vendredi 24 février 2012
Tudo em Pratos Limpos
Rogério do Carmo, neto de Alfredo Costa Cabral, fundador dos Inválidos do Comércio em Lisboa, e de Elmiro Ventura Carmo, 8 anos Regedor de Moçambique, nos tempos de Gungunhana, nasceu no Sobreiro, pequeno povoado entre Mafra e Ericeira, na Casa da Brasileira, no Sábado dia 2 de Fevereiro de 1935. Quando ele deu o seu primeiro grito, soaram as doze badaladas do meio-dia, no relógio da sala!
Aos 4 anos, já Rogério pintava pratos na olaria de José Franco, esse grande artista que fez conhecer a sua terra por esse mundo fóra !
Rogério viveu em Lisboa a partir de 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, e viu erguer-se a Ponte Duarte Pacheco, ali na Rua do Arco do Carvalhão. Depois frequentou a Escola Primária de Campolide, e em 1944, com seus pais, mudaram-se para Mafra!
Em Mafra, Rogério frequentou a Escola Primária até à terceira-classe, que não acabou, pois que, aos 10 anos, teve de ir trabalhar para a Barreiralva, para evitar o contágio da tuberculose de seu irmão Alberto.
Pouco depois voltou para Mafra, onde trabalhou no Café Estrela, até aos 18 anos. Durante esses anos Rogério iniciou-se no desenho, e aos 14 anos fez um retrato do Rei D. João V., que se encontra actualmente no Museu Regional de Mafra, como Património do Estado. Iniciou-se igualmente na Poesia, e aos 12 anos já publicava poemas seus no jornal local!
Foi nessa vila que Rogério encontrou Rogério Paulo, quando ele lá fez a sua tropa, e ambos sonhavam em ser actores de cinema.
Seguiu para Lisboa em 1950. Aí trabalhou No Tique Taque, na Avenida de Roma, como barman, mais tarde no Aeroporto da Portela, como secretário, assim como pioneiro da RTP, como figurante e mais tarde como assistente de Nuno Fradique! Escreveu artigos para a Revista Turismo, e estudou Teatro com Berta de Bívar, do Dona Maria II, e iniciou uma carreira como actor, ao lado do seu amigo Rogério Paulo, no filme Encontro Com a Vida, de Arthur Duarte.
No dia 2 de Outubro de 1960, às seis e meia da manhã, apanhou um comboio em Santa Apolónia, que o levaria até Marselha. Em Marselha apanhou um Cargo Turco (Istambul) que o levou até ao Porto de Haifa, em Israel.
Em Israel viveu ano e meio no Kibbutz Beit Hashitá, onde aprendeu Hebraico e Inglês. Trabalhou na lavoura, e fez um filho. Filho que lhe foi recusado, pelo facto de Rogério não ser Judeu.
Depois instalou-se em Tel Aviv, e foi trabalhar para o Hod Hotel, em Herzelia. Mais tarde frequentou a Tadmor Hotel Training School, onde se diplomou como hoteleiro profissional. Com esse Diploma, Rogério trabalhou em hotéis de norte a sul do país, passando por Eilat, Jerusalem, Tibérias, Haifa, Nethania, e Zfat. Zfat, a cidade dos artistas plásticos, onde aprendeu pintura e posou para artistas.
Mais tarde foi para Jerusalém, onde trabalhou como recpcionista no President Hotel, se apaixonou pela música árabe, e aprendeu a bíblica história dessa cidade única !
Depois de uma temporada no Mar Morto, voltou de novo para o Hod Hotel em Herzelia. Foi então que, em Tel Aviv, teve dois julgamentos por estar ilegal no país. No cabeçalho dum dos jornais de Tel Aviv diziam que “Rogério do Carmo nasceu em Portugal por acaso, mas morrerá em Israel por sua própria decisão” ! Mesmo assim, teve de deixar esse país por ele tão amado, independentemente dos conflitos religiosos, e outros, que assolam o Médio Oriente !
Foi em 1965, que teve agrande surpresa de ter sido eleito Mr. Mar, o corpo masculino mais bonito desse ano !
No dia 2 de Outubro de 1966, apanhou um barco em Haifa, que o levaria até Nápoles. Em Itália, viveu 3 meses, visitando as grandes cidades, e trabalhando aqui e ali, como lava-pratos em restaurantes! Uma vez mais, foi expulso por estar ilegal.
Depois dum inesquecível dia passado em Veneza, apanhou um comboio que o levaria de regresso a Lisboa, passando pela Suissa e Espanha.
Em Lisboa, procurou trabalho num hotel, e foi o maior fracasso de toda a sua vida! O Chefe do Pessoal desse grande hotel de 4 estrelas, ali à Praça de Espanha, fê-lo assinar imediatamente um contracto como recepcionista, mas como todas as suas referências dos hotéis eram originárias de hotéis onde trabalhara eram de Israel, o Director Geral, que era de origem Árabe, recusou a sua admissão ! Indignado, visto que não podia viver nem Israel por não ser Judeu, e em Portugal não podia trabalhar num hotel em Lisboa por ser Judeu, apanhou um avião e foi até Londres, tentar a sua sorte, fugindo a absurdas descriminações!
Em Londres instalou-se em casa duns amigos e trabalhou num restaurante em Holbon, lavando pratos, até conseguir obter os seus papéis em Inglaterra para poder viver e trabalhar legalmente nesse país!
Logo que obteve os seus papéis foi trabalhar para o Berners Hotel, ali na Oxford Street, como recepcionista, onde, por rara casualidade, foi encontrar uma das suas melhores amigas que cursara com ele no Tadmor Hotel Trainning School, em Herzelia, a Hella, com a qual consolidou uma amizade muito especial e duradoira!
