraca, mas o meu Joãozinho passou a sua mão direita pelas suas nádegas e veio ao encontro daquele intruso que se colava ao seu corpo sadio. A sua mão cuidadosamente procurou conduzir o meu instrumento de lavoura a amanhar um pouco a sua terra ainda talvez por lavrar. Sem olhar uma só vez para trás, ele começou a amassar-me como se eu fosse farinha de trigo a mendigar um pouco de levedura. Como “amor, com amor se paga”, a minha mão vai à procura da sua massaroca que já estava bem madura. Descasquei-a e debulhei-a em dois minutos. Um pequeno urro mal contido e a cortina da frente apanhou com uns merendeiros a saírem ainda quentes do forno em plena fuça. Eu voltei ao bar para preparar tudo para o intervalo. O polícia nunca mais o vi nessa tarde mas, no dia seguinte...
O resto do dia correu tudo muito bem. Nove vezes nesse dia tive o meu barzinho assaltado por sedentos que vinham em busca das minhas Fantas, cervejas, e alguns cafezinhos. Nessa noite, depois do segundo intervalo, fechei o bar e o Sr. Rosa veio fazer as contas. Penso que nesse dia as minhas gorjetas tinham ultrapassado os lucros do patrão. Quando despi o casaco e tirei a gravata, transferi os meus ganhos para dentro do bolso das minhas calças, vesti o meu blusão, desci a escada, disse até amanhã aos outros no bar de baixo, e saí que nem um foguete pela porta fora. Mal pus os pés em cima desse passeio da Rua dos Condes, pu-los a caminho de casa. Sentia-me tão feliz como se me tivesse saído a sorte grande! Nem quis apanhar um eléctrico. Fui por essa Avenida da Liberdade acima até ao Marquês de Pombal, Saldanha, Avenida República, Campo Pequeno, “a assobiar baixinho o Fado da Mouraria”. Chegado a casa já estavam todos na cama, aparentemente já a dormir, pois que havia quem ressonasse um pouco em cada dependência. Deitei-me mas antes adormecer tive de deitar contas à vida. O meu polícia tinha sido bem regado, mas eu tinha ficado na seca.
Algo teria de ser feito para que certas paridades fossem respeitadas!
samedi 22 août 2009
O Belo Rui
No Tique-Taque as coisas começaram a complicar-se desastrosamente. O Tété continuava nos seus negócios pouco límpidos, numa tentativa de ser ele o seu próprio patrão. Agora sem os Bares do Roma e do Avis, ele continuou embrulhado em manigâncias, numa desesperada tentativa de sair do buraco em que se metera. Não sei que falcatruas ele cometeu, mas a verdade é que repentinamente o irmão do Tété, o senhor Engenheiro Guimarães, começou a aparecer à noite para fazer as caixas. Fiquei perplexo e muito preocupado. Perguntei-lhe se o senhor Melo tinha ido de férias ou se estava enfermo. Ele diz-me muita friamente, que não me ralasse, que o senhor Melo estava muito bem onde agora estava. No dia seguinte entro na Condotti e pergunto à Rita onde tinha ido o Tété. Ela diz-me, como que esquivando a pergunta, que o Tété tinha ido para Israel para ingressar num Kibbutz para aprender o Hebraico. Que depois ele procuraria um emprego e que logo que ele estivesse estabelecido, ela iria ter com ele. Fiquei muito intrigado e ao mesmo tempo inquieto, pois que tudo aquilo me parecia inverosímil. Mais tarde começaram os boatos que o senhor Melo tinha feito vigarices, que tinha comprado alguns carros aqui e ali, a pagar a prestações, e que depois os vendera por metade do preço a pronto a amigos e conhecidos. Que agora ele tinha a polícia ao seu encalço, e que ele fugira para Israel para se livrar de responsabilidades, pois que em Israel ele estava seguro de não ter problemas com a Justiça, pois que em Israel ele não corria o risco da extradição! Não sei o que realmente se passou, se com esse dinheiro ele queria investir nalgum outro negócio ou se para apenas se pirar de Portugal. Nunca o saberei! Procurei apagar da minha memória e coração esse belo homem que tanto amara e que tão indignamente saíra da minha vida sem sequer me dizer adeus!