Muito rapidamente encontrou um pequeno apartamento em Chalk Farm, London W3, e juntou os trapos com um recente amigo Inglês, para partilhar a renda da casa.
Depois trabalhou no Hilton Park Lane, como "night auditor", onde teve como colega outro condiscípulo do Tadmor, que foi outra grande alegria. Mas como não gostava de trabalhar de noite, pediu transferência para o Hilton Leicester Square.
Um dia, porém, ao entrar na famosa Foyle's Book Shop para comprar um livro, esbarrou com um Israelita que lá trabalhava, e por lá ficou trabalhando como responsável do PBX, pelo facto de falar cinco línguas.
Porém um dia, quando da Guerra dos Seis Dias, o seu grande amigo Zé Melo, filho do proprietário da Tentadora e do Tique Taque, com quem residira em Jerusalém, fugindo à guerra, foi instalar-se em Paris. Inseparáveis como eram, a pedido do Melo, Rogério agarrou na trouxa e foi até essa cidade que, em Mafra, tanto o fizera sonhar quando ainda adolescente.
Em Paris, uma vez mais, sem papéis, teve de ir trabalhar "ao negro" numa Butique israelita, ali para as lados da Ópera, como responsável. Foram tempos duros, pois que o dinheiro não dava para renda do quarto na Avenida Mozart, assim como os comes e bebes num self-service ali por detrás do Olympia.
Mal obteve os papéis, pegou no seu sorriso e foi até ao Hotel Claridge, ali nos Campos Elísios, a ver se precisavam de pessoal.
Precisavam dum telefonista para fazer as noites. Como lhe davam quarto no hotel, um bom ordenado, e comida, aceitou. Para ele, trabalhar na hotelaria era capital!
Ai trabalhou dois anos, tendo sido, entretanto, promovido a Chefe do PBX, trabalhando de dia, mas as invejas das telefonistas que já lá trabalhavam há muitos anos foi tal, que Rogério viveu um verdadeiro inferno! O que lhe valeu foi ter alugado um belo apartamento com quintal, ali em Boulogne-Billancourt, mesmo à beira do Cena, onde começou a fazer jantaradas para os seus amigos e colegas, que deram que falar, por causa do barulho que muito incomodava a vizinhança!
Um dia teve a visita duma condiscípula no Tadmor Hotel Training School, que se instalou em sua casa, com o seu marido, por alguns dias.
Daí vieram muitas recordações do passado, e Meira, essa sua amiga, ao aperceber-se das saudades que o atormentavam, propôs-lhe ele voltar para Israel, e trabalhar na Discoteca do seu marido, em Eilat, ali à beira do Golfo de Akabá! Rogério não resistiu ! Despediu-se do Clarige, pegou na sua bagagem, e lá foi ele de volta ao país que tanto amava!
Uma vez mais, chegado a Eilat, recomeçou o seu calvário de não ter papéis e voltar a estar de novo ilegal em Israel. Acomodou-se no divã da sala da Meira, e lá começou novamente a fazer algo que ele detestava: Trabalhar de noite! Desesperado, como tinham aberto um novo hotel ali à beira Mar Vermelho, foi pedir trabalho como recepcionista, e foi imediatamente contratado. Rogério tinha o seu Diploma do Tadmor e todas as boas referências, mas o seu primeiro trabalho foi igualmente como "night-auditor", até haver uma vaga diurna na recepção.
O trabalho nocturno decorreu bem, pois que ele era um bom profissional, e muito rapidamente conquistou a amizade dos seus Chefes e colegas. Mas, uma bela manhã, David, o responsável da recepção, pondo-lhe uma mão sobre o ombro, com um vasto sorriso, anunciou-lhe que "a partir de amanhã, começas a trabalhar na recepção, como responsável de turno!"
A partir dessa data a vida recomeçou a sorrir-lhe generosamente. Ele trabalhava das sete da manhã até às 15 horas, e compartilhava o seu quarto ali mesmo à beira da piscina, com o seu colega e já então amigo, Jonathan. Isto era o ideal! Cama, mesa, e roupa lavada!
Todas as tardes ele ia para a praia, ali a dois passos, e começou a descobrir os famosos deslumbrantes fundos submarinos desse célebre golfo. Corais e fauna! Peixes de todas as cores e feitios! Mas um problema teria vir tudo perturbar! Uma das criadas de quarto apaixonou-se por ele, e como Rogério não correspondesse, ela atirou-se do seu terceiro andar onde ela trabalhava, e veio cair sobre a relva ali mesmo à beira da sua janela ! Felizmente, ela foi hospitalizada, e muito rapidamente voltou ao seu trabalho!
Uma tarde, porém, um dos novos hóspedes que chegara para passar um fim de semana nesse paraíso chamado Eilat, foi o seu grande amigo, o Miki, que fora igualmente seu condiscípulo no Tadmor.
Miki, depois de se ter instalado, voltou à recepção para o convidar a jantar fora nessa noite. Rogério aceitou, e durante essa jantarada, no restaurante Dag Ha’Kachol, Miki propos-lhe ele vir trabalhar com ele no Tel Avi Hilton, pois que o Hilton estava autorizado a empregar quem quer que fosse, mesmo sem papéis! E Rogério aceitou com ambas as mãos e de braços abertos!
No Hilton tudo decorreu às mil maravilhas. Rogério depressa fez amizades com todos os seus colegas, e fez de tal forma bem o seu trabalho que, em 1977 recebeu o Prémio do Melhor Recepcionista do Ano! Foi então que, alguns dos outros seus colegas começaram a manifestar um certo despeito, mas sem sérias consequências. Rapidamente ele os reconquistou!