Continuei mais uns tempos no Tique-Taque, mas a minha consciência começou a ser contaminada por uma espécie de cólera contra o senhor Luís. Como era possível que o senhor Luís, um homem podre de rico, tinha consentido que o seu filho entrasse em tais perigosas desventuras, e por que raio ele, que tanto dinheiro tinha, o não tirara dessa embrulhada? Todos estes dias sem ver o Tété, sem saber o que realmente se tinha passado, e sem lhe dizer os meus poemas todas as noites, como ainda num tão recente passado, comecei a sentir-me profundamente só e a detestar o senhor Luis! Também comecei a desgostar do engenheiro Guimarães por ele ter tirado o lugar ao seu irmão e por não me dizer nada do que verdaeiramente se tinha passado com o Tété! A Rita também me parecia um túmulo! A sua boca não se abria senão para me dizer que um destes dias, mais ninguém falaria do senhor Melo ali nas redondezas. Que ele seria simplesmente esquecido! Talvez, mas eu não, eu nunca o esqueceria! Revoltado com esta imerecida situação em que o Tété se metera, dei a minha demissão. Eu queria afastar-me do Tique-Taque e do Tété, eu queria, bem afinal de contas, tudo esquecer e começar uma vida nova longe da Avenida de Roma!
Começou então a minha grande luta em busca dum outro emprego. Na RTP tinha apenas as quartas-feiras para fazer figurações e isso era muito mal pago. Diariamente comprava todos os jornais de Lisboa para rebuscar todas as páginas dos anúncios, mas nunca havia nada que correspondesse às minhas capacidades e qualificações. Eu não tinha estudos nenhuns! No fim do mês deixei o Tique-Taque e segui a minha vida. A Dona Alice andava muito preocupada com a minha situação, pois que ela sabia muito bem como era então difícil encontrar empregos em Lisboa. Durante algumas semanas andei ao “tio-ò-tio” em busca de trabalho sem que nenhuma proposta me fosse feita. Eram os “encontros” com possíveis futuros patrões que ficavam com os meus contactos, que depois me convocariam! O que nunca aconteceu. O único trabalho que encontrei foi, ao passar na Avenida de Madrid vi numa montra um papelinho a pedir “mão d’obra”. Não dizia de que trabalho se tratava. Havia um número de telefone a contactar, o que imediatamente fiz. Foi uma voz de homem que me respondeu, perguntando-me se eu podia ir vê-lo pessoalmente a sua casa na Rua Sacadura Cabral. Disse-lhe que sim, que eu até morava nessa rua. Ele disse óptimo, que eu fosse ao número tal, que subisse ao terceiro andar esquerdo, e que perguntasse pelo Rui. Pus os pés a caminho. Não era mesmo nada longe. Ao subir a esse terceiro-andar esquerdo, bato à porta e aparece diante dos meus olhos talvez o mais sublimemente belo homem que jamais atravessara o meu caminho. Ele apresenta-se como sendo o Rui, e propôs-me eu trabalhar para ele naquela boutique onde eu encontrara o anúncio, que ia iniciar um novo negócio de “Pop-Corn” em Lisboa. Que precisava de alguém que o fabricasse e conduzisse o negócio. Descemos e ele foi mostrar-me as instalações do meu novo emprego. Tratava-se de uma grande dependência com uma montra para a rua, uma secretária com uma cadeira de cada lado, a minha secretária para eu receber os meus clientes. Sobre essa secretária um telefone muito preto e uma máquina de escrever. A um canto havia a máquina para torrificar o “pop-corn” e a um outro canto uma bancada com outra pequena maquineta para fazer a colagem dos sacos de uma dose. Claro, havia também um grande saco cheio de milho e um rolo de sacos em cima da bancada. Ele ensinou-me a fabricar o “pop-corn”, o que nos levou cerca de cinco minutos a obter. Depois mostrou-me como se enchiam e se colavam os sacos. Seguidamente sentámo-nos à secretária, cada qual do seu lado. Ele explicou-me como se iriam passar as coisas. Eu prestava atenção ao que ele me dizia, mas eram aqueles olhos dum azul divino que eu devorava. Ele pareceu aperceber-se e dum certo modo correspondia às minhas