Foi durante esse período da sua vida que Rogério, depois dum acidente de carro na Áustria, que lhe tivera sausado, sem que ele o siubesse, um descolamento de retina. Teve de ser hospitalizado para 8 horas duma das primeiras delicadas operações no mundo, à base de laser. Tudo correu bem, e Miki levou-o para sua casa em Herzelia, para uma convalescença de duas semanas.
Dessa operação nasceu um desenho que deu que falar por ter sido considerado pornográfico! O cirurgião manifestou desejo de possuir esse desenho, mas Rogério apenas lhe deu uma cópia. Cópia essa que, tempos mais tarde, quando ele voltou a visitar o Professor Lazar, (que o tinha operado) deu com essa cópia emoldurada, numa das paredes do seu gabinete!
Uma certa tarde um dos hóspedes do Hilton, sentado no Lóbi, que Rogério notara por ele ser atentamente observado, chegou-se à recepção e deu-lhe o seu cartão-de-visita, dizendo que ele era um desperdício por detrás daquele balcão, que ele devia estar sobre um palco! Que viesse para Paris, e ele faria dele uma grande vedeta!
Rogério olhou para esse cartão e viu que ele era um realizador de cinema francês! Os seus desejos compartilhados com Rogério Paulo, de fazer cinema, assaltaram-no e não resistiu à tentação de aceitar essa proposta e não desperdiçar uma vez mais na sua vida, uma outra grande oportunidade!
Quando apresentou a sua demissão ao Director Geral, -Mr. Florijne- este implorou-lhe que não deixasse o Hilton, pois que ele tinha tomado a decisão de fazer dele seu assistente! Mas Rogério já estava com um pé em Paris e outro em Tel Aviv! Mas o pé em Tel Aviv ganhou asas, e dentro de poucos dias Rogério apanhava um avião para Paris, carregando de novo os seus tarecos, agora cheio de novos projectos de realizar esse velho e querido sonho de sempre: Ser actor de cinema!
Chegado a Paris, foi directamente ao Paris Hilton, ao qual ele tinha pedido transferência de Tel Aviv, mas deram-lhe com a porta na cara, pois que a sua "carte de travaille" tinha expirado, e nesses tempos o Governo não autorizava mais aos estrangeiros, acesso ao trabalho ou a quaisquer outras regalias!
Uma certa manhã ele pegou no cartão de visitas do tal realizador de cinema que lhe tinha proposto trabalho como actor, e telefonou-lhe. Esse realizador convidou-o a ir vê-lo aos seus escritórios nos Campos Elíseos na manhã seguinte!
Nessa dita manhã ele aparece, e esse senhor convida-o a almoçar ali num grande restaurante, mesmo ao pé dos seus escritórios. Durante esse almoço ele propôs-lhe um papel no filme que estava em preparação, pedindo-lhe o seu número de telefone, para que ele o pudesse contactar quando tivesse uma data para ele comparecer nos Estúdios.
Enquanto Rogério aguardava essa chamada, instalou-se em casa dum amigo e, para não depender inteiramente desse amigo, começou a responder a anúncios nos jornais a pedirem "mulheres-a-dias"! Ele ia respondendo, e assim, embora que surpreendidos por ser um homem a responder, os clientes ficavam tão satisfeitos com o seu trabalho que, ali na Avenida de Versailles, em Paris, a sua boa reputação foi alastrando, e a porteira, quando ele passava, dava-lhe mais novos clientes residentes nesse mesmo prédio!
Ele trabalhava 4 horas de manhã em casa dum cliente, depois ia almoçar ao Les 3 Obus, na Porte de Saint Cloud. Depois trabalhava mais quatro horas da parte da tarde em casa doutro freguês, e como ganhava 10 francos por hora, ia vivendo menos mal mas, ao fim duns tantos meses a fatiga deitou-o abaixo fisicamente, e ele teve de aceitar uma proposta duma cliente que tinha um bebé de 9 meses, de trabalhar em casa dela o dia todo todos os dias, fazer as limpezas, as compras, e tomar conta do bebé, que se chamava Vanessa, mas que era mais conhecida por Vává!
Vanessa passaria a ser para ele, talvez, a maior história de amor de quase toda a sua vida! Ela cresceu nos seus braços desde a inocência dos seus nove meses, até à ternura dos seis anos e meio! Foi com ela que, como de costume, autodidacta, aprendeu a mudar-lhe as suas fraldas, dar-lhe os seus banhos, dar-lhe os seus biberões que ela glutonamente esvaziava na sua pequena boquinha cor-de-rosa. Mais tarde fazer-lhe as papinhas, assim como as grandes passeatas que davam pelos jardins do Trocadero!
Entretanto, uma certa quinta-feira de manhã, Rogério recebeu uma chamada do tal realizador de cinema, pedindo-lhe para ele estar no Café Les 3 Obus, na Porte de Saint Cloud, às 8 da manhã, sem falta, na próxima segunda-feira, para partirem para umas filmagens de exterior, para o seu filme !
Porém, no dia seguinte, esse realizador voltou a telefonar, perguntar-lhe se ele era Judeu ? Rogério, temendo o antisemitismo e muitas coisas mais, respondeu-lhe negativamente ! No dia seguinte, Shabbat, volta a ter outra chamada desse realizdor, dizendo-lhe que não havia trabalho para ele no seu filme, porque ele não era Judeu !
Rogério continuou o seu trabalho com a sua Vává, mas um dia, de regresso dum mês de férias em Israel, ao voltar, mal Vanessa o viu, saltou-lhe ao pescoço, apertando-o muito ternamente. Sua mãe, ciumenta, prega-lhe uma bofetada, dizendo-lhe que quando ela -a sua mãe- se ausentava por alguns dias, e que quando ela regressava a casa, ela nunca se lhe tinha atirado ao pescoço, em lágrimas!
Dolorosamente ferido, Rogério lembrou a essa mãe, que ela só estava com a sua filha das seis da tarde, quando voltava do trabalho, e que depois de lhe dar o seu jantarinho a punha na cama, e que ele estava com ela todos os dias das oito da manhã até às seis e meia da tarde! E saiu, batendo com a porta! E nunca mais voltou !
Rogério só voltaria a ver a sua querida Vává, doze anos mais tarde, quando ela o convidou para o jantar a celebrar os seus dezoito anos!
Depois, nunca mais voltou a ter notícias dela. Talvez que ela agora esteja casada e que precise de alguém para tomar conta do seu primeiro bebé...
Por casualidade, soube duma Igreja Irlandesa, ali na Avenida Hoche, junto ao Arco do Triunfo, onde dois padres procuravam alguém que lhes fizesse as limpezas e a comida!
Rogério foi aceite, e aí, a sua rotina foi pouco do seu agrado. Um dos padres era um encanto de pessoa, o outro era um carrasco que só pensava em fazer rolinhos de moedas das caixas das esmolas, e a enviá-lo ao Banco depositar as dádivas dos seus crentes! Valeu-lhe os padres gostarem dos seus cozinhados, e Rogério fazia as suas preces para que o Governo lhe desse os seus papéis, para ele poder voltar à sua profissão preferida: a Hotelaria!
Milagre, milagre, a vida continuou a sorrir-lhe! Ele vivia numa bela água frutada, ali na Rua do Dragão, em Saint Germain des Près, mesmo em frente do Les Deux Magots, quando lhe bateram à porta. Era o correio. Vinha com uma carta registada para ele assinar um recibo. Abriu a carta e, Santo Deus, era a sua "Carte de Travaille" renovada!
Imediatamente começou a procurar trabalho, na sua profissão. Foi a alguns hotéis pedir trabalho, e um deles contratou-o. Ficou felicíssimo! Enfim, ele voltava de novo a ser "alguém"! Mas o pior, foram as estúpidas injustiças dos fanatismos religiosos! Como era nesse hotel que a tripulação da El-Al vinha pernoitar, como era de esperar, ele falava-lhes em Hebraico! Ora o director do hotel, um distinto senhor de origem Libanesa, começou a embirrar com ele, e despediu-o!
Uma vez mais Rogério se sentiu só! Mas, uma tarde, ao procurar alguma música no seu rádio, esbarrou com uma estação onde uma voz masculina falava em Português. Ele ficou atento, e apercebeu-se que se tratava duma rádio portuguesa em Villejuif, nos subúrbios de Paris. Ao escutar essa voz a ler poemas em Português, sendo eles obras dos próprios ouvintes, enviou igualmente alguns dos seus poemas a essa rádio.
Mais tarde, para seu grande espanto, essa bela voz masculina começou a recitar os seus poemas, nesse programa que se chamava "O Cantinho dos Poetas"! Rogério telefonou-lhe para agradecer essa voz, e essa voz, a voz se Carlos Duarte, convidou-o a visitar essa rádio, pois que gostaria de o conhecer pessoalmente!
Uma certa manhã, dentro dos horários desse programa, Rogério aparece e apresenta-se ao Carlos Duarte! Carlos Duarte convida-o a sentar-se em frente dum microfone, e pediu-lhe para ser ele a recitar os seus próprios poemas. Imediatamente as chamadas telefónicas dos ouvintes começaram a chover, e a passarem à antena! O sucesso foi rápido, mas como Villejuif era um tanto longe, Rogério, já contaminado pelo bichinho da rádio, comprou o material necessário para fazer gravações em casa e, prontamente enviou uma cassete áudio ao Carlos Duarte. Sem demora, essa cassete começou a passar à antena do RádioClube Português!
Tempos depois, Carlos Duarte propôs-lhe uma longa entrevista, já um pouco como uma atracção. Ao ver que Rogério tinha imenso jeito para fazer rádio, Carlos propôs-lhe ele colaborar num programa nessa rádio. Esse programa chamava-se "Variante", na companhia da Marilu, uma bela loiraça.
Uma vez mais, nesse programa, quem passou a ser a grande vedeta foi ele, e Marilu, despeitada, levantou voo, deixando- a cargo desse programa!
Para grande surpresa de Rogério, rapidamente os seus poemas ditos por ele começaram a passar, além de no "Cantinho dos Poetas", também no programa "Discos Pedidos"!
Como Villejuif era um tanto longe, Rogério comprou um apartamento em Villejuif, mesmo em frente dessa rádio, e logo lhe foram propostos mais dois programas. Foram o "Despertar Musical", das sete da manhã até às dez horas; "Variante" todas as sextas feiras à tarde; e o "Encontro às Dez", todos os sábados, das dez à meia-noite.
Foi então que Rogério se apercebeu que ele tinha enfim jeito para alguma coisa! Isso recompensou-o largamente da grande frustração de ter desperdiçado a sua bela carreira como actor, em Lisboa, quando, na revista "A Plateia", lhe tinham augurado um grande futuro !
« As portas do cinema abrem-se para Rogério do Carmo em « Encontro Com a Vida » e, a avaliar pela sua idade, presença e conhecimentos, dificilmente se fecharão, se o Lumiar não desaparecer…
Na verdade, Rogério do Carmo, ou Rogério Francisco Costa Cabral Carmo, -de seu nome completo- pode vir a ser um excelente galã ! Tem 24 anos,1 metro e 70 de altura, olhos verdes, e cabelos castanhos. O seu papel em Encontro Com a Vida é pequeno, mas António Vilar e Virgílio Teixeira começaram assim…
(A PLATEIA – Setembro 1960
***
Depois, esta rotina de rádio entrou-lhe no sangue, e cada vez tinha mais trabalho. Porém, como era uma rádio pirata, sem a necessária autorização do Estado para emitir, um dia a Polícia veio bater-lhes à porta e a rádio foi encerrada!