mensagens em morse. Súbito um dos seus joelhos tocou o meu como que a dizer-me que me pusesse à vontade. Continuou as suas explicações dizendo-me que eu não tinha ordenado, que seria uma espécie de sociedade entre ambos, que eu teria trinta por cento dos lucros. Que tinha posto anúncios nos jornais e que já tinha algumas encomendas, mas que agora eu ficaria a cargo do telefone na “oficina” (como ele lhe chamava), e que ia pôr novos anúncios nos jornais com o número de telefone da dita. Depois entregou-me as chaves da loja e mostrou-me onde era a retrete. Nesses tempos ainda se não tinha que escrever e assinar contratos. Bastava a palavra da pessoa. Ele ficou radiante de sermos vizinhos na Sacadura Cabral, e que estaria comigo no outro dia de manhã na loja para me ajudar a preparar os sacos-dose, como ele lhes chamava. Depois saímos e fomos tomar um café àquele mesmo Café onde íamos ver os meus trabalhos para a RTP. Se ele me tivesse proposto o Tique-Taque eu teria recusado! Enquanto tomávamos o café, pensando na RTP, revelei-lhe que a única desvantagem do meu trabalho na sua loja era que eu trabalhava todas as quartas-feiras na RTP com o Nuno Fradique, e que agora os meus dias de folga seriam ao domingo. Ele ficou muito agradavelmente surpreendido, um tanto admirativo, e disse que se alguma vez eu precisasse desesperadamente duma quarta-feira ele tomaria conta da loja por mim nesse dia. Algo que não viria a ser necessário, pois que durante algumas semanas não fui convocado porque o Nun Fradique tinha tirado um mês de férias. Falou-se que ele tinha ido até aos Estados Unidos, para uma qualquer formação.
A dona Alice ficou muito mais descansada sabendo que eu tinha finalmente encontrado trabalho e, ainda por cima, ali tão perto! O que ela não sabia era que eu não tinha ordenado! Nessa noite eu e os rapazes fomos dar uma volta à noite pela Baixa e apanhámos uma piela! Depois eles foram todos às putas. Eu e o António voltámos para casa a pé sem quase trocar uma palavra, pois que ele ou não era falador ou não tinha mesmo nada para dizer. Ele era realmente muito fechado, mas uma doçura de rapaz!
No outro dia de manhã fui abrir a loja às nove, como tinha sido combinado. O Rui chegou um pouco mais tarde e começámos ambos a trabalhar. O trabalho era fácil. Bastava pôr uma medida de milho dentro da máquina, cobrir com um pouco de açúcar para o “pop-corn” caramelizado, ou um pouco de sal para os outros que serviriam de aperitivo para as cervejarias. Depois era só ensacar. Haviam sacos para os salgados e outros para os caramelizados. Depois bastava pô-los separadamente num dos dois caixotes de madeira ali no chão, um para os doces, o outro para os salgados. Finda essa tarefa, ficámos já com algumas reservas para satisfazer quaisquer possíveis encomendas. O Rui, depois de ter explicado que por hoje era tudo, pediu-me que ficasse até ás sete da tarde para responder ao telefone, pois que o novo anúncio tinha sido lançado nessa mesma manhã. Rui foi à sua vida e eu ali fiquei à espera que o telefone tocasse. Coisa que não aconteceu. Como do meio-dia à uma eu fechava a loja para ir almoçar, assim fiz. A Dona Alice crivou-me de perguntas mas as respostas eram poucas. Tinha sido o primeiro dia e nada de prometedor tinha acontecido.
Ao voltar para a loja levei um livro para ler, pois que estava certo que nessa tarde o telefone continuaria mudo. Felizmente enganei-me! Tive uma meia dúzia de chamadas de algumas cervejarias lisboetas interessadas na mercadoria. Tomei nota de duas encomendas, e que eu as viria entregar pessoalmente na manhã seguinte. Eram duas moradas ali próximo, na Avenida Almirante Reis. Uma delas era a Cervejaria Portugália. O Rui passou por volta das cinco a perguntar como se estavam as coisas a passar e ficou contente com essas duas encomendas. Ao deixar-me passou a sua bonita branca mão pela minha face e murmurou:
- Bom trabalho! Até amanhã!
Depois virou-me as costas e subiu a Avenida de Madrid na direcção da Avenida de Roma. Eu aproveitei para regalar os meus olhos naqueles belos costados e naquelas belas nádegas que ondeavam como um subtil mar de doces promessas! Eu então andava um tanto celibatário e esses elegantes metro e noventa teriam sido a melhor das soluções a esse meu tão grave problema das minhas noctívagas solitárias no Gavião Branco, muito sorrateiras para não acordar o António!
No outro dia, depois de ter entregue as duas encomendas voltei à loja, pedindo a Deus que o telefone tocasse para mais encomendas, mas o telefone estava ali em cima da secretária, sob os meus olhos ansiosos, mas o resto do dia e ele não deu sinais de vida. No outro dia de manhã, para minha grande surpresa, o telefone toca. Era a Portugália a fazer outra encomenda. Os dias foram passando e as encomendas eram raras e apenas da Portugália. Comecei a ficar preocupado. Por outro lado, os dias todos ali fechado na loja sem nada que fazer era um verdadeiro tormento para mim, depois daquele permanente burburinho no Tique-Taque. Como não tinha livros para ler comecei a aproveitar o tempo para ler os jornais que eu comprava ali à esquina. Lia todas as páginas de alto a baixo, incluindo as necrologias. Isto, claro, sem esquecer as muitas páginas de anúncios. Foi num desses jornais que descobri um apelo duma revista que procurava colaboradores. Era a revista Turismo. Respondi a esse anúncio para fazer carburar a porcaria do telefone. Deram-me uma data para eu ir lá falar com o director.
Chegada essa data dei lá um salto na hora do almoço e falei com o senhor director. Levei comigo todos os meus poemas que tinham sido publicados na Antologia de Revelações do Diário Popular, assim como um pequeno conto que eu tinha escrito lá na loja Essas pequenas histórias que eu contava nesses curtos textos não eram porque eu andava muito inspirado, simplesmente para preencher aqueles longos dias sem chamadas telefónicas. O senhor director leu os meus poemas e as boas críticas do Diário Popular. Disse ter gostado do que eu escrevia. Leu depois umas linhas do meu pequeno conto e disse-me que eu tinha muito jeito para a escrita, que lhe escrevesse uma história acerca dum qualquer jardim de Lisboa. Quando voltei à loja, como o telefone parecia estar-se nas tintas para a minha presença, agarrei na máquina de escrever e algumas folhas de papel, e escrevi acerca das minhas recordações dos tempos em que, tão puto, passava os meus dias no Jardim da Parada a brincar com os outros miúdos. Intitulei este artigo “Eu Também Tenho Um Jardim”e depois, como combinado, enviei-lhes o meu trabalho pelo correio. Claro que a partir dessa data comecei a também comprar a Revista Turismo, que era uma revista mensal! Passados uns meses o artigo foi publicado. Fiquei radiante! Orgulhoso de mim mesmo! Se eu nunca viesse a ser um grande actor, talvez pudesse vir a ser um dia um grande jornalista! Porém esse meu primeiro artigo foi também o último, pois que eles, alguns meses depois propuseram-me um biscate que eu adoraria ter feito, mas que chegou tarde demais. Tinham-me proposto eu ir passar os meus fins-de-semana de terra em terra, escrever a história da vila visitada, de como tudo tinha começado, que tipo de indústrias ou artesanato típicos da região, assim como o que havia de interessante a visitar, museus ou outras atracções, afim de promover o turismo nessa específica terra e em Portugal duma forma geral. Eles pagar-me-iam as viagens e uma noite num hotel, e eu receberia 100 escudos por cada artigo. Tal como a minha carreira como actor, a minha carreira como jornalista, acabariam ambas ao nascer, por ter deixado demasiado cedo o nosso país, correndo atrás de amores puramente platónicos!
O negócio da loja não andava nem desandava. Além da Portugália, só, de vez em quando, uma outra encomenda caía do céu aos trambolhões. O Rui começou a ficar muito desanimado e eu também, pois que as minhas únicas entradas de dinheiro seriam as percentagens das vendas, isto depois das despesas diárias e do pagamento da renda mensal da loja.