Carlos Duarte não sobreviveria muito tempo, pois que era para a sua rádio que ele vivia!
Rogério e mais dois outros animadores, decidiram pedir autorização às Altas Autoridades, alegando que os portugueses eram, por Lei, a maior comunidade estrangeira em França!
E assim, Rádio Alfa se fez embrião…
Foi em sua casa, n°5, Rue du Dr. Paul Laurens, em Villejuif que, quase que numa masturbação colectiva, a Rádio Alfa foi fecundada!
Foram serões e serões à volta da sua mesa de casa de jantar, esvaziando cafeteiras de café e maços de cigarros, que alguns voluntários se reuniram, a redigir o Projecto para enviar às Altas Autoridades!
Tempos depois receberam a autorização de emitir e, eufóricos, pegaram nesse documento e foram celebrar a grande vitória a um restaurante português, algures em Paris.
O proprietário desse restaurante, ao aperceber-se que algo de bom nos tinha ocorrido, imiscui-se na conversa, e propôs-se como colaborador, ocupando-se dos Serviços Comerciais! Ora, Rogério era suficientemente lúcido para saber que isso era de importância capital, e aceitou !
Nessa noite, procuraram encontrar um nome a ser atribuído a essa nova rádio portuguesa em França, para a qual já tanto tinham trabalhado! Uns sugeriram "Rádio Comunidade", outros "Rádio Portugal", mas ninguém se contentava com essas sugestões.
Rogério, olhando o Projecto que tinha sido aprovado pelas Altas Autoridades, a que tinham dado o título de "Associação Luso-Francesa de Audiovisual", juntou as iniciais desse projecto e… assim nasceu ALFA !
Depois começaram os problemas de arranjar material e local para as instalações dessa auspiciosa rádio. Rogério propôs a sua casa e o seu material, para começar, e depois a ver onde seriam as instalações definitivas, mas o director Comercial, muito ambicioso, alugou um vasto espaço numa torre em Paris 13 -a Torre Atlas- e Rogério começou a transportar, aos poucos, de sua casa, por Metro, o seu material e todos os seus discos.
E assim, no dia 5 de Outubro de 1987, às 17 horas em ponto, Rádio Alfa vai para o ar, tendo sido a voz de Rogério do Carmo a Voz inaugural ! A primeira cantiga a ser passada na Alfa, nessa tarde, foi o Inch’Allah, na voz de Amália Rodrigues !
A Rádio Alfa foi um sucesso! O seu programa "Bica e Copo d'Água" até chegou a ser falado na imprensa francesa! Daí alguns problemas de invejazinhas caseiras, mas durante oito anos foi para o ar das 13 às 15 horas, tendo tido como convidados grandes nomes das Artes francesas e portuguesas. Entrevistou Amália Rodrigues 8 vezes e, uma vez, quando ele recebeu Tokiko Kato (uma cantora japonesa) quando ele lhe perguntou se a Amália era realmente muito popular no Japão, Tokiko respondeu-lhe cantando à capela, batendo com as suas mãos na mesa, o Barco Negro, em Japonês!
As origens do título de Bica e Copo d'Água foram curiosas. Rogério tinha ido passar uns dias a Benfica, em Lisboa, e, estando tomando um café ali numa pastelaria na Avenida do Uruguai, achou graça aos criados de mesa virem ao balcão e pedirem: sai um galão e um queque; sai um chá e uma torrada ; sai um café e um bagaço!
Como andava à procura dum nome para a sua emissão na Alfa, decidiu chamar ao seu programa o próximo pedido dos criados de mesa! Ora o próximo foi "sai uma bica e um copo d'água"!
Rogério teve a honra de ter tido a voz de Maria João Pires a pedir:"Olhe, se faz favor! Uma bica e copo de água",e a da Amália para dizer, ao início do programa: "este programa é uma realização e apresentação de Rogério do Carmo!"
Curiosamente, quando ele pediu à Amália para fazer esta gravação, ela disse que, em vez de dizer Bica e Copo d'água, diria "programa", pois que assim ele poderia utilizar a mesma gravação em outros programas seus, com qualquer outro título!
Tudo correu bem durante 8 anos, a despeito das invejas, mas, um dia, quando Rogério regressou dumas férias em Israel, a Directora de Programação, (que nem sequer fazia parte do projecto original dessa rádio) disse-lhe friamente que Bica e Copo de Água já tinha barbas, e propôs-lhe um programa de duas horas, da meia-noite às duas da manhã. Embora o programa que essa senhora apresentava todos os dias, e que nunca tinha sido falado na imprensa francesa, continuasse com os mesmos horários! Mas, mesmo assim da meia-noite às duas da manhã o programa que ele ironicamente intitulou "E Tudo o Vento Levou", divulgando a música clássica, foi de tal forma um sucesso, que os ouvintes começaram a pedir à direcção da rádio, para modificarem os horários, pois que eles tinham que se levantar cedo para irem para os seus empregos !
Então aconteceu a grande tragédia! O Director Geral e o Director dos Serviços Comerciais venderam a Alfa a um senhor muito abonado, que transferiu a Alfa para cascos de rolha! Rogério passou então a apanhar um autocarro todas as manhãs para fazer o seu trabalho, mas como essas instalações eram mesmo à beira dumas saibreiras, e a fina poeira entrava pelas janelas, isso viria a causar um problema sério de polipose nasal e Rogério teve de abandonar o seu trabalho, e a sua rádio, essa que lhe saíra do ventre, de algum modo, um filho seu!