Uma manhã o Rui chama-me para eu chegar a casa dele para falarmos da situação das coisas. Que eu viesse durante a minha hora de almoço, que ele prepararia umas sandes. Depois de fechar a loja fui até à morada dele e subi ao seu terceiro-andar esquerdo. Toco à campainha e é o Rui quem me vem abrir a porta. Para meu grande espanto, o Rui apresenta-se-me completamente nu, diante daqueles meus olhos tão sôfregos daquele tão atlético e desejável escultural corpo!! Pediu-me para irmos para o seu quarto porque a sua mãe estava em casa e que ele não se sentia à vontade todo nu em frente da sua mãe. Em frente de mim ele estava perfeitamente à vontade e brincava com o seu sexo para ver se ele engordava um bocadinho para me impressionar com a sua virilidade, como quase todos os homens fazem, pois que para todos os homens, terem um sexo bem aviado é de importância capital! Sentámo-nos na sua cama e ele despejou o seu saco. Mas não saco que eu mais gostaria que ele tivesse despejado. As suas preocupações eram os negócios que não avançavam na loja. Propôs-me eu começar a fazer de caixeiro-viajante e ir propor a mercadoria a todas as tabernas e cervejarias de Lisboa. Pediu-me para eu consultar a lista telefónica e procurar moradas desse tipo de estabelecimentos ou simplesmente ir por essas ruas fora e entrar em cada Café, Pastelaria, ou Cervejaria, a que eu passasse à beira, e propor os nossos sacos de “pop-corn”! Naquele momento teria preferido que ele me tivesse proposto aquele seu belo corpo ali todo desnudo frente aos meus ávidos olhos, enchendo-me o corpo todo dum desejo incontrolável! Comemos as nossas sandes e tomámos dois copos de vinho branco e assim o tempo voou! E eu tive de voar para a loja para responder a um telefone que nunca tocava! Nunca percebi por que razão ele me tinha recebido todo nu e a brincar com o seu berloque, se a sua única preocupação tinha sido os negócios. Ou teriam sido outros os negócios que ele não ousou manifestar? Mais uma pergunta que ficaria no ar por toda a eternidade! Que frustração irreparável esse meu ter perdido o comboio uma vez mais!
Ainda hoje ao pensar nessa visão daquele corpo esplêndido ali à minha mercê e que eu não mexi um só dedo para o alcançar! Ainda hoje me odeio por essa minha grande falta de coragem de não ter sido eu a disparar o gatilho e ter feito daquela tarde uma orgia de acordar a sua mãe e toda a vizinhança, de ter posto em dia os meus desejos, em vez de estar ali especado na loja à espera de telefonemas que nunca chegariam!
Os dias iam correndo e correndo andava eu de rua em à procura de estabelecimentos que pudessem estar interessados na minha mercadoria. A maioria dos responsáveis dos visitados estabelecimentos que poderiam eventualmente estar interessados no meu “pop-corn”, voltavam-me as costas e mandavam-me ir vender chuchas para outra banda! Cada vez que isso me acontecia (e foram tantas e tantas vezes) eu sentia-me humilhado até à medula! Só muito raramente havia um que me comprava meia dúzia de sacos à experiência, mas deles nunca mais tive notícias! Ficávamos limitados à Portugália mas a Portugália não consumia suficientemente para manter o nosso negócio de vento em popa. Como via que a empresa do Rui não funcionava, mandei o Rui à mãe e fui à procura doutro emprego.
Do Rui nunca mais soube nada! Teria ele singrado com a sua ideia do “pop-corn”? Teria ele realmente, naquela tarde, desejado o meu corpo como eu tinha desejado o seu? Dele nada me ficou nem mesmo uma foto daquele bonito rosto ou daquele corpo elegante como uma cavalo de corrida que tanto teria gostado de ter montado e cavalgado por esses prados fora!
Porém o Rui nunca me saiu inteiramente das minhas boas e más recordações. Em Paris, em 1985, pensei nele e procurei fazer o seu retrato de memória, de como ele para mim tinha sempre ficado! Belo e desejável!
Que restará dele agora? Morto? Velho? Como se teria acabado aquele seu negócio do “pop-corn”? Tinha singrado na vida? Casado? Tido muito filhos? Muitas aventuras com outros homens?
Porque não lhe tinha eu assaltado aquele seu belo corpo naquela memorável soalheira tarde de Lisboa, ali na Rua Sacadura Cabral, ali tão perto daquele bela orientalizada Praça de Touros do Campo Pequeno, tão rubra como as minhas devastadoras e incontroláveis contínuas paixões?
POESIA
No Tique-Taque os dias começaram a ser todos um tanto iguais. Começava às cinco da tarde e laborava como um condenado. Quase que não tinha tempo de namorar alguns dos clientes que se vinham sentar ao Bar para me fazerem olhinhos. Isso às vezes exarcerbava-me. Tinha tanta oportunidade de combinar encontros galantes mas não tinha o tempo para preparrar o terreno. O grande inconveniente era que eu trabalhava até às duas da manhã e a maioria dos meus sedutores tinham que ir para a cama cedo.
Assim muitas vezes tinha de ir para a cama só, para as minhas já tradicionais solitárias. O que era para mim muito frustrante. O que me valia era, como o Tété gostava muito dos meus poemas, às duas da manhã, quando fechávamos a porta, todos os empregados regressavam a penates e eu ficava sempre um bocadinho mais a sós com o meu Tété. Assim, enquanto ele fazia as suas contas do dia, verificar todas as caixas registadoras, uma no Bar, outra na pastelaria, e a outra no balcão das especiarias. Para mim era a melhor compensação do dia, estar a sós como ele! Ele entretanto começara a tratar-me por tu e a chamar-me Gégé, e o Gégé cada vez com mais ganas de beijar aquela sua linda boca onde se pressentiam viciosos beijos profundos. Tété tinha uns olhos que despiam as pessoas no meio das ruas. Ele era um fanático do sexo! Não podia ver uma mulher bonita à sua frente. Ele tinha que a comer de seguida com os olhos e depois, com aquele charme devastador e aquele seu narizinho arrebitado, todas as mulheres lhe abriam as pernas. A Rita, a fascinate mulher dele, confessou-me um dia que ele, no dia do seu casamento, na grande recepção que deram no grande salão da sua casa ali ao Rato, todos os convidados que chegavam ela, como não tinham cabides que chegassem para pôr os casacos e chapéus dos acabados de chegar, pegava nesses vestuários e ia pô-los em cima da cama de casal onde, nessa noite, ela lhe entrgaria a sua virgindade. A festa decorreu bem, com muita alegria e bebidas à descrição e, quando, altas horas, os conviadaos começaram a regressar a suas casas, vinham-lhe pedir os seus casaco. Uma dessas vezes que ela entrou no seu quarto em busca das indumentárias requeridas, foi dar com o Tété a fornicar a sua melhor amiga! Confessou-me também que se ela o não deixou nessa noite, também nunca mais o deixaria, fizesse ele o que fizesse. E assim foi toda a sua vida. O seu Tété era de toda a gente, mas sempre o seu Tété!
Nessas românticas horas passadas a sós com o Tété, isto das duas às três da manhã, eu descia ao seu escritório na cave, ao lado das casas de banho dos clientes, sentava-me à sua secretária e, como tínhamos um microfone para anunciar alguns eventos a serem realizados no Tique-Taque alguns dias maias tarde, ou para chamar clientes ao telefone quando haviam chamadas, e como tinhamos um gira-discos e muitos discos para termos música de fundo o dia inteiro, músicas que me ficaram na alma desde esses tempos, como Frank Sinatra e Nat King Colle, eu punha a girar um disco de música clássica muito suave e dizia os meus poemas que sabia de cór. Alguns também foram lidos. Ele adorava ouvir-me recitar, e eu, lá em baixo, ao fim de cada poema ouvia o seu aplauso. Por vezes também alguns bravos. Esses míticos serões ficaram gravados nas paredes do Tique-Taque e nas pardes da minha memória!
O Tété adorava os meus poemas ditos por mim sem secalhar se aperceber que alguns eram abertas confissões do meu amor por ele.
Há porém um grande poema que lhe fiz quando ele fugiu para Israel sem sequer me dizer adeus. Ele nunca o leu, nunca o ouviu! Espero que agora ele chegue até até ele, lá onde ele possa etereamente se encontrar...