Os anos que se seguiram foram um calvário para Rogério do Carmo! Depressões nervosas acompanhadas de tanta coisa mais! Rogério recebeu uma generosa indemnização do actual proprietário da Alfa, mas um filho não se vende!
Rogério esteve várias vezes à beira do suicídio, mas a vida continuava a fazer-lhe sinais! Doze anos depois, uma certa bela manhã, Rogério decidiu ir matar saudades da sua Alfa e foi até lá para lhe fazer uma fotografia da fachada mas, à porta, estava um dos seus antigos colegas a fumar o seu cigarro, o qual, ao vê-lo, o convida a subir até aos estúdios, o que ele acedeu sem se fazer rogar!
Nesse dia foi recebido por todos, de braços abertos! Até o Director da rádio lhe propôs ele voltar, para fazer um programa semanal de duas horas! Mas ele vivia a 30 quilómetros, e por causa dos engarrafamentos, ser-lhe-ia muito difícil! O Director prometeu-lhe procurar um apartamento ali perto da rádio mas, até à data, nada! Entretanto, um colega que preferiu manter o seu afastamento, foi envenenar o Director contra o Rogério, e Rogério voltou a arrastar-se nas valetas!
Tempos mais tarde Rogério foi convidado para uma grande jantarada, a celebrar o vigésimo quarto aniversário da Alfa. Nessa noite houve fados e Rogério adorou ter-se sentido novamente português! Cantou o Carlos do Carmo e o Jorge Fernando. Rogério aproveitou a oportunidade para perguntar ao Jorge Fernando, (que tinha feito as músicas para as últimas gravações da Amália) se ela tinha gravado os seus dois poemas ?
Mas Jorge não estava certo, pois que nesse dia a Amália tinha gravado 30 poemas duma assentada ! Mas que se a Amália lhe tinha prometido, Amália cumpria sempre as suas promessas!
Nessa mesma noite Rogério foi abordado por uma senhora que fazia um programa de poesia todas as sextas-feiras, e como ela apreciava muito a voz do Rogério e a sua técnica declamatória, propôs-lhe ele participar nessa sua emissão todas as sextas feiras. Rogério aceitou com todos os dedos de ambas as mãos!
Rogério retomou o seu gosto pela rádio e pela vida, e logo começou à procura de apartamento perto da Alfa, mas todas as Agências apenas tinham casas e apartamentos para vender! Mais tarde ele ouviu nos noticiários da televisão que tinham havido acordos entre os Bancos e as Agências Imobiliárias, para as Agencias não alugarem e apenas venderem, para, assim, obrigarem as pessoas a irem aos seus Bancos pedir empréstimos, e pagarem-lhes os devidos interesses mensais! Tudo manobras de capitalistas! Claro que Rogério foi falar com o Director do seu Banco, mas visto a sua idade avançada, foi-lhe recusado empréstimo!
Rogério continuou a sua rotina de sempre, não faltando nenhuma sexta-feira na rádio, para participar nesse programa de Poesia. Os ouvintes começaram a apreciar o trabalho dele, a despeito das longas viagens causadas pelos engarrafamentos! Para Rogério, ir à Alfa uma vez por semana era como ir às putas! Na sua idade, uma vez por semana bastava-lhe!
Mas como na vida nada dura para sempre, no dia 8 de Junho de 2011, às três e meia da tarde, enquanto Rogério aguardava a sua vez para atravessar a rua, uma mota passou-lhe por cima, e Rogério esteve 10 dias hospitalizado, sob morfina, para a aguentar as dores! Tinham-lhe partido uma costela, ruptura dum rim, e escaveirado um cotovelo! Como ele tinha perdido os sentidos, não foi fácil recuperar completamente dos estragos físicos e mentais, pois que esteve paralizado da perna esquerda e do braço direito, algumas semanas! Foi um trauma para o resto da sua vida!
Desde então Rogério luta desesperadamente por uma modesta sobrevivência sem grandes projectos nem ambições!
Agora Rogério procura recuperar e sobreviver mais uns tempos, até ver onde param as modas!
Se, em Portugal, para se ser reconhecido como Poeta, é preciso deixar este mundo, Rogério aguarda a sua vez para ver se isso é apenas uma lenda, ou uma injusta realidade! Foi, no entanto, o que aconteceu a Fernando Pessoa e tantos mais!
Presentemente, Rogério vai-se agarrando às suas sextas-feiras na Alfa, e às suas escritas, como bóia de salvação. Tendo o Facebook muito ajudado para ele não se sentir totalmente só, nessa bicha medonha para um enterro simplório e sem flores. E, sobretudo, sem alguém que lhe tenha vindo perguntar qual a sua última vontade!
Se alguém alguma vez o fizesse, estou certo, a sua última vontade seria voltar atrás no tempo, e aceitar a proposta que um certo director dum pequeno teatro de Paris lhe fizera, quando, numa rua, ao pedir-lhe um cigarro, e achando-o pouco banal, lhe perguntou donde era ele, e o que fazia em Paris!? E ele, Rogério do Carmo, como seu velho hábito de sempre, contou-lhe a sua vida toda inteira!
Impressionado, esse inesperado desconhecido, propôs-lhe ele subir ao palco do seu teatro e, ambos sentados cada qual na sua cadeira, ele voltar a fazer-lhe a mesma pergunta, e ele, Rogério do Carmo, voltar a contar-lhe toda a sua vida de ponta a ponta!
Mas Rogério recusou, pois que algumas passagens da sua dita vida são, seguramente, para maiores de cem anos e, sobretudo, sem as retrógadas barreiras de outros tempos, quando, ser o que o que realmente somos, seria, quase duma forma geral, considerado imoral e vergonhoso!