A POESIA ANDA LÁ FORA
Não me fales nunca mais das noites de vigília emparedada
Nem me perguntes roucamente pelos meus poemas os meus ideais
Eles estão recalcados e latentes em minha boca sedentada
E que só tu se soubesses poderias fazer acontecer ainda mais!
E nada percebes das distâncias desmedidas que vou sulcando
Nem dos gritos imperceptíveis e rouquejantes que vou lançando!
Mas não vás ficar triste nem sorrir-me docemente
Embora teus sorrisos me arrancassem desta lassidão
Nunca saberias ser triste suficientemente
Nem dar-me oiro bastante que abalasse a minha decisão!
Vai nessa janela toda aberta acesa toda acesa até ao fim
Cabelos desgrenhados pelo arrepio da tua luxúria intensa
Gritar a minha epidérmica ânsia louca sensual e densa
E vive também um pouco mais ainda um pouco mais por mim!
Vai e cede noutros braços mais quentes mais vivos e reais
E esfrangalha teus lábios em sangue e chama desabrochados
Em outra boca qualquer outros lábios que não são os meus
Porque eu sòzinho ao crepúsculo de uma lâmpada apagada
No fundo silencioso e frígido do meu quarto vazio
Continuarei a esperar-te e a amar-te perdidamente
Na estupidez da minha ambiguidade incrível!
Embora eu possa e consiga viver sem ti
Rente aos meus lábios sem lábios
Eu morro lentamente por cima do que sou
Debruçado em meu poço transbordante
Que nehuma sede ainda me matou!
E eu hei-de coaxar noite fóra nessas águas
E esticar meus dedos de verme para as estrelas
E na noite imensurável que me cerca e me sufoca
Eu hei-de chafurdar no absurdo das minhas mágoas!
Quando eu passar hirto pelas ruas a caminho da terra fria
Sob o meu sonho poisado em núvens que os olhos não profanam
Eu sei que o teu adeus não assomará a nenhuma das janelas!
Mas deixa que eu sepúlcro do meu grito desgarrado
Prossiga por fim liberto sem derrotas nem vitórias
Balouçando aos ombros dos que me levam por ofício
Porque eu hei-de renascer em folhas verdes
Todas as primaveras deslumbrantes que hão-de vir
E flutuar no desprendimento doirado de todos os outonos
Nos braços do meu sonho intangível que o mundo julgou tocar
E que vão sustendo o sol no seu magnífico esplendor.
E as águas as aves as flores irão pròdigamente desabrochar
Em hinos de som de luz de vida e de cor
Quando alguém rendidamente à sua beira o meu nome pronunciar.
E eu não recusarei o meu nome a essa boca tão beijada
Porque o meu nome há-de ser lançado à terra com saudade
E desse nome dessa saudade e dessa terra pisada há-de brotar
Uma árvore grossa e altiva como um homem de braços tortos e crispados
Mil braços de homem erguidos aos céus num desvairado clamor
A lembrar ao mundo que eu passei na vida esguio e solitário
Com olhos de criança que chorou e com mãos de quem vai esmolando amor
E com esgares de quem o amor nunca na vida se lembrou!
E os braços hão-de encher-se de folhas verdes como poemas
Que eu pobre fraco e mortal nunca ousei escrever
E que a humanidade caminhando na rotina nunca saberia ler!
Então nos braços entroncados dessa árvore tosca e muda
As aves chilreando virão fazer os ninhos e pôr os ovos
E aos pés à sombra à beira deste homem apagado e despercebido
Os machos e as fêmeas vão fecundando os sexos furtivamente
E seus gritos de sofrimento de cio de gozo e de tédio
Vão-me deixando impávido estéril absorto indiferente!!!
Não me perguntes nunca mais pelos meus poemas as minhas dores
Nem venhas nunca mais bater-me à porta pedir loucas ventanias
Pergunta-me antes pelas minhas mãos que eu sempre vi vazias
E vem enchêlas de terra de raizes de frutos e de flores!
Não busques poesia nas minhas mãos doidas frias brancas e nuas
Porque a poesia a verdadeira poesia anda à solta perdida pelas ruas!
Rogério do Carmo
Lisboa, 4/7/1958
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