Francisco Costa
samedi 11 février 2012
O meu destino foi traçado por mão esquerda
Encontro Com a Vida
Se eu, como pioneiro da RTP, depois de ter começado uma carreira como actor de cinema, ao lado de Rogério Paulo, no filme de Arthur Duarte "Encontro Com a Vida", não tivesse deixado Portugal, hoje seria provavelmente bem conhecido, pois que o Arthur Duarte voltou a contactar-me para fazer outro filme com ele, mas o resto do mundo chamava por mim, e eu fui por esse mundo fora!
D. João V.
Até um retrato de D. João V. que fiz em Mafra, quando eu tinha 14 anos, que esteve exposto numa das paredes da Biblioteca Municipal no Convento durante 42 anos, se encontra agora encafuado numa gaveta, desde que o Director da Biblioteca, o senhor Assunção, deixou este mundo!
O meu D. João V. também incomodou alguém que, provavelmente, nem sequer dois riscos feitos a preceito é capaz de fazer!
Ser Conhecido em Portugal
Resta-me agora continuar a minha penitência, no sentido de tentar ser conhecido em Portugal, pois que cada vez que tento dar nas vistas levo sempre com a porta na tromba! Como quando daquela entrevista que concedi à RDP terem recusado passar um poema meu dito por mim, o "A Pressa", num singular casamento da Poesia com a Housemusic! Assim como, todos os Editores que contactei, afim de publicar o meu livro de memórias "Tudo em Pratos Limpos", me dizerem que isso não interessa ninguém em Portugal, porque eu não ser "conhecido"! Ora se para se ser conhecido em Portugal é necessário que saibam que eu existo e que sou dono dum vasto espólio!
Por obra e graça do Espírito Santo, a Biblioteca Municipal de Cascais deram por mim e fizeram um exposição dos meus desenhos! Não sei se esse evento venha a ser o fim do princípio ou o princípio do Fim!
O Acidente
Tudo na vida tem um começo e tem um fim. A vida é uma longa ou curta peça de Teatro. Umas vezes comédia, outras vezes dum acerbo dramatismo, mas um dia o pano terá que cair! Foi o que me ia acontecendo no dia 8 de Junho de 2011, às 15.30, em Meudon, quando fui fazer as compras para o jantar. Antes de atravessar a rua, na passarela, nos semáforos, aguardei que o senhor encarnado se fizesse verde, para eu atravessar a rua sem correr grandes riscos, mas, repentinamente, senti algo que esbarrou com a minha perna direita e, o que quer que fosse, foi tão rápido, que nunca saberei ao certo o que realmente se passou! Na minha memória, depois do tal "senhor encarnado" nos semáforos, a imagem seguinte que retive, foi eu estar numa maca, dentro duma ambulância, e ao abrir os olhos vi o belo rosto dum jovem bombeiro que tentava reanimar-me. Foi ele que me explicou o que se tinha passado:
Eu tinha sido colhido por uma mota, caído de costas, aberto o cotovelo direito, e uma fractura do crânio.
Depois dos primeiros socorros fui conduzido ao Hospital Becler, em Clamar, tendo antes telefonado ao Pat para que ele me viesse buscar.
Durante o trajecto, continuando a prestar-me os primeiros socorros, pondo pensos no meu cotovelo, cabeça e perna direita seriamente esfacelada, esse zeloso bombeiro explicou-me o que se tinha passado. Eu tinha sido colhido por uma mota, mas o motorista tinha seguido viajem sem me ter prestado os tais primeiros socorros. Que tinha sido um transeunte que tinha chamado os bombeiros, e que eu estava a ser conduzido ao hospital para mais eficazes hospitalares atenções !
Chegado ao hospital, prisioneiro da minha maca, nas Urgências, aguardei a minha vez de ser atendido.
Entretanto Pat tinha chegado e, colado à minha maca, muito preocupado, indagava acerca do que se tinha passado. Expliquei-lhe o melhor que pude, segundo o pouco que eu recordava. Fomos interrompidos por um enfermeiro que me veio buscar para me levar a uma dependência onde três médicos me aguardavam impávidos. Uma das médicas começou então as suas investigações. Cuidadosamente pensou as largas chagas na minha perna direita, pensou o meu crânio, e pôs-me dois pontos de sutura no meu cotovelo direito! Isto feito, informou-me que eu teria de esperar oito horas, antes de poder fazer um scanner para mais completas verificações!
Em baixo, numa espaçosa dependência muito escura, divida em pequenos espaços por uma cortina, vários acidentados aguardavam nas suas macas o momento de serem chamados para serem observados pelo scanner. Durante oito horas ali permaneci sem qualquer assistência, uma bebida, um afago, agredido pelos gritos de dor dos outros acidentados, meus vizinhos. Durante essas infinitas oito horas senti-me como um objecto ali posto de parte, não como um ser humano carente de atenções! Senti-me lixo à espera de ser despejado!
Às tantas, aparece-me, como caído do céu aos trambolhões, uma criatura doutros planetas que, sem me dizer uma palavra, me empurra corredores fora, e me abandona, sem qualquer informação, a um canto dum dos muitos corredores que tínhamos atravessado! Aguardei ali, possuído duma angústia asfixiante, até que outro marciano me veio buscar e me empurrou para dentro da dependência onde se encontrava o scanner, onde, igualmente, outro marciano rindo às gargalhadas duma anedota que o seu assistente lhe tinha contado, me enfia no scanner sem me dirigir uma palavra! Fiquei chocado com aquele tipo de serviços hospitalares onde os pacientes eram coisas e não pessoas!
Depois do scanner reconduziram-me ao meu buraco escuro e, uma vez mais, sem uma palavra, um sorriso, fui novamente abandonado sozinho com a minha fome, a minha sede, o imenso desejo de acender um cigarro, e, sobretudo, o pavor de ter sido ali esquecido para todo o sempre!
Horas depois, um médico, infinitamente humano e atencioso, me veio falar, perguntando como me sentia eu, que o scanner não tinha acusado nada de grave, e que eu podia ir para casa. Dito isto ele entrega-me um relatório dos meis primeiros socorros, desejando-me um bom restabelecimento. E que se eu tivesse dores durante a noite, tomasse uma grama de Doliprane todas as oito horas. Com um alívio imenso telefonei ao Pat, pedindo-lhe que ele me viesse buscar logo que pudesse. Era quase uma da madrugada!
Foi quase correndo que subi as escadas que levariam à entrada das Urgências, onde eu poderia enfim respirar um pouco de ar menos bafiento e fumar um cigarro! Chegado lá fora apercebi-me que eu não tinha cigarros comigo. Ansiosamente aguardei a chegada do Pat para que ele me fornecesse um desses diabólicos cigarros que matam, mas que, quando eu era miúdo, nos gigantescos cartazes por toda a parte em Lisboa, um belo mancebo sobre um imponente cavalo, apertando um belo cigarro entre os grossos lábios, ostentava em grandes letras: « Para ser Homem tem de fumar Marlboro ! »
Mal Pat chegou pedi-lhe um cigarro, mas ele também não os tinha com ele. Como ali à porta vários jovens médicos praticantes fumavam, perguntei se algum deles me podia dar um cigarro, mas fui totalmente ignorado. Continuava a ser uma coisa, não um dos seus semelhantes!
A viagem de regresso a casa foi rápida, e mal subi os degraus que me separavam dos meus malditos cigarros, cai-lhes desalmadamente em cima, enquanto Pat preparou um bom café e umas sandes.
Depois dumas trocas de palavras e de cigarros, fomo-nos deitar. Cada qual na sua cama, no seu quarto, nas suas dúvidas e angústias!
Mal afundei a face na minha almofada, rapidamente mergulhei no mais profundo dos sonos. Não sei se tive sonhos ou pesadelos, sei apenas que, ao meio da noite, fui acordado por horrorosas dores no corpo todo! Dores diabólicas que nunca suspeitara podessem existir! Nesse momento compreendi por que razão o médico me tinha prescrito Dolipran, uma grama todas as oito horas! Levantei-me e alvoroçadamente tomei esse tal remédio! Momentos depois, as dores abrandaram e voltei a adormecer.
Durante catorze dias e catorze noites fui avassalado por essas dores escandalosas! Por sorte, o tratamento ajudou-me a suportar essas dores insuportáveis! Ao fim desses catorze dias, como prescrito, fui ao médico para ele me retirar os pontos do meu cotovelo, e pensei que o caso tinha ficado arrumado mas, muito pelo contrário, dores horrorosas começaram a roer-me de novo. Era domingo e quase meia-noite, e como as dores eram intoleráveis, chamei um médico de guarda, aqueles que nos socorrem quando toda a gente dorme ou foi de férias.
Esse médico, depois de lhe ter falado no meu acidente, explicou-me que as dores no corpo eram dores ósseas, que passariam com o tempo, mas, não sabendo o que fazer, chamou uma ambulância e reenviou-me novamente para esse pestilento hospital donde, duas semanas atrás, eu tinha tão alegremente saído!
Chegado às Urgências desse temido hospital, novamente me instalaram na mesma maca, nessa tenebrosa dependência onde reinavam os gemidos dos negligenciados pacientes, e a total indiferença dos enfermeiros.
Momentos depois apareceu um dos tais enfermeiros que se limitam a empurrar as macas, e acabei novamente enfiado num scanner. Depois duma rápida verificação, informaram-me que estava tudo muito bem, e devolveram-me ao breu da dependência das Urgências, sempre prisioneiro da minha maca, sem qualquer assistência!
Durante três dias e três noites aí fiquei abandonado às minhas dores, com apenas, quando eu pedia socorro, dois comprimidos para acalmar as dores. Ao fim desses três dias, depois de ter feito mais três scanners, queixei-me, que, ao menos, podiam pôr-me numa cama, num dos quartos do hospital!
Momentos depois transferiram-me para um quarto no quinto andar, partilhando com outro doente. Mas, para cúmulo da ineficácia desse hospital, o outro doente era um atrasado mental que quando ia à retrete defecava pelo chão, e limpava as mãos às paredes!
Chamei uma enfermeira e pedi-lhe que me enviasse alguém de responsável que me resolvesse esse problema! Momentos depois um médico veio visitar-me e anunciar-me que eu tinha um problema num rim e que eles não tinham serviço de Nefrologia, e que me iam transferir para um hospital em Villejuif. Eu conhecia esse hospital, quando morei nessa Vila, e que era tão pestilento como aquele onde então me encontrava. Recusei essa transferência ! Sugeriram-me então uma Clínica em Meudon Laforet, que eu bem conhecia e apreciava. Concordei, elevando as mãos aos céus!
Em boa hora cheguei a essa clínica em Meudon! Um sítio limpo e arejado, e as enfermeiras atentas constantemente aos cuidados com os seus doentes! Durante dez dias, sob morfina para aguentar as dores, fui lavado e alimentado com carinho! Não aprecio hospitais nem de clínicas, mas esta merece todo o meu respeito e admiração! Bem hajam todos aqueles que se ocupam de doentes que, para eles, não são doentes nem clientes, são pessoas!
Bem hajam todos aqueles que vieram a este mundo para fazerem o bem!
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